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24-02-2014 20:04

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Crença na lei e na justiça

20-02-2014 01:08

Crença na lei e na justiça

Creio na lei dita igual para todos, – mas que permite e sanciona as desigualdades, os privilégios e o enriquecimento por qualquer meio, tornando uns mais iguais que outros.

Creio na lei que formalmente resulta da vontade das maiorias, – mas nem sempre respeita os direitos de cada um, sobretudo se integrados em minorias, tantas vezes tiranizadas pela partidocracia.

Creio na lei que alegadamente tem em conta a realidade do país, – mas, ao arrepio das maiorias, privilegia o interesse de minorias e o impõe como valor supremo e exemplar, em nome do endeusado progresso civilizacional, contra o crasso e obsoleto obscurantismo.

Creio na lei que, ao nível das metas, promove o bem-estar, – mas explora todas as modalidades de reduzir à expressão mais simples os rendimentos de quem trabalha ou trabalhou, e cava o empobrecimento generalizado de todo um povo, esfacelando as classes médias.

Creio na lei que pede teoricamente os sacrifícios de todos os que não podem eximir-se a eles, – mas deixa engrossar desmedidamente o património de uns poucos, até pela sonegação de impostos ao Estado Português.

Creio na lei que, no papel, exige a qualificação académica e profissional da maioria dos cidadãos, – mas coloca nos lugares de topo filhos, amigos, afilhados e correligionários do bloco central de interesses sem a dita qualificação académica, profissional ou experiencial.

Creio na lei que propala a liberdade e a autonomia de pensamento, expressão, associação, reunião e manifestação, – mas condiciona a segurança no emprego e o exercício profissional a quem ousar pensar e dizer de modo diferente do politicamente correto.

Creio na lei que supostamente preserva a ordem pública, procede às reformas necessárias e exige profissionalismo – mas faz pagar ao contribuinte desmandos de desordeiros, deixa setores consideráveis intocáveis e pactua com a falta de zelo na gestão dos bens públicos.

Creio na lei que a todos considera cidadãos com direitos iguais, – mas discrimina negativamente o setor de trabalho na administração pública, cujos trabalhadores desprestigia com sucessivos cortes salariais, degradação das condições de trabalho e favorecimento do desprestígio profissional e social, multiplicando a existência de burocratas sanduíche, criadores do desconforto e da precariedade, através de vários meios, inclusive certa avaliação de desempenho.

Creio na lei que eleva aos píncaros da cidadania a eleição democrática de representantes, – mas só permite o voto em quem se sujeite ao aparelhismo partidário.

Creio na lei que proclama o voto em consciência nos órgãos colegiais, – mas impõe a disciplina de voto quando tal se torna conveniente para a manutenção do status quo ou para alterações fundamentais do painel dos padrões democráticos.

Creio na lei que proclama a soberania nacional e entende que o poder político reside no povo, – mas não referenda a alienação internacional de relevantes aspetos da soberania nacional.

Creio na lei aprovada por legítimos deputados do povo, – mas cujos interesses profissionais nunca deixam de estar presentes.

Creio na lei elaborada por uma assembleia eleita democraticamente, – mas cujos apreciadores são deputados provenientes de partidos cujos líderes (não todos, é claro), de vários patamares, investiram na obtenção do favor popular através da simpatia, das promessas e do dinheiro.

Creio na lei que, na sua letra, aceita candidaturas de cidadãos independentes para órgão do poder autárquico, – mas as rodeia de uma fatia de exigências burocráticas tal que, em muitos casos, elas ficam pelo caminho.

E, por consequência,

Creio na justiça que tem demasiado em conta a realidade nacional, – mas produz sentenças e acórdãos de sentido contrário sobre matérias similares, para não mencionar todo o aparato de autoridade judicial.

Creio na justiça a que todos têm acesso, – mas os remediados e os pobres, a não ser que sejam mesmo indigentes, não têm possibilidades de a ela aceder.

Creio na justiça que funciona sempre, – mas que recusa proceder à audiência de julgamento enquanto não se pagar o imposto de justiça e as custas judiciais em atraso.

Creio na justiça que acredita no cidadão e nas suas potencialidades, – mas exige que ele se faça representar por causídico a quem tem de pagar e através de quem o cidadão satisfaz os seus encargos com a justiça, e não de outro modo.

Creio na justiça que dá garantias a todos, – mas sonega a defensores oficiosos a consulta prévia do respetivo processo, enquanto aos ricos e poderosos permite a exploração de todos os meios de dilação.

Creio na justiça equitativa, – mas quem puder dispor de elevada quantia de caução (em dinheiro ou em garantia bancária) pode ser dispensado da prisão preventiva.

Creio na justiça ministrada em nome do povo, – mas em ambiente de tribunal altamente inibidor para testemunhas inexperientes e público em geral.

Creio na justiça sempre disponível, – mas que tudo faz para evitar agir, podendo penalizar que se exima à aceitação de acordo.

Creio na justiça ministrada somente em consideração da lei, – mas com dissertações inoportunas sobre a vida das pessoas ou com reprimendas ao ambiente familiar, à procuradoria ou às polícias.

Creio na justiça discreta, – mas que gosta do espetáculo.

Creio na justiça ágil, – mas que se torna excessivamente morosa e cujo efeito fica altamente minorado.

Creio na justiça justa, – mas que penaliza mais a vítima que o infrator, aquele que se defende que aquele que ataca.

Creio na justiça eficiente e eficaz, – mas célere para quem desvia uma embalagem de açúcar ou de leite no supermercado e lenta ou nunca vinda para a grande corrupção ou o grande crime, que ou não se consegue provar ou que prescreve.

Creio na justiça ministrada por operadores independentes e imparciais, – mas dificultam, por vezes, a apensação de peças ao processo respetivo e revelam dificuldade em mobilizar, em prol da decisão justa, todos os saberes disponíveis na comunidade científica.

Creio na justiça como serviço e configuradora de um poder soberano, – mas que deixou confundir a prevalência das decisões judiciais transitadas em julgado com a extrema dificuldade do cidadão em lançar um olhar crítico sobre o sistema e sobre as decisões, alijando frequentemente a responsabilidade par os políticos, como se os magistrados o não fossem também (vd CRP, organização do poder político, onde se leem também os artigos atinentes aos tribunais e aos magistrados).

Creio na justiça de poderoso efeito, – mas que, por vezes, se limita a decretar a perda de mandato, ou, preventivamente, contacto com as vítimas em casos com o da violência doméstica, ou com os comparsas, em casos como o de gestão danosa.

