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.Em torno do pleonasmo...

16-01-2014 14:42

.Em torno do pleonasmo...

Uma situação

Pessoa amiga me lançou hoje, por correio eletrónico, logo no começo do dia, o seguinte repto: você já “pleonasmou” hoje?

E dava-me conta da “pleonasmite”, qual doença congénita (pandémica, corrigiria eu, já que, não obstante o seu inquestionável alastramento, ninguém nasce com ela, nem sei se a terá herdado) comum aos portugueses – e eu estendo tal caraterística à generalidade dos falantes, pois, já os latinos diziam egomet e nos metipsos, para reforço do pronome pessoal – sem cura, sem vacinas e resistente ao espectro antibiótico. Porém, tranquilizava-me com o facto de tratar de um hábito morboso, mas não letal, embora frisasse o incómodo que provoca quando não controlado ou assumindo uma feição comedida.

Também a reptante não se mostrou parca na adução de exemplos. Assim, apresenta “quatro exemplos óbvios: ‘subir para cima’, ‘descer para baixo’, ‘entrar para dentro’ e ‘sair para fora’”. Mas, utilizando o sistema de perguntas, prossegue referindo “recordar o passado”, prestar atenção aos “pequenos detalhes”, partir uma laranja em “metades iguais”, dar os “sentidos pêsames”  à “viúva do falecido”. E, depois, assegura não estar a socorrer-se apenas da sua ‘opinião pessoal’, mas a basear-se em ‘factos reais’ (e eu já fui vítima de alguns factos bem imaginários!)  para dar este ‘aviso prévio’ de que esta ‘doença má’ atinge a ‘todos sem exceção’. E continua acentuando que na rua, muitas montras de lojas nos aliciam com ‘ofertas gratuitas’; “algumas agências de viagens anunciam férias em ‘cidades do mundo’; no trabalho, a chefia pede um ‘acabamento final’ naquele projeto, para evitar ‘surpresas inesperadas’ por parte do cliente; e, aquando de uma discussão mais acesa com a cara-metade, às vezes, vem uma forte vontade de ‘gritar bem alto’: ‘Cala a boca’!”

Também o mundo do cinema nos presenteia com aquele filme que “estreia pela primeira vez” em Portugal, como a televisão, que é de “certeza absoluta”, a “principal protagonista” da propagação desta virose, em qualquer um dos telejornais nos permitirá “ver com os nossos próprios olhos” a pleonasmite em direto na pequena pantalha. O repórter certifica que o matagal “arde em chamas”; o treinador de futebol carpirá a tenuidade dos “elos de ligação” entre a defesa e o ataque; o “governante que governa” comunica que o rigoroso inquérito prontamente instaurado concluiu pelo desfalque do “erário público”; o chefe da diplomacia anunciará a “sólida consolidação” das “relações bilaterais entre aqueles dois países”. E um qualquer “político da nação”, ao comentar  a recente próxima manifestação que juntou uma “multidão de pessoas”, vai alvitrar um “consenso geral”  para a ultrapassagem da crise.

Embalado na resposta, também eu lancei mão da minha dose peonasmítica e respondi:

“Sim, certamente, caríssima amiga, depois de ter dormido um tranquilo sono do justo no leito da cama, tendo-me deitado ao comprido, ontem de véspera, já pleonasmei repetindo a mesma ideia com palavras diferentes, hoje neste dia, aqui neste lugar, com este meu próprio linguajar, proferindo em voz alta pela minha própria voz mesmo junto da minha mulher, a senhora dona destes meus olhos, umas lindas coisa bonitas. E logo à tarde, depois do meio-dia, ambos os dois, ela e eu, iremos à cidade urbana comprar umas mercadorias aqui para dentro desta casa doméstica, etc e outras coisas. Já agora neste momento um beijinho muito pequenino e um grande abração.”.

Depois, como não posso pensar que estou maluco da cabeça e não quero desejar viver a vida fora do meu habitat natural, não vou adiar para depois a ideia de “viver a vida”  no meu “habitat natural”, com um largo e generoso “sorriso nos lábios” imune de “dores desconfortáveis” nem “hemorragias de sangue”. 

Para que tudo dê mesmo certo, resolvi “encarar de frente” a temática do pleonasmo. Para tanto, há que retomar a sua definição e algumas das suas aplicações no uso da língua, já que o uso é considerado a principal norma de utilização legítima da língua.

A reflexão

Ora, ao demandar uma definição de pleonasmo em algumas das atuais gramáticas escolares, embora a definição seja formulada em termos consensuais, há divergência na sua integração na subdivisão das figuras de estilo. Uns o encaixam nas figuras de fonologia e morfologia, não sei bem porquê; outros, nas de semântica, dado implicar reforço ou realce de ideia; e outros, nas de sintaxe, como adiante veremos. Perante esta situação de divergência, resolvi seguir a enunciação feita por Isabel Casanova, que, na linha de Lindley Cintra e Celso Paiva, define pleonasmo como “uma figura de sintaxe que consiste na superabundância de palavras para reforçar uma ideia”. E acrescenta que, às vezes, se inclui neste conceito “a especificação de caraterísticas naturais que são próprias do referente”, como “mar salgado”, neve gelada”, ao que os referidos mestres chamam de “pleonasmo e epíteto da natureza”.

Já os mesmos aludidos autores esclarecem que “o pleonasmo é a reiteração da ideia”, ao passo que “a repetição da mesma palavra é um recurso de ênfase e, segundo a forma por que se disponha no período ou na oração, tem na retórica nome especial”, que não o pleonasmo. E distinguem vários tipos de pleonasmo, que discriminarei por palavras minhas: o pleonasmo propriamente dito, o pleonasmo vicioso, o pleonasmo e epíteto da natureza e o objeto pleonástico (complemento pleonástico, diremos nós no português europeu).

O pleonasmo propriamente dito é o abrangido pela definição acima explicitada, efetivamente sem acrescento de qualquer valia informativa, mas enquanto recurso estilístico pejado de valor enfático ou expressivo; o pleonasmo vicioso é aquele que nenhuma valia – informativa ou expressiva – acrescenta à enunciação, resultando apenas da ignorância do sentido exato dos termos ou de negligência discursiva, devendo ser tido como “falta grosseira” (vg “breve alocução”, “monopólio exclusivo”…). Já o pleonasmo enquanto epíteto da natureza é um recurso literário, uma forma de ênfase que consiste no emprego de adjetivo que insista no caráter intrínseco, normal ou dominante do objeto traduzido pelo seu nome (não se trata de mera reiteração de ideia, vg “noite escura”, “neve gelada”). Por seu turno, o complemento pleonástico, seja ele direto, seja ele indireto, utiliza-se com a colocação do grupo nominal ou equivalente no início de frase e com a sua repetição na forma pronominal. Por exemplo, “paisagens, quero-as comigo (complemento direto); “ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo (complemento indireto) “minha desgraça, causaste-ma tu” (complemento direto, mas a realização pronominal comporta complemento indireto “me” e direto “a” = ma). Não raro “para ressaltar o complemento direto ou indireto se usa fazer acompanhar o pronome átono da correspondente forma tónica regida da preposição”, como em “a mim não me enganas tu” e ”a ti até te pareceu mal que ele tivesse procedido tão bem”.

Além do que fica explanado, há que referir que o pleonasmo também resulta de várias situações não despiciendas de contexto comunicacional e intenções comunicativas, em concreto. Sem nos fixarmos demasiado em pormenores, convém referir situações típicas do quotidiano, de que se destacam algumas, apenas a título de exemplo. Quando se afirma que “ele mente com os dentes todos”, evoca-se o aforismo de que cai um dente sempre que se mente. Chamar por boca pode quer dizer que não so faz por aceno ou por escrito. Se o namorado sugere à namorada que está em cima do muro com medo de descer, que “desça aqui para cima do meu ombro”, é a linguagem do afoitamento e da proximidade que está a facultar a conversação. Em termos do liberalismo económico, quando se glosa a lei da oferta e da procura, aquela “oferta” tem de ser bem paga, caso contrário o produto pode ser destruído ou rarefeito. Quando o vizinho grita que é um homem muito homem ou um homem com H grande, é porque sabe que a palavra tem no uso comum um sentido pouco abonatório ou insuficiente. E eu fico sem saber se ele um homem de palavra e corajoso, se quer afirmar a sua caraterística de macho ou se quer negar que seja aldrabão, político, anjo e outras coisas mais. Porém, quando se diz que ele não os tem no sítio, toda a gente entende a expressão não no sentido denotativo. Quanto a outras situações, relativamente ao “habitat natural”, hoje já se criam habitats artificiais, como faz a EDP com os ninhos de cegonhas; o “erário público” contrapõe-se ao que pode também ser o pecúlio pessoal, familiar, empresarial ou associativo; e assim por diante. Isto para não aludir às analogias e polissemias nem sempre percetíveis pelo contexto. Assim, há que distinguir rato da zoologia e rato informático; mão de tinta, mão de vaca, mão do homem e mão de Deus; vara vegetal, bara de burel, vara cível, vara criminal e vara de porcos; manda de bois e manada de elefantes; fato de roupa e fato de cabras; bando de passarinhos e bando de malfeitores; conselho de estado e conselho do advogado. E mais não digo! 

Finalmente, quando Paulo VI, em 13 de maio de 1967, gritou ao mundo “homens, sede homens” certamente que não estava a pleonasmar, mas a apelar à responsabilidade do homem pelo mundo!

Por isso, não abusemos do pleonasmo, mas como abusus no tollit usum  (“o abuso não tira o uso”), usemo-lo com parcimónia e com propriedade quando ele for necessário ou der jeito para a expressividade, sobretudo se ela for afetuosa.

Francisco e o batismo de duas criancinhas especiais

15-01-2014 11:48

Francisco e o batismo de duas criancinhas especiais

O Papa Francisco, no passado dia 13 de janeiro, festa litúrgica do Batismo do Senhor, último dia do tempo litúrgico do Natal, presidiu à Celebração da Eucaristia, na Capela Sistina, em que se integrou a ministração do sacramento do batismo a 32 crianças. Desse grupo de crianças fazem parte duas crianças, das quais uma é filha de mãe solteira e outra de pais casados apenas civilmente.