Em face do objeto precário destas “crédulas crenças”,

Creio firmemente, na justiça e na lei, mas divinas porque, não o li, dado que a minha catequese paroquial foi rodada sobre catecismos editados por Monsenhor Amílcar Amaral e na denominada Bíblia das Escolas, mas, em casa, quando eu ainda não sabia ler e só decorava, me ensinaram a dizer que Deus, além do Ser Infinitamente Perfeito e Criador e Senhor do Céu e da Terra, é o nosso “legislador e remunerador” – verdade que a Teologia e a Filosofia Escolástica ainda não desmentiram. Este, sim, segundo a lei, mas a lei dos filhos de Deus; e segundo a justiça, mas não a dos homens – talvez porque não precisou do favor popular para ser o quem é e estar onde está ao lado do homem que o queira reverenciar, servir e amar!

 

A gestão das escolas rumo à autonomia

19-02-2014 18:43

A gestão das escolas rumo à autonomia

A Constituição de 1976 definiu os princípios orientadores da política educativa portuguesa, tornando obsoleta a lei de Veiga Simão e pertinente a existência de nova Lei de Bases do Sistema Educativo, remetendo para Assembleia da República a competência legislativa nessa matéria, como é óbvio.  

No entanto, a lei da sua 1.ª revisão (LC n.º 1/82, de 30 de setembro) consagra no art.º 77.º, o princípio da participação democrática no ensino, formulando-o duplamente nos seguintes termos:

1. Os professores e alunos têm o direito de participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei.

2. A lei regula as formas de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de caráter científico na definição da política de ensino.

Parece que, enquanto decorria o trabalho de revisão constitucional, o governo já estava no caminho do n.º 2 deste artigo, pois faz publicar o DL n.º 125/82, de 22 de abril, pelo qual é criado o conselho nacional de educação, como órgão de consulta do Ministério da Educação e com uma composição que, por antecipação, obedece àquele normativo constitucional, mas que terá desenvolvimentos futuros (o primeiro dos quais é indicado pelo DL n.º 375/83, de 8 de outubro), de acordo com a evolução da realidade nacional.

No entanto, só ao fim de 4 anos de discussões, oscilações e hesitações, avanços e recuos é que surge a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro de 1986, a lei de bases do sistema educativo (LBSE), que será alterada pelas leis n.os 117/97, de 19 de setembro, e 49/2005, de 30 de agosto, no atinente ao ensino superior; e pela lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, para alteração da idade e número de anos da escolaridade obrigatória, universal e gratuita.

O seu art.º 45.º (que passou a art.º 48.º na lei n.º 49/2005, de 30 de agosto) estabelece os princípios a que deve obedecer a administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino, que podem enunciar-se como segue: integração comunitária e fixação local dos respetivos docentes (vd n.º 1); administração e gestão orientada por critérios de democraticidade e participação (vd n.º 2); prevalência dos critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa (vd n.º 3); existência, na direção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino, de órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados, segundo regulamentação adequada a cada nível de educação e ensino (vd n.º 4).

Já o art.º 43.º (que passou a art.º 46.º na lei n.º 49/2005, de 30 de agosto) determina, no âmbito dos princípios gerais da administração e gestão do sistema educativo: pleno respeito pelas regras de democraticidade e de participação para a consecução de objetivos pedagógicos e educativos, nomeadamente no domínio da formação social e cívica (vd n.º 1); interligação, a nível nacional, regional e local com a comunidade através da participação dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias, de entidades representativas das atividades sociais, económicas e culturais e de instituições de carácter científico (vd n.º 2); e adoção de orgânicas e formas de descentralização e de desconcentração dos serviços (vd n.º 3).

Sendo certo que a LBSE, sem contrariar a Constituição, foi um pouco mais generosa que a lei fundamental ora revista, a legislação subsequente conseguiu inúmeras formas de atropelar os preceitos constitucionais e oscilar entre o cumprimento extensivo ou restritivo da LBSE – mercê de complacência com o status quo estabelecido, da falta de evolução qualitativa de algumas estruturas sociais de suporte, das opções políticas e das restrições financeiras – como se pode verificar por uma análise mesmo que sumária dos diversos diplomas que alegadamente reforçam a autonomia escolar. Há, entretanto, que lançar um modesto olhar sobre o que se passou no lapso de tempo entre a promulgação da LC n.º 1/82 e a LBSE.

Ainda antes da revisão da Constituição, além do que afirmamos aquando da concomitância do processo de revisão, desenvolveu-se um processo legislativo que culminou com o DL n.º 580/80, de 31 de dezembro, que estabelece o regime da profissionalização em exercício e que atribui competências nessa área ao conselho pedagógico, que cessaram com a publicação do DL n.º 405/86, de 5 de dezembro, que estatuiu a formação em serviço.

Por outro lado, surgiram muitas situações de não eleição de conselhos diretivos nas condições exigidas legalmente, por não existência de professores profissionalizados nas escolas ou por indisponibilidade dos mesmos, até porque a escola de provimento poderia não ser aquela em que desejavam permanecer. Pelo que se recorreu muitas vezes ao sistema de conselho diretivo de nomeação por um ano letivo, cujo presidente, que escolheria a sua equipa, era designado pelo Diretor Geral de Pessoal, mais tarde pelo Diretor Regional de Educação, com base num ato eleitoral em assembleia geral de professores de que resultava uma listas dos três nomes mais votados, dos quais só um viria a ser nomeado (habitualmente o mais votado).

Para obviar à desertificação da direção das escolas, é publicado o DL n.º 312/83, de 16 de janeiro, que estabelece as gratificações a atribuir aos membros docentes de conselhos diretivos de ensino preparatório e secundário, de que resultou alguma apetência, por vezes muito controversa, para a ocupação dos lugares. Pelo despacho n.º 30/EBS/85, de 21 de setembro, é fixada a representação do pessoal docente, no conselho diretivo em função do número de alunos do respetivo estabelecimento; e pelo DL n.º 211-B/86, de 31 de julho, fica regulamentado o funcionamento do conselho pedagógico e órgãos de apoio (sendo um deles o conselho consultivo, com a participação alargada de alunos, pais e representantes da comunidade).