A exceção surpreendeu pela positiva a opinião pública, que não se cansa de elogiar este gesto tido como inovador. Confesso que não me revejo nesse coro encomiástico pelo simples facto de que o anormal face à legislação canónica era a negação do sacramento do batismo a filhos de mães solteiras ou de pais casados apenas pelo civil. Creio ter-se confundido as exigências legais estatuídas para padrinho ou madrinha com as condições de vida dos pais, que não se escolhem, mas a quem se deve obediência na menoridade e respeito para sempre. É certo que a ação pastoral, sobretudo após o Concílio Vaticano II e a promulgação do Código de Direito Canónico por João Paulo II, em 1983, aconselhou vivamente a promoção da consciencialização e responsabilização de pais e padrinhos frente a este sacramento da iniciação cristã, de que resultou a organização dos CPB (Cursos de Preparação para o Batismo), os quais, tornando-se quase obrigatórios nunca constituíram condição sine qua non. Desde miúdo e nos ambientes que me foi dado conhecer e em que tive de intervir, sempre vi e pratiquei a prática inclusiva, no por muitos declarado pressuposto de que os filhos não podem ser responsabilizados pelos atos dos pais. Claro que sempre foi de respeitar os poucos casos em que os pais se opunham. O mesmo não se entendia em relação aos padrinhos, que tinham obrigatoriamente de haver recebido o batismo e, em situações normais, deviam ter uma vida em consonância com a fé cristã, ter a intenção de servir como verdadeiros padrinhos. E, enquanto o velho código, promulgado em 1917 por Bento XV, exigia que o padrinho e a madrinha tivessem atingido o uso da razão, o código de 1983 exige a idade de 16 anos e a receção do sacramento da confirmação ou crisma.

Mas vejamos o que reza a legislação canónica nos dois aludidos documentos, no atinente ao sujeito do batismo, se se tratar de criança, e aos pais. Não me deterei nos pressupostos filosóficos que enformam qualquer um dos referidos instrumentos legislativos nem a orientação teológica à luz da qual foram plasmados. Todavia, importa assegurar que entre o concílio ecuménico que precedeu cada um deles a promulgação do conveniente instrumento canónico mediou tempo suficiente para a formulação teológica pós-conciliar.

O Código de 1917 dedica ao assunto, no Livro III, sob a epígrafe “de rebus” e sob os designativos “de sacramentis” e “de baptismo”, os cânones 745 a 751. Define como sujeito do batismo todo o ser humano (e só ele) que peregrina no mundo (“viator”), ainda não batizado (C.745), e define como criança o ser humano que não tenha ainda atingido a idade de sete anos, a quem equipara os seres humanos que sejam destituídos do uso da razão. Nas restantes situações vale a disciplina vigente para os adultos. É óbvio que aquele código pressupõe como normal o ambiente de cristandade. Mesmo assim, fornece indicações minuciosas sobre o batismo sob condição ou em absoluto de crianças em fase de nascimento, crianças deformadas (CC.746, 747 e 748). Por sua vez, o cânone 749 determina que os expostos e os encontrados (“infantes expositi et inventi”) sejam batizados condicionalmente, a não ser que haja certeza segura de que já tenham sido batizados; o cânone 750, para as crianças que sejam filhas de pais infiéis (ou seja, aqueles que não têm fé), e o cânone 751, para crianças filhas de pais não católicos (ou em que um deles o não seja) ou que tenham incorrido em heresia, cisma ou apostasia, estabelece: que são licitamente (não diz obrigatoriamente) batizadas mesmo que os pais se oponham, desde que se preveja que venham a morrer antes de atingido uso da razão; e, fora do perigo de morte, são licitamente batizadas desde que seja acautelada a sua educação católica nos seguintes termos: se os pais ou tutores (ou, pelo menos, um deles) consentirem no batismo; ou se a criança se encontrar na situação de falta, abandono ou perda de vínculo por parte de familiares ou tutores. Como se vê, a legislação vigente até 1983 não impedia a ministração do batismo a filhos de mães solteiras (e eles não foram inventados a partir do último quartel do século XX) nem a filhos de pais casados apenas pelo civil (e em 1917 já pululavam as repúblicas com as leis do divórcio, do registo civil e da separação entre as Igrejas e os Estados).

Quanto ao código de João Paulo II, pontífice que não foi menos missionário que Bento XV, temos a matéria inserta no Livro IV (“do múnus santificador da Igreja”), na sua parte I (“dos sacramentos”) e no título I (“do batismo”) O cânones respeitantes ao nosso tema têm os números 864 (que também considera como sujeito do batismo todo e só o homem ainda não batizado) e de 867 a 871. O cânone 867 preceitua que, fora do perigo de morte, caso em que a criança deve ser batizada sem demora, os pais procurem, logo nas primeiras semanas, tratar do batismo do filho, pedindo o batismo ao pároco respetivo e preparando-se devidamente. O cânone 868 requer para a licitude do batismo o consentimento dos pais ou de quem as suas vezes fizer e a esperança de educação católica. Caso esta esperança falte totalmente, o batismo deve ser diferido no tempo indicando-se aos pais o motivo. Ora quantos não são serão os atos de batismo em que os pais tudo prometem cumprir, para que haja festa e beneplácito dos “arquiparentes”, e no dia seguinte dizem adeus à Igreja! O mesmo cânone refere que em perigo de morte filhos de pais católicos e até de não católicos são licitamente batizados mesmo contra a vontade dos pais. Por seu turno, o cânone 869 dispõe que, na dúvida sobre a existência do ato de batismo ou sua validade, o batismo deve ser ministrado sob condição. O cânone 870 manda que se batize a criança exposta ou encontrada (“infans expositus aut inventus”), a não ser que séria investigação conduza à certeza segura de já ter sido batizada. E o cânone 871 manda, quanto possível, batizar os fetos abortivos, se estiverem vivos.

Pelo exposto, tem de concluir-se como abusiva a prática excludente que foi alastrando por diversas parcelas territoriais da vetusta Igreja Católica, quiçá a coberto da procura de maior responsabilização, a par de ostensivo facilitismo noutras situações, sobretudo de apadrinhamento. Por isso, dificilmente se pode alinhar na declaração do porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa que se atém à generalizada “interpretação restritiva” da legislação eclesiástica e que ninguém deve ser “mais papista que o papa”.

Finalmente, quanto à atitude de Francisco, embora visualmente corajosa frente a algumas práticas indevidamente excludentes, a meu ver, e simpática aos olhos dos bem-intencionados e da opinião pública, que preza o achamento de diferenças substanciais nestes gestos pontificais, não passa de apelar ao mínimo de bom senso e de repor as coisas nos seus devidos termos – o valor e a importância do batismo (e mesmo da sua necessidade eclesial) acima das condições de quem o solicita “razoavelmente”, como ensinava a generalidade dos professores de Teologia Moral, mesmo antes do Vaticano II (Lembram-se os lamecenses do velhinho Morais e Costa ou dos lidos e relidos Eduardo Regatillo e Piñero Carrion?).

Ditaduras em democracia

14-01-2014 17:54

Ditaduras em democracia

Juro à fé de quem me ouve ou lê que não quero contrapor minha reflexão ao pós-título “a tortura em democracia” da socrática obra “a confiança no mundo”. Este arrazoado resulta da recorrência da propalada ditadura do “relativismo” enunciada pelo cardeal Ratzinger na abertura do conclave que o elegeu a 19 de abril de 2005, reiteradamente abjurada por si mesmo enquanto papa reinante sob o nome de Bento XVI e crismada, nestes dias, sob o designativo de ditadura do “descartável”. Tendo as duas ditaduras, salvo seja, a mesma natureza exclusivista, a ditadura do descartável apresenta, a meu ver, uma hediondez maior, porque mais do que relativizar conceitos, dinamismos e objetos, o que já de si leva ao descarte, a tentação eficaz do descarte levará ao “emprateleiramento” de pessoas e a negar-lhes lugar e lugar condigno no mundo. Sendo abundantes os exemplos, hei necessariamente de me ater apenas a alguns.

Começo logo pela drástica diminuição da natalidade, que, se fosse ditada pelo excesso de população a nível local e regional, ainda seria o menos. Porém, a burocrática “desincentivação” à maternidade/paternidade, o democrático direito dos potenciais progenitores ao conforto pessoal e familiar, o ataque patronal à proliferação dos(as) trabalhadores(as), a penúria das condições económicas e sociais, em que ganha vulto o desemprego, tantas vezes sem fim à vista, ou as precárias relações laborais, os progressivos encargos com a educação, o prolixo consumismo que enreda o nascimento das crianças e sua vida pré-escolar, escolar e social – mais do que a equilibrada saúde materna – tornam consideráveis rincões do orbe inacessíveis a novos seres. Felizes os privilegiados que logram um lugar ao sol nesta enorme teia de egoísmos! E que dizer da contraceção quando imposta pelos poderes públicos ou seus agentes?

Se deambularmos pelo mundo do trabalho, seja ao nível estritamente laboral, seja no campo empresarial ou do empreendedorismo, se encararmos a administração pública e o universo da política, o panorama privilegia a qualificação baseada no grau académico e na jovialidade, nem sempre consequente das unidades humanas de laboração e intervenção. Escreve-se apreço pela senioridade, mas cria-se ambiente de desconforto ou sobreoneração aos mais experientes, a quem se oferece, em alternativa, a aposentação antecipada, o aumento da idade legal da reforma, a rescisão amigável, a redução salarial, a extinção do posto de trabalho, o encerramento de serviços e o despedimento coletivo. Descartam-se pessoas, empresas, estatutos e serviços com uma pinta impensável há uma dúzia de anos. Ditosos os trabalhadores, os empresários e os poucos políticos que resistem à erosão do descarte, que nem sempre são os mais competentes! E pontificam intocáveis aqueles que, graças à sua qualificação académica (às vezes, o 12.º ano) e à sua notória experiência profissional (proveniente tantas vezes do simples facto da filiação de algo e de uns meses de prática simulada) balançam entre gabinetes e cargos governamentais e gabinetes e cargos cimeiros da administração pública ou privada.

E os idosos? É tão penoso o aumento da esperança média de vida que tudo fica condicionado ao seu cálculo: a idade e o montante da aposentação/reforma, os salários, os protocolos para exames complementares de diagnóstico, os seguros de saúde e de vida. Depois, vêm os lares a funcionar legal ou ilegalmente, sob o signo do enceramento iminente, propagandeia-se a legitimação e “bondade” da eutanásia e disseminam-se os incómodos e os ditos despicientes!

E tudo surge nas pantalhas da discussão e da ação persuasiva sob o signo das ditaduras da inevitabilidade, da honra dos compromissos solenemente assumidos com os credores internacionais, do não enervamento dos mercados financeiros e da obrigação de acautelar o futuro dos filhos e netos!

Não posso omitir outros epifenómenos, de que destaco: a libérrima República Francesa proíbe o véu islâmico nas escolas e a burka nas ruas, mas autoriza a proliferação das mesquitas (se possível, sem os minaretes); por pressão da diminuta ARL (Associação República e Laicidade), as nossas escolas penalizaram com a expulsão os crucifixos. É óbvio que o Estado é aconfessional, o ensino público não pode ser pautado por critérios religiosos, mas também é linear que praças, ruas, caminhos, cemitérios e edifícios estão pejados de crucifixos, para não falarmos do peitos e pescoços de muitíssimas e ilustríssimas senhoras e não poucos senhores novos. Não creio que a sociedade, sobretudo a sua vertente comercial, suportasse a iconoclastia decorrente da letra da laicidade do Estado e da epistemológica pretensão da poderosa ARL. No quadro da lei da liberdade religiosa, que respeita a separação Estado/religiões, mas aceita a intervenção das confissões religiosas no ensino público, não percebo como é que, para lá dos símbolos habituais, não têm legitimado lugar outros como o crescente, a estrela davídica, o alcorão ou a bíblia. Não se estará desenhar no mundo assumidamente democrático uma incongruente cultura da promoção da desigualdade, da controvérsia, da constrição, em nome exatamente da igualdade, da fraternidade e da liberdade?

Vejamos o que nos leva a pensar um conceito moderno e arejado de democracia, que galgue as contradições da Revolução Francesa, livre que persegue e mata, democrática que afunila no império napoleónico; ou as da nossa Primeira República, em que todos tinham lugar, mas muitos tiveram de se esconder.

Democracia será a forma de governo em que todos os cidadãos participam em regime de igualdade — diretamente ou através de representantes livremente eleitos, os deputados — na proposta, no desenvolvimento e na criação das leis. Comporta necessariamente as condições sociais, económicas e culturais que facultam o exercício livre e igual da autodeterminação política e consequente intervenção.

Duas formas básicas de democracia se implantaram ao longo do tempo, ambas atinentes ao modo como o corpo inteiro dos cidadãos executa a sua vontade. Uma delas é a democracia direta, em que todos os cidadãos têm participação direta e ativa na tomada de decisões do governo. Contudo, na maioria das democracias modernas, todo o corpo de cidadãos detém originariamente o poder soberano, mas o poder político é exercido indiretamente por meio de representantes eleitos, nos termos constitucionais, o que é designado por democracia representativa.

Muito embora não exista consenso sobre uma definição unívoca de democracia, todos atinam em que a liberdade, a igualdade e o Estado de Direito  compaginam caraterísticas importantes suas desde os tempos antigos. Estes pressupostos tornam-se evidentes quando todos os cidadãos são iguais perante a lei e, nessa qualidade, têm igual acesso aos processos legislativos e à ocupação de cargos públicos. Por exemplo, na democracia representativa cada voto tem o mesmo peso, não existem restrições excessivas sobre quem quer se tornar um representante, além da liberdade de os seus cidadãos elegíveis ser protegida por direitos legitimados e que são tipicamente protegidos pela respetiva Constituição.

Do lado teórico, a democracia exige três princípios fundamentais: a soberania reside nos níveis mais baixos de autoridade e deles emana; a igualdade política; e normas sociais (leis, estatutos e regulamentos) pelas quais os indivíduos e as instituições só consideram aceitáveis ​​atos que refletem os outros dois princípios.

A democracia deve incluir elementos fundamentais como: o pluralismo político, a igualdade perante a lei, o direito de petição  para reparação de injustiças sociais e assimetrias regionais e locais;  o processo legislativo efetivo, participado e transparente; as liberdades cívicas; os direitos humanos; e a atenção aos elementos da sociedade civil que atuam fora da área da governança. Conforme assegura Roger Scruton, a democracia por si só não pode proporcionar liberdade pessoal e política, a menos que as instituições da sociedade civil tenham nela efetiva e significativa presença.

Frequentemente o regime da maioria absoluta é considerado como uma caraterística da democracia. Porém, o sistema democrático alicerçado unicamente no poder da maioria permite que minorias políticas sejam oprimidas pela “tirania da maioria” quando não há proteções legais dos direitos individuais ou de grupos. Uma parte essencial da democracia representativa "ideal" são as eleições competitivas que sejam justas tanto no plano material, como no plano processual e formal. Além disso, as liberdades como a política, a de expressão, a de imprensa, a de reunião e a de manifestação são consideradas direitos essenciais que permitem aos cidadãos serem adequadamente informados e aptos a votar e a assumir outro tipo de intervenção de acordo com seus próprios interesses.

Há também uma característica da democracia, hoje considerada basilar, que é a capacidade de todos os eleitores de participarem livre e plenamente na vida da sociedade. Com a sua ênfase nas noções radicais de contrato social e de vontade de todos os cidadãos, livre e assiduamente expressa, a democracia também pode ser caraterizada como a forma mais genuína de coletivismo político, se ela consubstanciar uma forma de governação em que todos os cidadãos têm uma palavra a dizer de peso igual nas decisões que afetam as suas vidas. E a democracia afirma-se efetivamente na obediência à manifesta e clara vontade da maioria, mas com o escrupuloso respeito pelos direitos e pelas legítimas aspirações do indivíduo e das minorias. Tanto assim é que os parlamentos e os órgãos de direção estratégica das coletividades, em vez da representação maioritária, são atualmente constituídos através do método de representação proporcional pela média mais alta de Hondt.

Concluindo, um conceito moderno e arejado de democracia, à luz da nossa Constituição, deveria ser capaz de sanear a nossa sociedade dos atropelos que a enxameiam em nome das inevitabilidades, fazendo sobressair indelevelmente os valores da ética e da legalidade e os princípios da igualdade e da equidade, da proporcionalidade e da universalidade, da confiança e da atenção aos direitos adquiridos, do seguimento inabalável da vontade da maioria e do respeito escrupuloso dos direitos de cada um e da minoria que integre.

O anticlericalismo do Papa Francisco

13-01-2014 22:44

O anticlericalismo do Papa Francisco

O papa eleito a 13 de março de 2013 está a operar uma revolução do visual do topo da Igreja Católica. De um modo geral, a sua atuação é encarada com simpatia, embora necessariamente corra alguns riscos, que eventualmente podem redundar em resultados desagradáveis. São, no entanto, de destacar duas posições contraditórias: a de quem se diz agnóstico e até ateu e adere ao franciscanismo de Bergoglio e anota tudo quanto ele diz ou faz de positivo em termos antropológicos; e a dos ultraconservadores em cristianíssima vida, que o acusam de marxista e anticlerical, irmanados na reação daqueles que, na alegação de que era de esperar mais, já se mostram desiludidos porque não avança com determinadas opções contrárias aos costumes defendidos tradicionalmente pela hierarquia católica, como: a abolição do celibato eclesiástico obrigatório, a ordenação sacerdotal de mulheres, o casamento de pessoas do mesmo sexo, a contraceção, o relacionamento desempoeirado com os divorciados recasados, a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (eufemismo para designar o aborto) e a eutanásia.

Simpatizando com o acolhimento dado à palavra e aos gestos papais por parte de quem se sente do lado de fora, só gostaria de que tal acolhimento progredisse em aprofundamento do pensamento em bases verdadeiramente antropológicas com todas as consequências e não configurasse uma simples adesão à atitude de uma imprensa alargada que desde cedo se tornou amiga do atual bispo de Roma. Por outro lado, dou de barato o labéu com que lhe queiram atirar de marxismo ou coisa parecida. Perante o panorama em que a crise pandémica lançou o mundo, quero lá saber qual a ideologia dos críticos. Haja, sim, quem denuncie as causas da crise, trave os resultados e proponha soluções sustentáveis para o bem-estar de todos, mormente dos que não têm (ou deixaram de ter) vez e voz. Também não creio que Francisco, na sua vis reformista, desdiga uma vírgula da doutrina católica e costumes que ela inspira nem mexa profundamente nas questões disciplinares meio fraturantes, como são o celibato eclesiástico obrigatório na Igreja Latina, que não na oriental, e a não ordenação sacerdotal de mulheres, embora as queira colocar em importantes centros de decisão.

E que dizer do propalado anticlericalismo?

Na Igreja Católica distinguem-se duas condições: a laical e a clerical. Uns são os leigos, membros do povo de Deus, em razão do batismo; e outros, que, sem deixarem de ser povo de Deus assumem um serviço específico e constituem o clero. Até à promulgação, em 15 de agosto de 1972, da Carta Apostólica “Ministeria Quaedam” por Paulo VI, entrava-se na clerezia com a cerimónia da Prima Tonsura, em que o bispo cortava umas repas de cabelo na cabeça do candidato e o dava como pertencente ao clero, após o que ele deveria ostentar no alto da cabeça uma rapadela de cabelo em círculo que se denominava de coroa. Seguiam-se as ordens menores – ostiário, exorcista, leitor e acólito – tidas como verdadeiros ministérios. Depois, vinham as ordens maiores – subdiaconado, diaconado, presbiterado (os sacerdotes padres) e, em casos específicos, o episcopado (os sacerdotes bispos). Com o subdiaconado assumia-se a obrigação de rezar diariamente o ofício divino, conhecido como o breviário. Sacerdotes (exerciam o sacerdócio ministerial, porque o sacerdócio comum era e é o de todos os que são batizados) eram os padres e os bispos. Clérigos eram todos os acima referidos que não fossem leigos. Depois da exaração e publicação daquela carta apostólica, em consonância com as determinações do Concílio Vaticano II, a Prima Tonsura e as Ordens Menores ficaram suprimidas e a entrada no clero passa a suceder aquando da ordenação de diácono. Os candidatos ao sacerdócio ministerial devem ser instituídos nos ministérios de leitor e de acólito (podendo este continuar a ser chamado de subdiácono), a conferir pelo bispo ou pelo superior maior de instituto religioso. A seguir, vem o diaconado, que pode ser transitório rumo ao presbiterado ou permanente, caso em que pode ser conferido também a homens casados, devidamente formados e amadurecidos na vida, que não voltarão a casar em caso de viuvez.

Ora da condição de clérigo facilmente se passa ao clericalismo, que consiste, entre outros fatores, no caráter quase sacral do traje próprio, nas imunidades, na pretensa supremacia frente aos leigos, na impossibilidade psicossocial de execução de determinadas atividades, na procura e manutenção de múltiplos privilégios, na contraindicação de frequentar certos espaços e assim por diante. Mais: ao clero – que devia ser dispensado do serviço militar, não devia exercer a advocacia, a medicina e a atividade comercial – competia ensinar a doutrina (era a expressão da Igreja docente); ao leigo cabia somente aprendê-la (era a expressão da Igreja discente).

Porque a condição clerical se tornou excessiva na atitude, posição social, vivência como casta à parte, acessível a quem não o deveria ter sido, com base em prebendas, e porque se criou a confusão por muita gente aceite de que frades e freiras também pertenciam ao clero – começou a desenhar-se, a crescer e a agigantar-se a onda anticlerical. Mas a causa não vem somente do clero. O racionalismo, num determinado momento, o liberalismo, o marxismo e o positivismo, com o republicanismo exacerbado potenciaram exponencialmente o combate já não somente ao clero, mas à Igreja e à própria religião. Inclusivamente, decisões legislativas em si mesmas boas, por mais consentâneas com o avanço civilizacional – como a declaração dos direitos do cidadão, a separação da Igreja do Estado, o Registo Civil, a divisão dos poderes políticos – foram produzidas em contexto ferozmente anticlerical, a ponto de se criar a ideia da incompatibilidade entre catolicismo e república e se confundir clero e religião, traje eclesiástico e estado clerical.