Por outro lado, estabelece-se o regime de constituição, competências e mandato das comissões provisórias, para situações especiais das escolas, e comissões instaladoras, para as novas unidades escolares (desp. n.º 9/ME/83, de 11 de julho; DL n.º 215/84, de 3 de julho; e pta n.º 672/85, de 11 de setembro).

Já na vigência da LBSE, insiste-se nas alterações ao regime do DL 769-A/76, com a fixação das datas para as eleições do conselho diretivo (DL n.º 197/87, de 30 de abril) e para a sua posse (DL n.º 281/87, de 11 de julho, por alteração do anterior). E vêm os despachos n.os 16/SEAM/88, de 12 de abril, a regulamentar a designação do presidente das comissões instaladoras de estabelecimentos de ensino preparatório e secundário, 15/SEAM/88, de 12 de abril, a estabelecer o processo de homologação das eleições dos conselhos diretivos e das comissões provisórias dos referidos estabelecimentos, 16/SEAM/88, de 12 de abril, a estabelecer o processo eleitoral para os conselhos diretivos.

Depois, reconhecendo que “o parque escolar do ensino não superior constitui, no momento presente (sic), motivo de sérias preocupações para o Ministério da Educação, mormente a sua manutenção e conservação” e fazendo apelo ao “uso da autonomia administrativa e financeira na gestão das receitas que integram o fundo”, é criado o fundo de manutenção das escolas” e estabelecem-se “os elementos que integram a respetiva comissão de gestão” – com a publicação do DL n.º 357/88 de 13 de outubro.

Façamos aqui, para alguns considerandos, um breve momento de pausa neste levantamento de produção legislativa respeitante à matéria autonómica. Do meu ângulo de visão, os dois normativos decisivos e positivos são apenas o da criação do conselho nacional de educação e o da compaginação da LBSE. Quanto ao mais, o DL que, entre outras coisas, consagra o conselho consultivo, se bem que na linha da economia da revisão constitucional em termos de participação a nível local, não abrange toda a dinâmica da direção, administração e gestão; o da criação da comissão de gestão para a manutenção dos estabelecimentos, faz contraditoriamente apelo a uma autonomia escolar, consignada na LBSE, mas sem qualquer regulamentação que lhe dê eficácia; e os outros mais não fazem que apor remendos ao sistema vigente, sem o sancionar nem contradizer, talvez somente a aguentar a pressão à espera de melhores dias, mas sempre na satisfação sistemática da tentação da normação detalhada e do controlo total por parte da tutela.

Finalmente, é publicado o DL n.º 43/89, de 3 de fevereiro, que estabelece o regime jurídico da autonomia das escolas, em termos culturais, pedagógicos, organizativos e administrativos. Porém, deixa de lado a autonomia financeira, que dá lugar a regras de gestão na área, a cargo de um conselho de direção, e não abrange os estabelecimentos da educação pré-escolar nem os do 1.º CEB. No entanto, ousa cassar as virtualidades do DL n.º 211-B/86, que revoga, atribuindo-lhe a letra D, e sem o fazer substituir por outro – vazio mal colmatado pelo desp. nº 8/SERE/89, de 8 de Fevereiro, que aprova o regulamento que define as regras de composição e funcionamento dos conselhos pedagógicos e dos seus órgãos de apoio. E não para a preocupação em torno do DL n.º 769-A/76, pois, o desp. n.º 12/SEAM/89, de 23 de maio, vem estabelecer as condições de elegibilidade do pessoal docente para os conselhos diretivos dos estabelecimentos dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário.

Meus ilustres lusitanos, ora pensai comigo: se é tão difícil chegar à autonomia por via legislativa – tantas e tão grandes são as contradições e escolhos, os avanços e os recuos, tamanha a promiscuidade entre o enunciado autonómico e a tentação reguladora e “controleira” (releve-se-me o disparate) – como não há de ser espinhosa a rota prática do seu exercício quotidiano! É que a autonomia implica um estatuto de maioridade, que obriga a tomar decisões sem que outrem forneça orientações, mas com responsabilidade, de modo a prestar contas atempadamente a quem de direito, designadamente a tutela administrativa e a comunidade. E isso não é fácil…

Aguardemos se a revisão constitucional de 1989, por via direta ou indireta, nos traz novidades.

Francisco, “o guardião”?

18-02-2014 19:30

Francisco, “o guardião”?

Recaiu-me na mesa da reflexão o livro de Rómulo Cândido de Souza Palavra, parábola (da editora “Santuário”, Brasil: 1990), que li e reli nos finais do passado milénio; e o refrescamento da leitura do capítulo 41 levou-me à releitura da homilia do papa Francisco na celebração eucarística da inauguração solene do seu exercício do ministério petrino, a 19 de março de 2013. É verdade que o pontífice apresenta o pretexto circunstancial da celebração do homónimo de Ratzinger, o seu predecessor imediato, coincidente com a solenidade de São José. Todavia, parece não ter sido inopinada a escolha do dia, já que a opinião pública tinha sido advertida pelos competentes serviços do Vaticano de que a celebração não teria de ocorrer num domingo, sendo que o mais próximo do dia da eleição permitiria uma suficiente preparação do evento. Parece efetivamente que Francisco pretenderia deixar ao mundo uma mensagem petrina ligada à função de José, o “esposo da Virgem Maria e patrono da Igreja universal” (sic), que desvenda uma outra faceta da epígrafe evangélico-vaticana “Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam; et portae inferi non praevalebunt adversum eam (Mt 16,18).

Depois, de comentar a missão de José como o custos, guardião e protetor de Jesus e de Maria, o papa declara “mas vemos também qual é o centro da vocação cristã: Cristo. Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros, para guardar a criação”! E, mais adiante, esclarece: “a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Génesis e nos mostrou São Francisco de Assis”. E, quase no final, exclama: “Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados”. Estará então o papa consciente desta dimensão do serviço petrino, mas que não pode ser cumprido senão com e em cooperação solidária de todos.

Ora o predito livro explica o sentido do designativo que do hebreu passou ao grego e se diz Kéfas (petrus e petra, em latim), atribuído por Cristo a Simão Pedro. Estávamos atidos à fortaleza da rocha contra a qual não prevalecerão as forças do inferno (non praevalebunt), mas contra a qual poderão também estatelar-se os incautos, quiçá os mais frágeis. Que diz o livro, de acordo com as palavras do Dr Samuel, um hebreu russo e interlocutor de Rómulo? Responderei seguindo o autor, mas com as convenientes adaptações discursivas e de síntese.