Nestes dias, apesar de se ter acertado na igualdade fundamental de todos enquanto povo de Deus e embora se tenha esbatido a diferença entre as ditas igreja docente e igreja discente, passando todos a ensinar e a aprender de acordo com o seu grau de formação, mantém-se um certo clericalismo. Assim, querem alguns que os padres vivam somente do altar, mas tornam-se mesquinhos no contributo para o sustento do clero; querem outros que os padres se pronunciem sobre quase tudo, mas acusam-nos de se meterem aonde não devem. Por outro lado, parece haver a tentativa de fazer dos leigos uma espécie de padres de segunda para obviar à falta de clero. E lá vêm as orientações de topo: a evangelização é tarefa de todos, mas compete aos leigos envolver-se a fundo na vida económica social e política e imbuí-la do espírito evangélico – com todas as suas consequências de palavra, oração e ação – cabendo aos pastores (bispos e padres) a palavra de estímulo, impulso e moderação, sem se perderem nas querelas partidárias, a presidência às funções litúrgicas e o zelo pela pureza da doutrina e dos costumes.

E o papa, que posição tem assumido neste contexto?

Todos o sabem: com o povo de Deus é cristão (pede que rezem, mistura-se como as pessoas, vai um pouco ao encontro de todos os que lhe escrevem, falam ou acenam, beija, abraça, coça a cabeça…); para o povo de Deus, é o bispo de Roma, pelo que abençoa, prega, desloca-se, mostra-se em gestos pouco usuais; para o mundo, tenta ser uma voz incómoda e de esperança e ser testemunha do acolhimento de Cristo.

Mas mais do que “anticlerical” – contra imunidades indevidas, manutenção de privilégios, combate ao carreirismo eclesiástico, repreensão a padres e bispos por abusos, por gastos excessivos, por viagens demasiado frequentes – ele é sobretudo “aclerical”.

Em que consiste o seu aclericalismo? Que os pastores se envolvam nos ambientes e não fiquem permanentemente em casa ou no templo (fica na memória o lava-pés a duas mulheres, sendo uma delas não cristã); vão aonde não é fácil (ser pastores, mas com o odor das ovelhas) e não amoleçam nos ambientes costumeiros; ajam sobre a base sustentante da oração (não rezar sem agir, não agir sem rezar); sejam promotores da fé e não seus fiscais; e sejam fautores da responsabilização, mas não recusam os bens da salvação a quem os solicite (fica registado o batismo a filho de mãe solteira e a filha de pais casados civilmente – parece ter-se confundido nos últimos tempos as condições de apadrinhamento com as da paternidade / maternidade). Prefere viver em Santa Marta com as pessoas e não isolado no apartamento do Palácio Apostólico, que será desconforme, mas não luxuoso. Renuncia à limusine e ao papamóvel blindado – corre risco que não teme. Quis viajar no Rio de Janeiro em automóvel normal e ficou engarrafado no trânsito. É a vida!

E são estes alguns dos factos que emolduram aquilo que no Papa Francisco parece compaginar uma certa rutura, um aclericalismo e, certamente, um desconforto para quem estava demasiado formatado num quase imobilista dinamismo eclesial. Porém, não fica vacinado contra algumas ambiguidades. Por exemplo, criticar os bispos que viajam pode, ao salientar a responsabilidade pela própria diocese, fazer obnubilar a paulina solicitude por todas as Igrejas ou envolver uma crítica à designação de bispos só com título de diocese já não existente, só para garantir o exercício de cargo. A residência em Santa Marta implicará a inacessibilidade da unidade hoteleira a outros clientes; e a censura ao bispo alemão gastador terá sido feita atendendo a um manifesto de populares e pode não ter implicado a distinção entre o erário da diocese e o da casa episcopal, habitualmente colocados em campos e responsabilidades diferentes.

Resta saber porque é que palavras bem eloquentes e gestos similares dos predecessores foram tão ingloriamente esquecidos. Mas oxalá que se vá a tempo!

O país do absurdo

13-01-2014 13:46

O país do absurdo

Ao ler, no semanário O Diabo, do passado dia 7 de janeiro, um artigo do tenente-coronel piloto-aviador Brandão Ferreira, dei comigo a interrogar-me se o Portugal de Afonso Henriques, Dom João II, Carmona e Cavaco Silva não se terá transformado numa floresta de absurdos.

O militar referido, cuja tendência política não me apraz discutir, ensina que usualmente na hierarquia das forças armadas e/ou de segurança (não o sigo ipsis verbis), quando uma personalidade exerce cargo cimeiro de comando e direção e, por motivos diversos, tem de cessar funções, passa à situação de reserva ou equivalente, ou seja, não vai desempenhar funções em patamar inferior. Tal, porém, não sucedeu com o diretor nacional da PSP na sequência da sua demissão ocasionada pela escalada da escadaria de acesso ao Parlamento por parte dos agentes policiais aquando da sua megamanifestação. Foi, antes, ocupar um lugar criado em Paris – há quem diga que ajeitado adrede apara si. E esclarece o distinto oficial da Força Aérea que tal situação decorre do facto de ter havido, em tempos, o propósito de inviabilizar a permanência de oficiais provenientes das forças armadas no comando da PSP – o que terá dado como resultado que os oficiais da PSP formados na escola superior de polícia não dispuseram de tempo que abonde para que possam chegar aos escalões superiores com a consecução da idade mais adequada. Contudo, tal não quererá dizer por si só que não desempenhem os cargos com profissionalismo e correção, só que – digo eu – podem esgotar a carreira em tempo demasiado curto para que possam ser “emprateleirados” em momento plausível.

A leitura do artigo em causa subordinado ao título “o delírio na segurança e na defesa” trouxe-me à colação outras decisões governativas e parlamentares esquisitas e de consequências nada incontroversas. Recordo algumas, meramente a título de exemplo.

Na década de 90 do século anterior, a famosa lei dos coronéis que, num primeiro momento, o então Presidente Mário Soares vetou, levou à reserva e à reforma antecipadas uma tal avalanche de oficiais que o Ministério da Defesa Nacional se obrigou a tornar a recrutar alguns para assegurar o funcionamento dos serviços, já que a experiência dos civis era fraca ou nula, na matéria.

Na mesma década, embora com resultados verificáveis já na primeira década deste milénio, por pressão das Jotas, nomeadamente da socialdemocrata, foi abolido o serviço militar obrigatório e o sistema normal passou ao do regime de contrato, com a institucionalização do Dia da Defesa Nacional e a isca da criação de cursos profissionais em ambiente militar. Ora, verificou-se que nem a vocação militar voluntária se consolidou nem o orçamento da Defesa se quer dar ao luxo de gastar dinheiro com a defesa razoável. Temos uma defesa mais exígua que o “Estado exíguo” e vamos cumprindo garbosamente as ditas missões internacionais de paz.

O periódico referido tem uma peça jornalística do coronel engenheiro Eduardo Brito Coelho, sob o designativo de “indústrias de defesa (II)”, que nos dá conta da progressiva destruição (até às exéquias finais) das unidades de construção e reparação naval e das OGMA (oficinas gerais de material aeronáutico). E diz o insuspeito engenheiro militar que, tendo começado por substituir, na gestão daqueles campos de atividade, as pessoas experientes por “por ‘boys’ e amigos”, tal se deve “às opções de fundo e às orientações profundamente erradas, que ditaram, ao longo dos últimos anos, que tudo se fosse perdendo ao nível de capacidades e de importantes setores fabris” e se estabelecesse o quadro económico e social patente aos olhos de todos.

Agora, ao olharmos para a Noruega e a Suíça com enorme painel de fortes indústrias e de excelência no âmbito da defesa, diz o coronel que “o caso da brasileira EMBRAER, protagonista do desenvolvimento mais promissor para o nosso país, em anos recentes, no setor da aeronáutica e da defesa, dá-nos algum alento”. Pena é, segundo julgo, que o alento tenha de vir do estrangeiro, ainda que alegadamente amigo.

Mas não podemos esquecer a subsidiodependência em relação aos “eurofundos”, sobretudo àqueles que deram em deitar poeira para os olhos e mesmo aplicação fraudulenta, para não falarmos dos que incentivavam a cessação da produção e até o arranque de árvores fruteiras. E foi nessa onda de implantação – sem resultado consolidado, até porque a praga incendiaria, agora de época excessivamente prolongada, não nos deixa postos em sossego – da grande reserva florestal neste canteiro à beira mar, que se destruiu a agricultura, as marinhas (mercante, comercial, de guerra e de pesca, pois, mais não havia), o comércio local. Ficou-nos o consolo de oferecer sol, praia e ar puro, conspurcado pelo fumo, em regime de asilo a velhos a quem jovens simpáticos iriam servindo guloseimas e bebidas em bandejas tão graciosa como móveis. Só que veio a troika estrangeira (FME, EU, BCE) chamada pela portuguesa troika (PS,PSD, CDS) e obedecida pela maioria governativa (troika menos um), apesar das irrevogáveis linhas vermelhas que se iam definindo. E o “pouco ajustamento e muita dor”, por causa da “terapia inexperiente por gestão pouco competente (Presidente do CES dixit) retiraram-nos dinheiro por todas as vias, deram cabo da classe média, ofuscaram o futuro da vida e do trabalho. E instalou-se a desconfiança e a inveja: combate ao funcionário público, cerceamento das condições de vida de reformados e aposentados, sobrecarga de funções do trabalhador público, proscrição dos mais experientes e mais antigos, encerramento de serviços, venda a privados do pouco serviço público que existia, degradação da escola pública e dos serviços públicos de saúde e progressiva entrega a privados.

Por fim, depois de tudo isto, acenam-nos absurdamente com um futuro de progresso, um Estado reformado (agora, recalibrado!) e apregoam-se os inesgotáveis recursos marinhos, a agricultura, o turismo, a internacionalização, o emprego!

E os que não acertavam uma seguiram o exemplo daqueles que por eles tinham sido aconselhados a emigrar, mas depois de terem cumprido a missão ao serviço dos “credores”, abandonado que foi a capacidade de negociação e o esquema mutualista: Vítor, para o FMI; Álvaro, para a OCDE; e José Luís para a Goldman Sachs, como já o tinha feito, por exemplo, Catroga e Cardona para a EDP dos chineses. E Sócrates regressou de Paris, depois de estudar Filosofia ou Ciência Política (perdoem-me que eu já não sei bem), e, num contexto de selvajaria pandémica de capitalismo desenfreado, vem dissertar sobre a confiança no mundo! Parece que Tó Seguro não terá apreciado seguramente…

E ainda me dizem que este é o país de Dom Afonso III, o que chegou ao Algarve!

 

 

São Gonçalo de Amarante

12-01-2014 20:14

São Gonçalo de Amarante

O Beato Gonçalo de Amarante, OP, conhecido como São Gonçalo de Amarante, goza de grande devoção popular. Existem, em sua honra, as Festas de São Gonçalo, é invocado contra verrugas e cravos, celebram-no como casamenteiro de velhas e adotam-no para males da vida matrimonial. Vivem alguns da superstição de que quem tocar com a mão a sua imagem casará durante o ano em curso – superstição que hei por bem desmentir naquilo que me diz respeito.

Nasceu Gonçalo, aí pelo ano 1200, nos alvores da nacionalidade, da família dos Pereiras, no lugar de Arriconha, onde, desde tempos remotos, existe capela a si dedicada, na freguesia de Tagilde, próxima de Vizela, ora sede de concelho. Os pais, de nobre e piedosa linhagem, deram ao filho esmerada educação cristã, sob a égide do mosteiro beneditino de Pombeiro, não só pela palavra como, sobretudo, pelo exemplo da vivência das virtudes cristãs. E, logo que o menino atingiu o uso da razão, confiaram-no a douto e virtuoso sacerdote sob cuja direção prosseguiu os estudos. Passou a distinguir-se pela modéstia, candura, esforço de aperfeiçoamento na prática da vida cristã e progressos notáveis no domínio dos estudos. Foram estes, entre outros, os motivos que moveram o Arcebispo de Braga Dom Estêvão Soares da Silva a admiti-lo, como seu familiar e aluno na escola arquiepiscopal, tendo, sob os auspícios daquele prelado, cursado as diversas disciplinas eclesiásticas, após o que foi ordenado sacerdote e, não obstante a sua extrema juventude, nomeado pároco da freguesia de São Paio (ou são Pelágio) de Riba Vizela, junto à terra natal, mau grado a sua humilde resistência.

No desempenho do múnus pastoral, além das costumeiras virtudes, destacavam-se o zelo apostólico, a castidade e a prática das obras de misericórdia corporais e espirituais, gastando a mor parte dos rendimentos da paróquia na minoração das necessidades materiais da grei, sem que as necessidades espirituais fossem passadas para segundo plano, a todos prodigalizando amor e consolação.

Anelando ardentemente a visita aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, considerados como as colunas da fé, e os lugares santos da Palestina, a fim de melhor viver os mistérios da vida de Cristo, obtida a licença episcopal, deixou os paroquianos à cura dum sobrinho sacerdote e peregrinou durante catorze anos: primeiro, a Roma, depois a Jerusalém e demais terras da Palestina, onde se demorou catorze anos e se inflamou do zelo apostólico.

Entretanto, um certo remorso por tão longo abandono da paróquia, as saudades da pátria e de seus filhos espirituais e o pressentimento dos males espirituais de que padeceriam, talvez devido à falta de zelo de seu sobrinho, motivaram-no ao regresso, apesar dos inumeráveis incómodos e perigos que a viagem pressupunha.

O sobrinho, além de o não reconhecer como verdadeiro e legítimo pároco, escorraçou-o de casa e logrou, mediante documentação falsa, provar ao arcebispo Dom Silvestre Godinho que Gonçalo morrera, pelo que se alcandorou a pároco da freguesia.

Gonçalo, resignado com semelhante atitude, deixou São Paio de Riba Vizela e foi-se a pregar o Evangelho por aquelas terras até à margem do Rio Tâmega, onde encontrou o lugar onde hoje se exibe a cidade de Amarante, sítio então inculto e quase despovoado, mas apto para a vida eremítica. Ali construiu a pequena ermida de Nossa Senhora da Assunção, onde se recolheu, saindo, de vez em quando, a pregar nas redondezas e consagrando o tempo sobejante à oração e à penitência.

No entanto, sentindo a necessidade de encontrar uma via mais segura em ordem a alcançar a felicidade eterna, jejuou uma quaresma inteira a pão e água e suplicou fervorosamente a Nossa Senhora lhe alcançasse do Senhor esta graça. Diz-se que a Virgem Maria lhe aparecera e lhe dissera procurasse a ordem em que iniciavam o seu Ofício com a Saudação angélica, isto é, a Ave-Maria. Essa era a Ordem dos Pregadores  (OP) ou Dominicanos.

Abraçada a vida dominicana, encaminhou-se para o Convento de Guimarães, recentemente fundado por São Pedro González Telmo, grande apóstolo da região de Entre Douro e Minho, o qual lhe impôs o hábito e, após o noviciado useiro, o admitiu à profissão religiosa. Segundo Gaspar Estaço, terá sido feito cónego da Colegiada de Guimarães. Seja como for, passado relativamente pouco tempo, conseguiu licença para, com um outro religioso, voltar para o seu eremitério de Amarante, continuando a sua vida evangélica e caritativa.

No seu ministério, o religioso operou muitas conversões e prestou eficaz assistência nas doenças, o povo entregou-se decididamente à prática duma autêntica vida cristã e a promoção social cresceu a olhos vistos. Sobressai, durante a sua permanência em Amarante, a edificação da ponte em granito sobre o rio Tâmega, angariando pessoalmente donativos em terras circunvizinhas e levando os moradores mais abastados a darem ajuda vultosa para assim se pagar aos operários.

Concluída a ponte, durante cujas obras se terão operado numerosos milagres, mesmo de ordem material, Gonçalo passou ainda alguns anos dedicado à pregação e à vida de oração, robustecendo-se em virtudes e merecimentos. Conta-se que Nossa Senhora lhe revelara o dia da sua santa morte para a qual se preparou com a receção dos sacramentos da reconciliação, da santa unção e da eucaristia ministrada sob forma de viático.

Segundo o historiador seiscentista da obra dominicana, Frei Luís de Sousa, o homem de Deus descansou santamente no Senhor, a 10 de janeiro de 1262, o seu dies natalis (para a Igreja, o dia do nascimento para o Céu), que passou a ser também o dia da sua celebração hagiológica. O seu venerado corpo, após a celebração das exéquias solenes em sufrágio por sua alma, foi sepultado na referida ermida, continuando a efetuar-se muitos milagres, atribuídos à sua poderosa intercessão.

Ampliada mais tarde em igreja a ermida primitiva construída por São Gonçalo, o piedoso Dom João III mandou erguer sobre esta, em 1540, o sumptuoso templo e convento que ainda hoje existem e que são monumento histórico da cidade de Amarante, de que São Gonçalo pode muito bem ser considerado o segundo fundador e de que se tornou o santo padroeiro e protetor. É igualmente o padroeiro das cidades de São Gonçalo de Amarante nos estados brasileiros do Rio Grande do Norte e do Ceará. Depois, o corpo do Beato Gonçalo passou a repousar na capela-mor da igreja, do lado do Evangelho, ou seja, à esquerda de quem se volte para o altar-mor.

Três processos canónicos se efetuaram rumo à beatificação e canonização do servo de Deus, o último dos quais foi levado a cabo por Dom Rodrigo Pinheiro, Bispo do Porto, por comissão do Papa Pio IV, em 1561. A instâncias de Dom João III e Rei Dom Sebastião, do Arcebispo de Braga Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, da Ordem dos Pregadores, do Cardeal Dom Henrique e da população amarantina, a sentença de beatificação foi promulgada a 16 de setembro de 1561, já depois da morte do rei piedoso, pelo representante de Pio IV e da  Sé Apostólica, confirmando-se a concessão de lhe tributar culto público, já permitido pelo Papa Júlio III, dez anos antes.

Mais tarde, o Papa Clemente X, em 10 de julho de 1671, estendeu a toda a Ordem Dominicana e a todo o reino de Portugal a concessão de honrarem este glorioso santo, um dos mais populares de norte a sul do país, especialmente no Norte, com missa e ofício litúrgicos próprios. O seu culto espalhou-se pelas colónias portuguesas, chegando à Índia e ao Brasil, como o confirma o longo e engenhoso sermão de São Gonçalo, do Padre António Vieira, de cuja peça de oratória sacra se transcrevem, pela sua relevância exemplar, alguns segmentos:

“Orava continuamente; mas, porque, de ordinário, para remediar os trabalhos humanos, não bastam as mãos ociosas, posto que levantadas a Deus… resolveu-se ao que nunca se atreveram os braços poderosos dos reis, que foi meter debaixo dos pés a braveza e fúria do Tâmega, que a tantos tinha tragado”.

E, já quase no fim:

“A ele encomendam os pastores os gados, os lavradores as sementeiras; a ele pedem o sol, a ele a chuva, e o santo, pelo império que tem sobre os elementos, a seu tempo e fora de tempo, os alegra com o despacho das suas petições”.

A sua popularidade, além das preces, romagens, festas, folias e doçarias que mobiliza, espelha-se ainda nos ditos brejeiros transpostos para conhecidas quadras populares. O povo, por mais que acredite que a Deus muitas graças, mas com Deus poucas, não dispensa o santo da sua visita ao campo das graçolas revestidas de indizível ironia zombeteira. Mas não há só ironia e brejeirice. O povo empresta-lhe abundante dose de apreço e carinho e, em contrapartida, celebra-o com devoção e folguedo. Assim, os moradores do Bairro da Beira Mar, na freguesia de Vera Cruz, em Aveiro, tratam-no carinhosamente por São Gonçalinho, e a capela aí existente em sua honra é conhecida como Capela de São Gonçalinho. Em Ibituruna, a sua festa celebra-se no último fim de semana de janeiro, com a tradicional Congada e Folia de São Gonçalo. E várias cidades brasileiras, como São Gonçalo, no Rio de Janeiro, Itapissuma, em Pernambuco, Cajari, Matinha e Viana, no Maranhão, e Cuiabá, em Mato Grosso, prestam culto festivo a São Gonçalo de Amarante, em ambiente de forte devoção e com uma dança folclórica, denominada por Baile de São Gonçalo.

Oitavário ou semana para o ecumenismo

11-01-2014 22:17

 Oitavário ou semana para o ecumenismo

De 18 a 25 de janeiro realiza-se a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, sucedânea do Oitavário pela Unidade da Igreja ou Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos, em torno da questão temática «Estará Cristo dividido?” (1 Cor 1, 13). Estas datas são observadas anualmente a nível mundial no hemisfério norte e foram propostas e levadas à prática em 1908 por Paul Watson, americano anglicano, e por Spencer Jones, episcopaliano, para cobrir o lapso temporal que medeia a antiga festa da Cátedra de São Pedro e a da Conversão de São Paulo, que se revestem de valor simbólico pela evocação daquelas duas “colunas da fé”.