A palavra kéfas, em aramaico, além de “pedra” ou “rochedo”, tem sobretudo o significado de “gruta formada na rocha” ou “rochedo escavado ou abobadado”. Eram abundantes na Palestina essas grutas rochosas, tendo o monte Carmelo mais de mil. Sem invalidar o texto evangélico da necessidade de construir a casa sobre a rocha firme e não sobre a areia movediça (cf Mt 7,24-27; Lc 6,48-49), há que esclarecer que as tais grutas rochosas (umas pequenas, onde mal cabia uma pessoa; outras bastantes grandes, podendo medir 14 metros de comprimento por 8 de largura e 6 de altura) serviam “para proteger os pastores e suas ovelhas, bem como viajantes e peregrinos, surpreendidos pela noite, pelo frio ou tempestades”. Mas também serviam (Para longe vá o agouro, em termos da Igreja Católica, a menos que se trate de refugiados e perseguidos pelas forças da iniquidade!), “para esconder, em todos os tempos, ladrões, bandidos, ou simples fugitivos em época de invasões, guerras perseguições”. Consta que Elias e Eliseu, numa dessas grandes cavernas, tinham uma escola de profetas.

O antigo testamento tem a palavra kéfas recenseada apenas duas vezes: no livro de Job, por ocasião das suas provações – “banidos da sociedade dos homens, são vaiados como se fossem ladrões, moram nas falésias dos barrancos, nas cavernas da terra e dos rochedos” (Jb 30,5-6); e no de Jeremias, na invasão dos caldeus a Jerusalém – “ao grito dos cavaleiros e archeiros, todo o país ficou em fuga; penetraram na selva, galgaram os rochedos, todas as cidades foram abandonadas e não ficou ninguém” (Jr 4,29). A versão grega, dos LXX, mostra que os tradutores anciãos conheciam bem o original hebraico: traduzem o kéfas de Job por trôglai petrôn – “cavidades das rochas” ou “cavernas”; e o de Jeremias, por spélaia – “grutas” ou “cavernas”. Tais palavras gregas persistem na língua portuguesa, em “troglodita” (habitante das cavernas – de “trogle”, caverna); e em espelunca (cavidade à maneira de caverna), onde o marginalizado não mora, mas se esconde, se refugia ou se abriga.

E o sábio continua a ensinar que a língua hebraica (habitualmente considerada pobre!) tem outros vocábulos para “rochedo”, como tsur e sêla, que significam “pedra maciça” ou “bloco compacto de rocha” e são utilizados sobretudo nos Salmos como símbolo da segurança que Deus oferece aos seus diletos. Mas kéfas não é tsur nem sêla, “rochedo maciço”, mas “rochedo escavado” ou “caverna”, “gruta”.

Então concluiremos que é necessário pôr em causa o entendimento comum de kéfas, se for tido como exclusivo. Assim, se a Igreja for um sobretudo um edifício construído sobre “esta pedra”, ou seja, em cima do rochedo, a tradução clássica tem sentido, mas é demasiado metafórica; se a lógica indicar que não se constrói nada em cima de uma gruta, mas que algo se guarda dentro de uma gruta, faz mais sentido a tradução sugerida pelo sábio. Efetivamente, Cristo nasceu dentro (e não em cima) da gruta de Belém, transformada em estábulo, emprestado por animais, mas sinalizada pelos anjos e pela estrela, visitada pelos pastores e aberta aos magos; foi sepultado numa gruta escavada na rocha, cedida por um amigo, visitada por mulheres e apóstolos; e a Igreja, na conceção bíblica não é um edifício (a não ser no sentido espiritual), mas a comunidade (de pessoas), o povo – que teve de viver em catacumbas. E as pessoas abrigam-se dentro da gruta e não em cima dela, que necessariamente, para servir de proteção, tem de – digo eu – ser forte, inabalável, mas sobretudo espaçosa, acolhedora, referenciada. É natural – penso – que, para “avisar” os outros de que a gruta está disponível e para os encaminhar para ela, é preciso sair dela e estar muito tempo fora dela, mas sem alguma vez a perder de vista!

Como complemento do seu raciocínio, o sábio assegura a índole poliglota de Cristo ou, pelo menos, que Ele “possuía uma intenção maravilhosa das palavras”, dado que a palavra de kéfas “tem rastros etimológicos em todas as línguas do mundo, desde o Egito antigo até às línguas modernas”. Em frente de uma estante com dicionários em egípcio, hebreu, árabe, grego, latim, assírio-babilónio, sânscrito, sírio, português, alemão, inglês, etc., o Dr Samuel queria mostrar toda a força da palavra kéfas através do paralelismo etimológico-fonético de diversas línguas. Deste modo, esta “palavra origina-se de um som clássico universal, que vem desde os egípcios e babilónicos até às línguas modernas”: kef, kep, keb, kev; guef, guep, gueb, guev; hef, hep, heb, hev. E “o sentido básico destes sons é: cercar, guardar, proteger, defender, envolver” – tais são as funções da gruta – tendo o hebraico combinado os fonemas k, g, f, h, b e v, aliados às vogais conhecidas, na escrita, como carateres massoréticos, de que resultaram múltiplas palavras cujo sentido passa por: palma da mão, cobertura, encobrimento, perdão, vaso, resina, betume, cola, ramo, palmeira, asa, curva, cerco, proteção, defesa, esconderijo, seio, ninho, cova, poço, abrigo, refúgio…

Ora, o kéfas de Mateus não é uma rocha maciça, onde se constrói por cima um edifício, mas uma gruta protetora, escavada no rochedo, que cobre, protege, defende, como a palma da mão de Deus, os ramos da palmeira, as asas da ave sobre os filhinhos e sobre o ninho ou como o betume da arca de Noé.

Sendo assim e retomando o sentido do ser e da missão da Igreja, voltemos às palavras de Francisco no ato inaugural do seu pontificado:

Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito económico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos «guardiões» da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo! Mas, para «guardar», devemos também cuidar de nós mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida […]. Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura.

E especificando o sentido da função de guardião (lembram-se os lamecenses do título dado ao superior da comunidades dos franciscanos na cidade, o guardião – que não o guarda-livros, guarda-redes, guarda-fios, guarda-rios ou guarda-freios?), o papa afirma:

[…] hoje, perante tantos pedaços de céu cinzento, há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança. Guardar a criação, cada homem e cada mulher, com um olhar de ternura e amor, é abrir o horizonte da esperança, é abrir um rasgo de luz no meio de tantas nuvens, é levar o calor da esperança! 