No hemisfério sul, em que o mês de janeiro se presta ao gozo de férias de verão, costuma adotar-se outro período próximo do Pentecostes, sugerido pelo movimento Fé e Constituição, em 1916.

Este evento de periodicidade anual insere-se na dinâmica reflexiva e oracional criada pelo denominado movimento ecuménico, surgido nos finais do século XIX, com iniciativas tendentes a favorecer o regresso à unidade dos cristãos, quebrada por algumas penosas ruturas históricas.

Tal regresso tornava-se necessário para se cumprir o que o Senhor tinha dito depois da Última Ceia: “para todos serem um só; como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti, que eles também estejam em Nós”(Jo 17, 21).

Porém, este desejo de unidade começou há mais tempo, como se pode ver pelo levantamento dos principais marcos históricos que enquadram as diversas atividades lançadas e desenvolvidas ao longo do tempo por diversos e generosos agentes do ecumenismo.

Em 1740, na Escócia, o movimento pentecostal nascente com ligações à América do Norte, convida à oração com e por todas as Igrejas; em 1820, James Haldane Stewart publica Sugestões para a união geral dos cristãos, com vista à efusão do Espírito; vinte anos mais tarde, Ignatius Spencer, convertido ao catolicismo, sugere uma união de oração pela unidade, tema em que insiste, em 1867, a primeira assembleia dos bispos anglicanos, em Lambeth.

Do lado católico, o Papa Leão XIII, em 1894, encoraja a prática de um Oitavário de Oração pela Unidade no contexto do Pentecostes; e, três anos depois, na encíclica Satis Cognitum, determina que os nove dias entre a Ascensão e o Pentecostes sejam dedicados a essa intenção de unidade.

Em 1910, Pio X, após a experiência iniciada em 1908 pelos dois anglicanos já referidos fixou o tempo dessa celebração para os dias entre 18 e 25 de janeiro, que Bento XV estendeu a toda a Igreja Católica.

Foi em 1926 que a celebração anual se consolidou com a publicação por parte do Movimento Fé e Constituição de Sugestões para um Oitavário de Oração pela Unidade dos cristãos.

Em França, em 1935, o Padre Paul Couturier torna-se o paladino da “Semana Universal de Oração pela Unidade dos Cristãos” concebida sobre a base de uma oração pela unidade que Cristo quer e pelos meios que Ele quer”; e, em 1958, o Centro “Unidade Cristã” de Lyon começa a preparar o tema para a Semana de Oração em colaboração com a Comissão “Fé e Constituição”, do Conselho Ecuménico das Igrejas.

Já significativo passo em frente fora dado graças ao Papa Pio XII que, numa instrução de 1950, louvou explicitamente o movimento ecuménico, reconduzindo a sua origem à obra do Espírito Santo. Foi, porém, com a criação do Secretariado Romano para a Unidade dos Cristãos, em 1960, por João XXIII, e com a promulgação do Decreto sobre o Ecumenismo, do Concílio Vaticano II, o ecumenismo entrou definitivamente, no ano de 1964, no léxico eclesial, na convicção profunda de que a sua espiritualidade pressupõe que a superação das diferenças humanamente insuperáveis é uma obra de Deus, requerendo, por isso, uma atitude orante e uma atitude de diálogo que brota da certeza da unidade fundamental entre aqueles que creem em Jesus Cristo. Assim, os padres conciliares assumem a oração como a alma do movimento ecuménico e encorajam a prática da Semana de Oração. Por outro lado, em Jerusalém, Paulo VI e o Patriarca Atenágoras I rezam juntos a oração de Cristo que todos sejam um (Jo, 17).

Os bispos, no citado decreto, incitam à oração ecuménica, “conscientes de que este santo propósito de reconciliar a todos os cristãos na unidade de uma só e única Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana” (UR). Nesta mesma linha de ideias e preocupações, o pastor LewisTomas Wattson, ou Paul Wattson, sentia forte inquietação ao ler as palavras da Escritura relativas à unidade da Igreja: “Tenho ainda outras ovelhas, que não são deste aprisco. A essas, também, tenho Eu de conduzir, e elas hão de ouvir a minha voz. Então passará a haver um só rebanho, um só Pastor” (Jo 10, 16). E considerando um escândalo esta desunião, para o reparar consagrou-se inteiramente à unidade dos cristãos. Para isso, Wattson, que cofundara com a irmã Lurana White a Comunidade dos Irmãos e Irmãs da Penitência, deixou o seu cargo de pastor e fundou a Sociedade da Reconciliação, bem como uma revista, com o intuito de mostrar que a Igreja fundada por Jesus Cristo é uma só. A sua vida acabou por conhecer um desfecho consequente – a conversão à Igreja Católica, juntamente com os seus seguidores.

Posteriormente, em 1966, dá-se mais um passo, pois, a já referida Comissão “Fé e Constituição”, do Conselho Mundial (ou Ecuménico) das Igrejas, e o Secretariado para a Unidade dos Cristãos (hoje Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos), da Igreja Católica, decidem preparar em conjunto o texto para a Semana de Oração de cada ano, acabando por decidir que, a partir de 2004, os textos em francês e inglês da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos serão publicados no mesmo formato. E, em 2004, os textos tiveram ainda a colaboração da YMCA (Young Men's Christian Association) e da YWCA (Young Women's Christian Association).

Em 2008, pôde levar-se a cabo a Celebração do Centenário da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, marcado por avanços e recuos, sendo aqueles consolidados por várias iniciativas, de que se destacam as semanas de oração, os textos comuns em muitas áreas, a comunidade de jovens de Taizé e muitos gestos de aproximação; e resultando aqueles de posições demasiado firmes, de que se destacam as afirmações de Pio XI na encíclica Mortalium Animos, sobre a missão salvífica exclusiva da Igreja Católica, e a ambiguidade de alguns gestos por parte da hierarquia católica e de algumas confissões protestantes.

Para este ano, em Portugal, além da oração conjunta, está programado que representantes das Igrejas Católica, Lusitana, Presbiteriana, Metodista e Ortodoxa em Portugal assinem no próximo dia 25, durante a celebração ecuménica nacional, na catedral Lusitana (Igreja Anglicana) de São Paulo, em Lisboa, uma declaração de reconhecimento mútuo do Batismo. Segundo D. António Couto, presidente da Comissão Episcopal da Missão e Nova Evangelização, esta decisão é um “acontecimento nacional” que vem coroar “muitos anos de trabalho".

Por sua vez, os responsáveis pela celebração, em comunicado enviado à Agência ECCLESIA, destacam este “importante acontecimento” como “mais um passo no caminho de diálogo ecuménico entre as Igrejas envolvidas” e sublinham que “reafirma o muito que já nos une em Cristo, como seus discípulos, um povo de batizados chamado a ser, no mundo e para o mundo, sinal credível do Evangelho”. Além disso, trata-se de um passo dado “num contexto orante, que reúne jovens e hierarcas das diversas Igrejas, juntos na escuta da Palavra e no assumir de um compromisso claro pela causa da reconciliação e da unidade”. Mais do que um ato de cortesia ecuménica, o gesto consubstancia uma afirmação básica de eclesiologia.

Do ponto de vista católico, verifica-se  a sintonia com o referido decreto conciliar sobre o ecumenismo, a Unitatis Redintegratio, em cujo n.º 3 se lê que todos os cristãos “justificados no Batismo pela fé, são incorporados a Cristo, e, por isso, com direito se honram com o nome de cristãos e justamente são reconhecidos pelos filhos da Igreja católica como irmãos no Senhor”. Na sequência deste documento conciliar, João Paulo II, na encíclica Ut Unum Sint, sobre a Unidade dos Cristãos (n.º 42), assegura que o reconhecimento da fraternidade ecuménica “não é a consequência de um filantropismo liberal ou de um vago espírito de família, mas está enraizado no reconhecimento do único Batismo”.

O ‘Diretório’ para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo pede explicitamente um reconhecimento recíproco e oficial do Batismo, destacando as implicações teológicas, pastorais e ecuménicas desse ato.

E Bento XVI, referindo-se, em particular, à espiritualidade ecuménica, evidencia que “a evocação perseverante à oração pela comunhão entre os seguidores do Senhor manifesta a orientação mais autêntica e profunda da inteira busca ecuménica, porque a unidade, antes de mais, é dom de Deus”. Não somos, pois, nós quem efetivamente a faz, mas somos nós quem a recebe de Deus, o que pressupõe que lhe tenhamos permanentemente aberto o coração.

Oxalá que o movimento ecuménico não conheça quaisquer recuos ou debilidades! 

“Outros caminhos”

11-01-2014 00:33

“Outros caminhos”

É o tema da intervenção que D. Jorge Ortiga, Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana e arcebispo primaz de Braga, debitou à Comunicação Social à margem das Primeiras Jornadas Nacionais da Pastoral do Turismo, promovidas pela Igreja Católica, onde esteve presente.

Aos ecos do comunicado do Conselho de Ministros, de 9 de janeiro, que dá conta da aprovação da proposta de Orçamento Retificativo para 2014 que altera o mecanismo da Contribuição Extraordinária de Solidariedade, determinando que esta taxa se aplique às pensões de aposentação e reforma a partir dos 1000 euros, o metropolita bracarense produz comentários de forte pertinência crítica.

 Reconhecer que viver em Portugal é «cada vez mais difícil» por causa dos cortes nos ordenados e pensões é efetivamente perceber o dramatismo vivencial de quem passa os dias na oscilação entre o trabalho árduo e a necessidade apertada de fazer contas e mais contas para obviar ao sustento cada vez mais difícil da família e da casa ou de quem se arrepela nervosamente por se sentir esbulhado de um pecúlio com que contava, mesmo que às pinguinhas, para encarar de rosto erguido e peito oferecido às balas os lanços desta etapa de vida a compensar um longo período de trabalho profissional e larga carreira contributiva. Agora os ministros da governança e seus acólitos apregoam a insustentabilidade dos sistemas de segurança social (seja a CGA, Caixa Geral de Aposentações; seja o CNP, Centro Nacional de Pensões; seja a ADSE, Direção Geral de Proteção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública, ou similares), depois de haverem procedido, parece que inutilmente, a sucessivas reformas. Para mais, sabemos que se determinou o encerramento de inscrições na CGA e na ADSE e que o Estado, que não tem cumprido as suas obrigações como entidade patronal, ao mesmo tempo quer absurdamente que aqueles subsistemas, agora em vias de extinção ou estrangulados na fonte, se autossustentem taumaturgicamente. Por outro lado, quer ou permite que o Instituto de Segurança Social, através dos adequados fundos, compre dívida pública e que as dívidas fiscais e/ou contributivas prescrevam. Pensarão os caros estadistas que resolvem o problema que o mesmo Estado levantou, obrigando as pessoas a trabalhar durante mais tempo e exigindo 3,5% a cada contribuinte/beneficiário para a ADSE (ou ainda mais?) ou querem que, no outono da vida, os servidores do Estado recorram a seguros de saúde, confiados na generosidade caritativa das Seguradoras, ou se confiem à augusta prestação de um serviço nacional de saúde de si já altamente congestionado e cada vez mais constrangido?