Não teremos aqui material de reflexão sobre uma notável vertente da teologia sobre a Igreja (provavelmente mais mater que magistra) e sobre o papa (provavelmente mais papá que sumo pontífice), aceitável por todos os cristãos e que Francisco parece querer agarrar, mesmo quando manda que se parta para as periferias sejam elas quais forem, deixando o conforto do centro, que não a sua espiritualidade?

 

 

Escola do sucesso ou escola do futuro?

17-02-2014 16:53

Escola do sucesso ou escola do futuro?

A questão vem ao caso depois de ter lido, no caderno especial do Público de 16 de fevereiro, a entrevista de Marçal Grilo a Maria João Avilez. Não vou comentar toda a entrevista, com que até concordo na generalidade, mormente no que diz respeito à recolocação do ensino superior e da investigação na plataforma das exportações e ao papel da vertente humanística no conspecto geral da formação, mesmo da tecnológica.

No entanto, apesar de não gostar de contradizer aquelas pessoas cuja probidade, capacidade de trabalho e mundivisão clarividente devo enaltecer, como é o caso, entendo ser oportuno respigar criticamente certos pontos atinentes à educação, não superior. Do ensino superior quase nada direi, até porque pouco saberia dizer.

Um dos seus antecessores, Roberto Carneiro, que pôs em marcha uma das reformas mais amplas de todo o sistema educativo crismou a instituição escolar a que deu corpo com o designativo “a escola do sucesso” e dela fez remetente epistolar para educadores, professores, pais e encarregados de educação, e autarcas. Marçal Grilo apostou na “escola do futuro”, na concomitância com a “paixão” de Guterres pela educação. É de salientar que se trata de denominações de que se gosta, mas que pouco relevam.

Na entrevista, vergasta o imobilismo da escola em confronto com o da ação hospitalar, a ponto de exclamar: “se pegar num médico do séc. XIX e o trouxer de repente para um hospital, ele será incapaz de fazer cirurgia, nem sequer perceberá onde está”, ao passo que “o meu avô que foi professor primário no final do século XIX, seguramente reconheceria numa sala de aula muito do que viveu há cem anos nas suas classes”.

E eu fico a pensar que os hospitais são poucos comparativamente ao número de escolas; e os médicos com todos os produtores de equipamentos, produtos e subprodutos concernentes à saúde – que, sendo um bem público, não deixa de constituir um poderoso negócio – arvoram-se em lóbi que muito dificilmente os sucessivos governos nos diversos países conseguem contrariar. Veja-se o esforço e o tempo que os últimos governos despenderam para generalizarem a prescrição médica por substância ativa e a concomitante procura dos medicamentos genéricos. Depois, a formação contínua dos médicos nunca esteve em banho-maria como a dos professores, cujos regimes jurídicos se sucedem, mas as ações borregam umas atrás das outras, com exceção das que os suficientemente motivados pagam ou daqueles que o MEC impõe a alguns para propaganda de imagem de rigor (vg. formação de corretores de provas nacionais). Reparem quantas lágrimas se derramaram pelo alegado excesso de gastos na requalificação do parque escolar e nos centros de novas oportunidades – nem sempre com a preocupação da temperança, mas do combate, por vezes, intempestivo. Duvido de que todos considerem a educação como um bem necessário!

Agora, na administração da Gulbenkian, Grilo preconiza a formação que passe pelo investimento em alguns equipamentos – tablets, por exemplo – e pela atenção à formação dos professores que os irão utilizar, já que “nenhum equipamento por si só resolve problema algum, se não estiver ao serviço de um projeto pedagógico conduzido pela liderança da escola e pelos professores preparados para utilizar esses equipamentos”. Ora, “a formação dos professores para o melhor uso das novas tecnologias”, embora seja necessária, fica muito aquém das necessidades de formação contínua (Sócrates também nela apostou com os “Magalhães”, programas e-escolas, quadros interativos – do plano tecnológico da educação, uma vertente do choque tecnológico – e foi ridicularizado), que deve atualizar a componente científica e a componente pedagógica (e não somente a didática).

Recordando o período em que sobraçou a pasta da Educação, aponta as 4 componentes da passagem pelo governo, com que, aliás, se concorda: a participação no Conselho de Ministros, que proporciona a visão de conjunto do país e seus problemas específicos (e implica a tomada de responsabilidade solidária, acrescento eu); a gestão do Ministério da Educação, enquanto máquina difícil de dominar; a importância das reformas, traduzida na produção legislativa — decretos-lei, propostas de lei e outros diplomas; e a mensagem que o ministro lança à sociedade.

Em consonância com a predita mensagem (“a importância da educação nos primeiros anos de escolaridade”) – diz – “lançámos o pré-escolar, criámos as suas bases”, em prol da “sociabilização da criança, o contacto com as letras, os números, as pessoas, o mundo” – considerando essa vertente “ essencial para o seu desenvolvimento”. 

Nortearam-no os princípios da: concessão (não gosto eu da autonomia concedida, que não aparece assim nos diplomas) de autonomia às escolas, dado que o sistema, em certa medida, ainda em vigor enfermava do centralismo e uniformização, quando “cada escola devia ser tratada como uma instituição em si: com o seu projeto educativo e capaz de desenvolver por ela o que nenhum sistema centralizado pode comandar à distância”; formação específica de diretores para o cargo, com capacitação para liderar o projeto concreto de escola, de comunidade, dos alunos, dos pais; e “importância e responsabilidade que todos temos de ter e assumir na educação e no crescimento equilibrado dos mais novos”.

Sintetiza as iniciativas assumidas em três grandes linhas: educação pré-escolar, autonomia e financiamento do ensino superior. Nos 4 anos de governo, resolveram-se os problemas existentes a que chamou “escolhos”, condição necessária “para que a nau pudesse navegar”, o que alcançou com o “empenhamento dos professores” e o “maior envolvimento dos pais”, bem como com a legislação produzida. Mas tece críticas aos céticos da autonomia, em que inclui os sindicatos, pelo facto de a autonomia implicar algumas medidas específicas, como a contratação dos próprios professores pela escola (refere que “a partir do ano 2000 houve alguma regressão, mas já se retomou hoje a ideia da autonomia como caminho promissor”); ao atual ministro da educação, que “tem feito uma gestão que incide muito, ou que atende mais, a aspetos relacionados com o curriculum, o conteúdo das disciplinas, e que há outros aspetos que não estão a ser acautelados, como a criatividade, a iniciativa, a responsabilidade, a atitude....”; e ao país em geral, no sentido de que “nos valores, há imenso a fazer, se há algo que o país e o mundo perderam, foi a ética”, que “parece varrida do comportamento das pessoas”.

É óbvio que lhe assiste a razão na linha dos princípios, mas alguns deles e as medidas implementadas merecem alguma discussão.

Por exemplo:

Não se concorda com uma autonomia concedida, mas preconiza-se a autonomia desejada, trabalhada, alcançada e reconhecida. A contratação de professores de carreira pela escola autónoma pode arquitetar situações clamorosas de injustiça secundadas pela eventual ultrapassagem de profissionais de maior graduação e nem sempre melhores conhecedores do contexto local, bem como pela instalação do compadrio e amiguismo (as pequenas experiências de recrutamento local não abonam grande coisa de recomendável, a exemplo do que se passa em muitas autarquias no âmbito do recrutamento e seleção de pessoal). Por outro lado, é fácil os dirigentes enveredarem por uma atitude, muitas vezes sequencial de abuso ou de má utilização da autonomia (autonomia deles, que não da escola), nomeadamente para medidas autocráticas e de perseguição de gente que ousa exprimir seus pontos de vista. De resto, a autonomia é consagrada na LBSE (lei n.º 46/86, de 14 de outubro). Neste aspeto, o ministro mais não fez (e é bom) do que continuar e aperfeiçoar os esforços anteriores, a saber: DL n.º 211-B/86, de 31 de julho, que regula o funcionamento do conselho pedagógico e órgãos de apoio e cria o conselho consultivo, com a participação alargada de alunos, pais e representantes da comunidade (não constitui um diploma abrangente de toda a direção, administração e gestão); DL n.º 43/89, de 3 de fevereiro, que Estabelece o regime jurídico de autonomia das escolas oficiais dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário (não inclui a rede de jardins de infância e escolas do 1.º CEB); DL n.º 172/91, de 10 de maio, que define o regime de direção, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (é aplicado em regime de experiência em algumas escolas na área de cada uma das direções regionais de educação e a direção prevista na LBSE é o conselho de escola ou de área escolar). E o ministro, em matéria de autonomia, pelo despacho n.º 128/ME/96, de 8 de julho, prorroga, no ano letivo 1996/97, a aplicação experimental do regime jurídico de direção, administração e gestão instituído pelo DL n.º 172/91; pelo despacho n.º 130/ME/96, de 8 de julho, encarrega o Doutor João Barroso de realizar um estudo prévio de natureza prospetiva e operacional sobre o reforço dos níveis de autonomia das escolas; pelo despacho n.º 37-A/SEEI/96, de 29 de setembro, sanciona medidas que permitem às escolas dos 2.º e 3.º CEB assumir novas responsabilidades a nível organizacional e pedagógico, com respeito pela sua autonomia, nomeadamente quanto à composição do conselho pedagógico; e pelo despacho normativo n.º 27/97, de 2 de junho, aprova medidas tendentes a criar condições para a aplicação de um novo regime de autonomia administração e gestão das escolas, a partir do ano letivo de 1998/99, nomeadamente nos domínios do reordenamento da rede escolar e do reforço da autonomia.

É um grande trabalho de continuidade e aperfeiçoamento (que não de originalidade de iniciativa) que vai culminar no regime jurídico da Autonomia, Administração e Gestão das Escolas e Agrupamentos de Escolas, aprovado pelo DL n.º 115-A/98, de 4 de maio, alterado pela lei n.º 24/99, de 22 de abril, e regulamentado pelo decreto regulamentar n.º 10/99, de 21 de julho.

No regime destes diplomas, o conceito de direção (a cargo da assembleia de escola, do regime experimental) fica obnubilado pelo de autonomia, privilegiadamente atribuída à assembleia de escola (constituída por representantes de vários corpos e entidades e eleitos pelos respetivos universos eleitorais ou designados pelas competentes instâncias). Embora eleito, o órgão executivo passou a poder ser, em alternativa, unipessoal ou colegial, o que se presta a ambiguidades, a que o futuro pôs cobro do pior modo. Mantém um conselho pedagógico de polirrepresentação, mas com a dialética de poder / não poder deliberativo, o que deu como resultado a sua transformação prática em órgão de trabalho, consulta e transmissão de diretivas, que o regime atual de autonomia passou para os sistemas de designação e/ou de eleição limitada. Abre para o mecanismo de agrupamentos, que paulatinamente se generalizou até se transmutar, pelo sistema de agregação de agrupamentos verticais no panorama que hoje configura a administração escolar como se de uma empresa se tratasse, mas sem os parâmetros de eficiente planeamento, gestão e controlo. Por isso e verificando que o centralismo cada vez mais aperta a autonomia, vejo com muita dificuldade o supradito “caminho promissor”.

No atinente à educação pré-escolar, efetivamente, o ministro, faz aprovar a lei-quadro da educação pré-escolar (lei n.º 5/97, de 10 de fevereiro), cujo desenvolvimento é regulamentado pelo DL n.º 147/97, de 11 de junho, pela portaria conjunta ME/MSSS n.º 583/97, de 1 de agosto, e pelo despacho n.º 5220/97, de 4 de agosto. Embora se reconheça a validade do programa de expansão e desenvolvimento da educação pré-escolar, não parece justo fazer-se tábula rasa das iniciativas anteriores, até porque nem agora ela se tornou efetivamente obrigatória e universal e considerar a educação pré-escolar como “a primeira etapa da educação básica é um enunciado ambíguo. Se não, porque mantém a denominação e porque não se universaliza “custe o que custar”, como se tornou usual dizer? Coisa análoga se deve dizer da expansão e requalificação do parque escolar: em quatro anos não se pode fazer tudo, mas faz-se muita coisa. E a opinião pública não se mostrou tão severa como para governos anteriores e sobretudo para os subsequentes. Por mim, provenho de zona em que a ampliação e qualificação do parque escolar e a rede de educação pré-escolar se operacionalizaram totalmente antes de 1996.