É certo que o arcebispo de Braga, uma das vozes mais críticas da hierarquia católica portuguesa às medidas governativas de política social, ao afirmar que há “outros caminhos” de combate à crise para lá dos cortes de “ordenados e pensões”, por parte do Governo, parece não se ter munido de estudo solidamente elaborado para sustentar as suas afirmações, mesmo que se apoie nas declarações do presidente da Cáritas Nacional ou dos responsáveis das IPSSS. Será pena se ele se firma somente na sua intuição – o que já não seria pouco, mas assaz insuficiente – quando opina: "Estamos a enveredar só por um caminho de cortes de ordenados e de pensões, não sei se é o único. Estou convencido de que não será, que há outros caminhos”. Tais afirmações, ainda que meramente conjeturais, deveriam provocar maior atenção dos poderes públicos.

No entanto, alguma peremptoriedade revela ao discorrer que “viver em Portugal torna-se cada vez mais difícil e por muitas razões que os nossos políticos encontrem para estas medidas, interrogo-me se não será possível fazer as coisas doutra maneira”. E é mais explícito ao concluir que é necessário encontrar “outros modos onde se possa descobrir aquilo que faz falta para cumprir as obrigações” que o Estado português tem.

Por seu turno, D. António Vitalino, bispo de Beja e vogal da referida comissão episcopal declarou à Agência ECCLESIA que as pessoas estão “esgotadas” e “os mais pobres já não têm nada para poder sobreviver”. E advertiu que “o Governo não consegue, realmente, reformular o Estado e os nossos impostos não chegam para pagar as estruturas que criamos”, acrescentando que “o dinheiro tem se buscar a quem o tem, mas espero que comecem a cortar por cima e não por baixo”.

Resta saber se, como pretende Guilherme d’ Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura, o governo é capaz de promover uma economia “criadora, solidária” e com “responsabilidade social”. Não preferirá, enquanto o país se entretém a memorar a vida de Eusébio e a discutir questões atinentes ao Panteão Nacional, prosseguir a determinação de mais sacrifícios para a classe média portuguesa, já efetivamente “ordenhada” e exaurida, e a assobiar para o lado à medida que uns poucos enriquecem cada vez mais. Não se cansará o Tribunal Constitucional de remar contra a maré ou de ver que seus acórdãos, em vez de contribuírem para o equilíbrio entre o cansaço do povo e as opções “troikanas”, talvez redundem, pela “recalibragem” governativa, em maior peso para os mesmos, nomeadamente os pensionistas que nem greve podem fazer, não que seja crime, mas por se tornar instrumento inútil?

Aliás, o aproveitamento dos grandes eventos que despistam a atenção do povo português não é inédito. Recordo que, em 2010, enquanto Bento XVI, na Igreja da Santíssima Trindade, em Fátima, abordava grandes temáticas da doutrina social da Igreja, Sócrates e Passos Coelho, num momento de pico de transumância do poder, “dançavam o tango” do PEC 2. Foi necessário Marco António avisar Pedro de que poderia sujeitar-se a eleições partidárias e Cavaco, no discurso de posse, apelar ao sobressalto cívico que levasse à rua os jovens para que Pedro Passos Coelho desistisse do “tango” e, rejeitando o PEC 4, cavalgasse a trote para eleições legislativas, não o incomodando governar em parceria com o FMI.

Rezava o papa então que “cientes, como Igreja, de não poderdes dar soluções práticas a todos os problemas concretos, mas despojados de qualquer tipo de poder, determinados ao serviço do bem comum, estais prontos a ajudar e a oferecer os meios de salvação a todos”. E, mais adiante verificava que “o cenário atual da história é de crise socioeconómica, cultural e espiritual, pondo em evidência a oportunidade de um discernimento orientado pela proposta criativa da mensagem social da Igreja” e ensinava que “o estudo da sua doutrina social, que assume como principal força e princípio a caridade, permitirá marcar um processo de desenvolvimento humano integral que adquira profundidade de coração e alcance maior humanização da sociedade”.

Parece que até estava a recordar deveres do poder político ao rubricar a asserção de que “na sua dimensão social e política, esta ‘diaconia’ (serviço) da caridade (sublinho o sentido que em tempos dei a este vocábulo) é própria dos leigos, chamados a promover organicamente o bem comum, a justiça e a configurar retamente a vida social”. Isto não é missão do poder político conforme o consagram as constituições democráticas, quando as normas fundamentais se balizam pelos princípios da igualdade, da equidade, da confiança, da universalidade e da solidariedade?

E o papa de então, hoje emérito, advertia para o perigo proveniente da “pressão exercida pela cultura dominante, que apresenta com insistência um estilo de vida fundado sobre a lei do mais forte, sobre o lucro fácil e fascinante” a condicionar “o nosso modo de pensar, os nossos projetos e as perspetivas do nosso serviço, com o risco de esvaziá-los da motivação da fé e da esperança cristã que os tinha suscitado”. Por seu turno, tentadoramente “os pedidos numerosos e prementes de ajuda e amparo que nos dirigem os pobres e marginalizados da sociedade impelem-nos a buscar soluções que estejam na lógica da eficácia, do efeito visível e da publicidade”, quando as verdadeiras motivações devem ser as da eficácia, mesmo que discreta e não notória.

Pois é, “outros caminhos” é o clamor dos hierarcas mais atentos; “outros caminhos” é o pedido lancinante do povo que sofre; “outros caminhos” é aquilo que o governo parece não saber trilhar; “outros caminhos” é a expressão de que os bem servidos ou os oportunistas não querem ouvir falar ou até badalam hipocritamente…

 E “outros caminhos” – e não falta quem nos ensine – é o pregão que a doutrina católica, na sequência da economia veterotestamentária, há mais de dois mil anos, brada aos quatro ventos, sob pena de os homens do Planeta incorrerem em um dos grandes pecados que bradam aos céus “não pagar o salário a quem trabalha” – erro que importa evitar ou contrariar a todo o transe.

“Ai de vós, os que agora estais fartos, porque haveis de ter fome” (Lc 6,25). E “felizes de vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados” (Lc 6,20). Mas era tão bom que a saciedade do futuro se tornasse já presente, já que Ele veio “para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

A transumância do arco da governação

10-01-2014 19:32

A transumância do arco da governação

Penso dever atribuir esta denominação ao fenómeno costumeiro daquilo a que nos habituámos, com Mário Soares, a designar por alternância democrática, ou seja, o facto de termos uma força partidária simples ou em coligação no governo (Para Cavaco Silva, “no poder”) e outra na oposição. E tais forças alternam-se no governo, usualmente sem que a Casa da Democracia lance mão eficaz dos petardos constitucionais, designadamente através da rejeição do programa de governo, da aprovação de moção de censura ou da reprovação de moção de confiança. Outras formações partidárias, ao menos em Portugal, nunca chegaram à governação, mas têm o papel fundamental de suscitar o debate e “agitar a malta” (como manda a canção), mobilizando a dureza vocabular, a impertinência da iniciativa legislativa e fiscalizadora, tantas vezes sem êxito, e o agendamento potestativo.

Não gosto do designativo “alternância de poder”, já que o poder político, se for levado a sério, reside no povo e, constitucionalmente, distribui-se no regime de separação e interdependência pelo Parlamento (poder legislativo e fiscalizador, que deveria ser tido como bem importante – CRP, art.os 161.º-165.º), pelo Governo (poder executivo e administrativo, tantas vezes a sobrepor-se ao poder legislativo – CRP, art.os 197.º-201.º) e pelos tribunais (poder judicial – CRP, art.os 211.º-214.º e 223.º – que os magistrados não assumem como poder político, quando dizem que a culpa é dos “políticos”). E temos o poder moderador, simbólico e de representação atribuído ao Presidente da República (CRP, art.os 133.º-135.º), que, se efetivamente bem exercido, não é despiciendo, sobretudo em tempo de crise institucional. São poderes ou modalidades de “poder” que resultam do povo, por via da eleição direta ou por via da nomeação por parte de quem adquire a prerrogativa de nomear. Mesmo o poder judicial, cujos titulares não são eleitos pelo povo (e, nos casos em que o provimento resulta de eleição, o universo eleitoral é deveras restrito) é exercido em nome do povo (CRP, art.º 202.º/1). E relevamos ainda o poder regional autónomo e o poder local, com órgãos próprios, a que a CRP (Constituição da República Portuguesa) dedica os seus títulos VII e VIII, respetivamente.

Bem gostaria de chamar alternância democrática ao epifenómeno da posição de força partidária ora na governação, ora na oposição. Porém, alternância democrática sê-lo-ia se estribada em efetiva alternativa de governação e não em mera alternativa de estilo, com os habituais remoques à governança anterior e as dramáticas amnésias quanto a solenes tiradas da oposição de antanho ou das promessas firmemente propaladas em anterior campanha eleitoral, bem como com os férvidos ataques das demais forças partidárias.

Chamarei, sem qualquer rebuço, transumância a este balancé democrático. Transumância consiste na deslocação do rebanho com suas necessidades alimentares e apetites climáticos de terra onde sazonalmente não podem satisfazer-se para terra ora propícia à sua plena satisfação, mas com a esperança certa de que o regresso à anterior posição está bem gizado no horizonte. O vocábulo resulta da acoplação do prefixo “trans” (além de) com o nome latino “humus” (terra, solo), que persiste no léxico português, quer como palavra-base, com igual grafia, como nas derivadas, por exemplo, “inumação” (enterrar), “exumação” (desenterrar) – e outras já presentes no latim, como “humidade”, “humano”, “humanidade”, etc.. Ora a situação de força partidária na oposição é de si transitória e o húmus da ânsia governativa é alimentado quotidianamente, bem como a promessa de obtenção de uns lugarzinhos de conforto para as ovelhas mais egrégias do respetivo rebanho e até o generoso arroteamento de algum terreno adequado à merecida ocupação dos atuais governantes que melhor encaixem nos interesses de bloco central, perdão, de economia gregária. De modo semelhante, o governo é constituído por homens e mulheres que não são ministros ou secretários de estado (como na França ou na Igreja Católica, cujos titulares não perdem o título de ministro, secretário de estado, presidente, cardeal, arcebispo, bispo, monsenhor, cónego e, desde 28 de fevereiro de 2013, papa!), mas estão precariamente naquelas funções (já lá vai o tempo de Salazar, quiçá o de Cavaco!). Depois, abrem-se para essa gente as portas de grandes empresas, da Europa, do Banco de Portugal, da EDP e, porque não, de algum instituto universitário, em Paris.