Finalmente, quanto à formação dos líderes (evito a designação de diretores, gestores ou presidentes), o sinal não passou do que estava estabelecido. É certo que a gestão não se ficou no amadorismo de outrora, evolução para que terá contribuído a sua valorização financeira. O próprio ministro fez publicar o despacho conjunto n.º 200-A/MF/ME/96, de 28 de agosto, que estabelece o aumento das gratificações pelo exercício de funções aos membros dos conselhos diretivos, a partir do ano lectivo de 1996/97. De resto, a formação específica imposta pelo referido DL n.º 172/91 foi regulamentada e facilitada ainda pelo Ministério da Educação de Couto dos Santos e de Ferreira Leite (vd portaria n.º 1279/95, de 28 de outubro, aditamento à portaria n.º 1209/92, de 23 de dezembro, que regula a formação especializada para o exercício de cargos de gestão pedagógica e administrativa). É certo que o DL n.º 115-A/98 impõe a qualificação dos candidatos a diretor executivo ou a presidente do conselho executivo, mas tal qualificação pode provir tanto da formação como da experiência diretiva, que poderia ser de gestão intermédia, como instâncias judiciais vieram a sancionar. Ora, não se definindo em que constituía a profissionalização da gestão escolar, pergunto-me se não se insistiu antes num supino prolongamento do institucionalizado amadorismo, que, em muitos casos, afastou de cena os que adquiriram formação superior em administração e organização escolar, abriu a porta a que muitos entrassem via simpatias municipais e empresariais ou se estabelecessem nas escolas alguns reizinhos. Lembram-se da enorme quantidade de perguntas feitas, em 2010, por dirigentes de escolas “autónomas” a um secretário de Estado da área da educação sobre a avaliação de desempenho docente?

Por mim, tenho imenso prazer em recordar ter servido na gestão de escolas, então não autónomas, em que o poder consistia na força da razão e da argumentação.

Como é que pode avançar a educação, se a sua administração estiver sujeita a jogos de interesses políticos e pessoais? Porque não fazer dela um cuidado motor de desenvolvimento pessoal, social, profissional e político?

Sobre “o veredicto sem apelo de Bergoglio contra o padre pedófilo”

16-02-2014 15:57

Sobre “o veredicto sem apelo de Bergoglio contra o padre pedófilo”

O texto referenciado em epígrafe reporta uma decisão condenatória de um padre italiano acusado de pedofilia, ou pelo menos abuso de menor ("efebofilia"), com fundamento que, após as devidas investigações, terá vindo a comprovar-se. Garante mesmo que “não há descontos na era da transparência do papa Francisco”. A contrario, deixa na penumbra de alegado encobridor do caso (ou de o haver tratado com excessiva benignidade) o ordinário diocesano, que se terá sentido ultrapassado pelo enunciado decisório da Congregação da Doutrina da Fé (CDF), que – adiante-se – ao tratar destas causas atinentes a bispos ou a padres, ultrapassa a sua índole meramente executiva ou mesmo administrativa e se constitui em tribunal especial e tribunal supremo. Isto, pelo menos desde 18 de maio de 2001, com a carta de delictis gravioribus, da CDF.

As decisões condenatórias do Vaticano, à partida, não me merecem reparo. Todavia, e contradizendo-se a si mesmo o texto em causa, ao salientar, por um lado, a intangibilidade da era "Francisco" e, por outro, ao fazer remontar a onda de penalizações para tempos anteriores, inclusive enaltecendo as medidas “não garantistas” do consulado dicasterial de Ratzinger, não vejo por que motivo o Vaticano seja visto com tanta suspeita por eclesiásticos e entidades externas. Se a pena eclesiástica máxima tem sido aplicada ou, pelo menos perentoriamente prevista, só restará acrescentar outras, de que não vejo a Igreja poder dispor, a não ser que pretendamos instaurar e aceitar um clima de delação e voltar ao tempo da Inquisição: "encontrar os relapsos e, caso não se verguem, relaxá-los ao braço secular".

De resto, tranquiliza-me que fraseado como este “É como uma condenação à morte ou à prisão perpétua” não tenha provindo das instâncias dicasteriais romanas, mas de observadores, embora vaticanistas. Porém, não me deixa tranquilo o beneplácito pela hipotética opção pela via administrativa (a ser verdade), plasmada no comentário: "E é uma medida que, nesse caso, a Santa Sé tomou não através de um processo tradicional, com as testemunhas e a defesa. Mas até escolhendo a via administrativa, a mais rápida, dado o grau de certeza do Vaticano.". E, em face do que assegurei acima, a probidade vaticana, apesar de tudo quanto é acusada, não me permite concluir que tenha havido uma opção pela via administrativa. Além disso, não se torna pertinente sobrelevar a expressão “sem apelo” sobre o veredicto em referência, uma vez que se trata do tribunal supremo para aquela matéria, a não ser (possível em tese) o recurso para o plenário ou o apelo para o próprio papa, também detentor do poder judicial. Não sei mesmo (penso que não) se crimes deste género admitem as clássicas “atenuantes”; no entanto, estão sujeitos ao mecanismo da prescrição (de dez anos desde o momento em que a vítima perfaça os 22 anos, segundo a citada carta).

A via administrativa nunca é totalmente segura, nem o alegado "grau de certeza" a ratifica. A via judicial, que tem em conta as possibilidades de defesa e segue os elementos testemunhais, documentais e periciais de prova, revela-se muito menos falível e dá maior tranquilidade a quem teve a tarefa espinhosa de sentenciar. De modo algum, posso acreditar que o rigor que se preconiza (às vezes, com sabor taliónico) anule a caritas erga personam em nome de uma justiça meramente vindicativa. Se é verdade que a justiça se ministra em nome do “Direito”, não vale subordinar em absoluto à dignidade das vítimas a absoluta indignificação dos infratores. Mesmo que se tenha esgotado, em termos humanos, a sua recuperação, não nos é lícito atirá-los para o inferno.

Finalmente, não me aflige a expressão "redução ao estado laical". Sempre reduzi quilómetros a metros e vice-versa e ninguém me ensinou que o quilómetro era essencialmente superior ao metro (grau é grau; não é essência). A lógica do poder que possa contrapor leigo e clérigo não me parece relevante, dado que o poder hierárquico é somente uma vertente do poder, o qual reside essencialmente no “saber”. Contemporaneamente é de quem tenha possibilidade de mostrar saber ou conhecimento que as estruturas de poder têm medo (político, militar, financeiro, económico, empresarial, laboral...). Vejam-se os casos mediáticos da novel espionagem ou a relevância que os departamentos de informação e centros de criptografia tinham e continuam a ter nos Estados, nas polícias e nas forças armadas!