A título de exemplo, recordo alguns dados que a memória não permite olvidar.

Guterres acusava o antecessor do exercício da política o betão; mas construiu mais autoestradas e lançou as famosas SCUT (depois atreladas a Sócrates). Durão Barroso e o seu Ministério das Finanças, alegadamente porque o país estava de tanga, congelaram salários de funcionários públicos acima dos mil euros (gente rica!); as pensões de aposentação daqueles que não tivessem perfeito a idade de 60 aninhos, levaram um corte de 4,5% por cada ano que faltasse para aquele patamar etário; a oposição humidamente patriótica reagiu e o Tribunal Constitucional (TC), num primeiro momento não aceitou a conformidade constitucional desta medida, porque não tinham sido ouvidos os representantes dos interessados e porque fora decidida em sede orçamental. Por esta lógica, a suspensão da possibilidade do pedido de reforma antecipada da parte dos trabalhadores por conta de outrem no setor privado, cozinhada no segredo dos deuses (lembram-se?), seria inconstitucional. E a maioria dos cortes nos vencimentos da função pública ou dos aposentados e reformados tem sido produzida, sem óbice, em sede orçamental. E até agora foram consideradas inconstitucionais: a supressão dos subsídios de natal e de férias (em sede orçamental); e a convergência das pensões do setores público e privado (não em sede orçamental)!

Por seu turno, um governo socrático alterou profundamente, mas de forma autónoma, o estatuto de aposentação, em dois momentos (2005 e 2007), com aumento da idade de aposentação para 65 anos, alteração do cálculo da pensão e forte penalização da sua aposentação. Sem contestação significativa, tal reforma foi salva pela configuração do regime de transição que o atual governo encurtou, em sede orçamental. Patrioticamente, o governo – que o Presidente do CES (Conselho Económico Social) assegura ter procedido a “pouco ajustamento com muita dor” ou a “uma terapia inexperiente com uma gestão pouco competente” – preparou uma CES (contribuição extraordinária de solidariedade), que agora em operação de “recalibragem” quer alargar a um universo maior e que passou no TC por assumir um caráter transitório cuja linha do horizonte ninguém vislumbra. O mesmo conseguira Sócrates com a redução espetacular dos vencimentos dos funcionários do Estado, que o atual governo quer reeditar com dose reforçada, e com o congelamento das carreiras e proibição de contagem do tempo de serviço para efeitos de progressão (por duas vezes), que democraticamente o orçamento do estado vem mantendo ironicamente até que a economia exiba francos sinais de recuperação. Tal modalidade de transitoriedade passará no Tribunal Constitucional? A ver vamos.

Só mais um exemplo: Quem não recorda a polémica gerada à volta da avaliação de desempenho dos docentes e da prova de avaliação de capacidades e conhecimentos dos professores contratados (PACC)? A Milu Rodrigues teve de recuar várias vezes, porque a oposição partidária em bloco se aliara à contestação, apesar de o PR lhe ter dado cobertura quer na fase mais dura quer nas fases mais suavizadas. Não podemos silenciar a prolação monstruosa de que os professores não eram avaliados há mais de 30 anos! A Isabelinha Vilar viu o seu projeto de avaliação negociado com as estruturas sindicais rejeitado por uma parlamentar maioria, de que muitos dos seus elementos tinham endeusado o fervor reformista da antecessora. E, perante o acórdão negativo do TC à decisão da maioria, a ministra concluiu desassombradamente pela vitória do sistema educativo. Por sua vez, a PACC foi vertida para o estatuto da carreira docente, mas quase ninguém deu por ela. De repente, Crato consegue em tempo record montar um simulacro de avaliação de desempenho dos docentes, com uma cosmética diferente; faz “gato-sapato” das metas de aprendizagem anteriormente elaboradas; esconjura o ensino com base nas competências; promove a elaboração de metas curriculares, em que privilegia os objetivos e os conteúdos; e manda elaborar, sem avaliação séria dos anteriores, novos programas em disciplinas fundamentais como Português e Matemática. Quanto à PACC, o espetáculo legislativo, administrativo e judicial impõe se à consideração de todos e será um bom candidato a um estudo de caso desde que algum académico lhe queira pegar.

Voltando à problemática da transumância, é de concluir que, em tempo de seca severa, só por milagre é que o rebanho consegue um mínimo sustentável de alimentação e de sobrevivência climatérica. Ao invés, a transumância política consegue a maravilha taumatúrgica da subsistência do rebanho e do contrarrebanho à custa: da intoxicação da opinião pública, pondo uns contra outros; sobrecarregando a classe média com cortes de salários e com impostos ou equivalentes; simulando mexer com os grandes; apoucando os pensionistas, que não fazem greve; e driblando os acórdãos do Tribunal Constitucional com a formal reiteração do acatamento de suas soberanas decisões e com o estudo temporão de medidas de efeito equivalente, mas com maior onerosidade sobre os mesmos de sempre. Apre!

Sobre o papel das ciências sociais e humanas

08-01-2014 12:12

Sobre o papel das ciências sociais e humanas

O caderno “Atual” do semanário Expresso, de 28 de dezembro de 2013, na secção “ideias e debates” corporiza uma entrevista de Maria José Roxo, coordenadora do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a Luciana Leiderfab, que, do meu ponto de vista, valerá a pena ler ou reler.

Segundo a entrevistadora, os conteúdos essenciais da conversa giram em torno do “papel escrutinador das ciências humanas, na importância de os investigadores saírem dos gabinetes e agirem sobre a sociedade e no fim anunciado de um modelo de vida que era insustentável”. E, citando a entrevistada, infere que “os próprios cientistas sociais já perceberam que têm de ser peças de intervenção e de mudança”.

Sem nos determos na diferença entre ciências sociais e ciências humanas, dissecação que aqui não vem ao caso e que as escolas parecem querer evitar ao as acoplarem numa mesma epígrafe designativa, vamos tentar pôr à tona algumas das ideias que nos parecem mais relevantes naquele texto conversacional.

Começando por negar que as ciências sociais tenham começado a cair em desuso no país, reconhece, no entanto, a entrevistada que terão ficado para segundo plano a partir do momento em que “determinadas políticas, em termos de investigação científica e de educação se voltaram muitíssimo para a questão da tecnologia”. É óbvio que a investigadora acaba por registar em entrevista o claro estado atual da nossa sociedade, já que quem for considerado “infoanalfabeto” ou atingido de capitis diminutio na matéria parece não ter direito a existir no campo da atividade atual. Foi assim que os dois últimos governos socialistas lançaram o plano tecnológico, na sequência do choque tecnológico; os professores passaram a ter, por força de disposição legal estabelecida por portaria, como plataforma básica de competência a manipulação dos meios das novas tecnologias; e programas específicos – e-escola, e-professor, e-formação e os “Magalhães” – enxamearam o país inteiro e aumentaram a quota nacional de exportações. Praticamente todos os concursos, candidaturas, compras, prestação de contas, transações bancárias, declarações contributivas, Diário da República e Diário das Sessões da Assembleia da República, etc. passou tudo a ser feito por via eletrónica. Mais: um aluno passou a poder não ter dinheiro para almoço ou para material escolar essencial, mas tem de possuir telemóvel, i-pad (e outros que tais), tablet e playstation para poder sobreviver num ambiente cada vez mais competitivo e até hostil.

Todavia, em resposta à entrevistadora, a professora catedrática afirma ter de haver lugar para a componente tecnológica e para a componente social e humana, sob pena de se pretender avançar tecnologicamente sem a compreensão “daquilo que se está a passar do ponto de vista social e comportamental”. Ora, como se corria o risco de um progresso vazio – a meu ver – e porque “os valores tinham sido deixados num limbo”, agora, “com a crise que estamos a atravessar, que é sobretudo uma crise de valores”, há que saber recolocá-los e, conclui a entrevistada, “o humano ressurge agora”. É claro que se fala mais das coisas boas quando elas estão a fazer mais falta!

Entretanto, a distinta académica vai ainda mais ao fundo da questão, ao reconhecer que as próprias ciências sociais têm também a sua quota-parte de responsabilidade na sua própria secundarização, quando os académicos poderão ter ficado demasiado longe da participação cívica. E explicita: “há uma diferença entre o que é o mundo académico e o que nós pensamos que este deva ser”. Aí estamos totalmente de acordo, uma vez que os professores do ensino superior e os investigadores estarão a ser avaliados de forma menos adequada, sobretudo se ela se centra na “quantidade de artigos científicos publicados”, quando deveria ser escrutinada sobretudo a qualidade e a implicação no desenvolvimento da ciência e a sua perceção pela sociedade, o que implica o dispêndio excessivo de tempo naquela atividade. Por outro lado, a linguagem utilizada – e que são solicitados a utilizar – é demasiado inacessível e é preciso reconhecer que a investigação “só faz sentido se os resultados passarem para a sociedade”. Tornava-se quase imperativo que o professor universitário e o investigador falassem quase exclusivamente apara a denominada comunidade científica. E talvez seja oportuno referir que, por vezes os trabalhos académicos se deixam empecer por questões formais de nem sempre clara utilidade, como a forma de citação imposta, a forma de referir a bibliografia, o uso da primeira pessoa do plural ou o quase impedimento de produção de opinião.

Por fim, dá-nos uma boa informação distribuída pelos seguintes itens: a existência da compreensão de que os académicos têm de ser peças de intervenção e de mudança numa sociedade “formatada para o consumo” e esquecida das implicações que o consumo pode ter (e aponta o sobre-endividamento e a despovoação, que leva à desertificação); a promoção de uma visão sistémica dos problemas, contra a cegueira em que as pessoas vivem, por exemplo, em relação ao processo que subjaz a qualquer objeto que surge no mercado; a oferta de “cursos que incidem sobre como comunicar ciência e como transmitir conhecimento científico”; e, apesar da crise, que tem feito diminuir as inscrições, já que muitos “não têm dinheiro para pagar as propinas”, haver muitos cursos frequentados, de que sobressaem a Comunicação Social, a História e a Geografia. E não deixa de anatematizar os “tudólogos”, “que falam sobre tudo” ou o discurso político que seja “mais do mesmo” – discursos que se tornam cansativos e “que fazem saltar à vista a mais-valia do discurso de um cientista social”.

Pergunto-me porque não escalpeliza também aqueles estudos encomendados pelo governo ou pelas autarquias e outras instituições públicas e privadas, pejados de análises e conclusões com anos e anos de atraso e, por vezes, elaborados ao sabor de quem os encomenda e paga. Mas saúdo a renovação incutida ou “incutienda” nos estudos sociais e humanos e a aproximação da Universidade ao mundo das pessoas.

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Consulta de outro site

24-02-2014 20:04
Pode consultar também em: https://ideiaspoligraficas.blogspot.pt/

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