A ADSE e os seus encargos

15-02-2014 16:28

A ADSE e os seus encargos

A ADSE – sigla da então Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado, designação inicial atribuída ao organismo em 27 de abril de 1963 – significa, a partir de 15 de outubro de 1980, Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas e é um serviço integrado do Ministério das Finanças e da Administração Pública (em breve a ser integrado no Ministério da Saúde), dotado de autonomia administrativa que tem a responsabilidade de gerir o sistema de proteção social aos trabalhadores do setor público administrativo.

As suas atribuições e normas de funcionamento encontram-se consignadas no Decreto Regulamentar n.º 44/2012, de 26 de junho, e na Portaria n.º 351/2007, de 30 de março.

A ADSE financia (ou seja, comparticipa, satisfaz parte delas) as despesas realizadas pelos beneficiários com o tratamento, reabilitação e vigilância da saúde. Participa, na verificação da doença (visitas domiciliárias e junta médica).

Financiam a ADSE os departamentos do Estado ou similares de que provenham os funcionários no ativo, aposentados e reformados e, sobretudo, os beneficiários.

Só que o Estado manifestou a intenção de progressivamente se eximir ao cumprimento do seu dever de financiar (o que as sucessivas leis do orçamento espelham claramente) até alijar totalmente a responsabilidade para os ombros dos beneficiários, considerando o organismo como um seguro especial de saúde.

Eis senão quando surgem duas notícias bem interessantes, para não dizer arrepiantes. A primeira pode ler-se no Jornal de Notícias de sexta-feira passada, que noticia: “doze médicas, enfermeiras e outras funcionárias do Hospital de S. João foram acusadas de falsificar documentos de supostos tratamentos dermatológicos para fazer depilações à custa da ADSE”.

O jornal explica o esquema nestes termos: médica responsável de uma clínica passava um documento garantindo que o tratamento depilatório constituía um ato médico de dermatologia, as clientes (ou melhor, pacientes qualificadas) sujeitavam-se à depilação e a fatura era passada pela clínica já com o número de ADSE da cliente/paciente, que a apresentava aos serviços do Hospital S. João, no Porto, para obter o respetivo reembolso.

Comentários das redes sociais referem que o facto não é inédito assestando baterias sobre outro grande hospital. E eu me lembro de que, numa escola secundária, hoje extinta, ou melhor agregada a outro estabelecimento, de cuja agregação resultou uma EB 2/3 sem ensino secundário, a então chefe de secretaria terá conseguido substituir toda a sua dentadura natural por uma nova totalmente à custa da ADSE, fazendo a jogada com os números de beneficiário de professores e funcionários, bem como a assinatura da documentação respetiva por parte do especialista. Descoberta a manobra e depois do pertinente procedimento disciplinar, a senhora teve uma penalização conforme o estipulado no respetivo estatuto disciplinar, ao mesmo tempo que foi objeto de uma promoção – facto ao tempo assaz comentado.

Provavelmente, a ADSE terá passado por outras situações de congénere desvio de finalidades. Daí resultou que os dentes passaram cada um a ter uma codificação individualizada, não sendo possível ter sido feita ablação do mesmo dente duas ou mais vezes no mesmo paciente. Espero que agora cada pelo instalado no corpo feminil também fique sujeito a codificação adequada de modo que o mesmo não seja objeto de depilação duas ou mais vezes.

A outra notícia é do Expresso de hoje: “funcionários públicos tratados no setor privado só terão acesso à medicação que é dispensada no SNS. Medida avança já este ano”.

O desenvolvimento da notícia avança que a medida coincidirá com a mudança de tutela, como acima se referenciou e terá resultado da denúncia de médicos. E vem em defesa da diferenciação o bastonário da OM alegando – e bem – que o beneficiário da ADSE já paga a saúde duas vezes.

Ora bem, no quadro da cidadania em que me situo e na defesa dos interesses de contribuinte, tenho de protestar contra a tomada de medidas mesquinhas e contra a alegada não discriminação. Primeiro, porquê a crismação dos dentes, sendo mais óbvia a promoção da fiscalização e a punição justa de quem prevarica? Depois, se os cidadãos são mesmo iguais perante o Estado, porquê uns descontarem sobre o rendimento 11% para a segurança social e outros, em simultâneo, 11% para a CGA e 2,5% (e, se o orçamento retificativo entrar em vigor, a partir de 1 de março, 3,5%) para a ADSE? Ainda não foram os trabalhadores públicos e os pensionistas suficientemente hostilizados, e eu não sabia…

Quero dizer ao governo e aos seus intrépidos defensores que, se somos todos iguais, paguemos todos por igual; se somos desiguais em contribuição, não nos cortem o pouco de que ainda dispomos, para satisfação de um pouco de equidade, salvaguardando para todos o patamar do tratamento condigno. Pensava eu que já tinha passado o tempo em que todos éramos iguais para pagar (uns mais iguais que outros!) e todos desiguais para receber (tanto que uns acabavam na miséria ou na dependência das esmolas dos vizinhos!).

Já que não há Estado, haja Deus!

A gestão democrática das escolas e a legislação conexa

15-02-2014 01:52

A gestão democrática das escolas e a legislação conexa

Com a revolução abrilina, não obstante a arejada reforma democrática do ensino da pena de Veiga Simão (Lei n.º 5/73, de 25 de julho – lei de bases do sistema educativo), impõe-se a rutura com as estruturas do regime anterior, em consonância com a nova formulação do sistema de educação e ensino.

Essa lei instituiu a educação pré-escolar, o ensino básico (primário, com a duração de 4 anos, e preparatório, também de 4 anos), ensino secundário diversificado (de 4 anos, sendo 2 de ensino geral e 2 de ensino complementar) e superior (de curta duração, com a atribuição do grau de bacharel, ministrado em institutos politécnicos e escolas normais superiores; e de longa duração, com a atribuição do grau de bacharel, licenciado e doutor, ministrado em universidades), bem como a formação profissional e a educação permanente. Na sequência dessa lei, é publicado o decreto-lei (DL) n.º 513/73, de 10 de outubro, que altera as estruturas administrativas dos estabelecimentos de ensino preparatório e secundário, que ganham “autonomia administrativa, sem prejuízo das disposições gerais sobre a contabilidade pública e da superintendência a exercer pela Direção-Geral da Administração Escolar” (art.º 1.º). Por sua vez, o art.º 2.º consagra como “órgãos de direção administrativa dos estabelecimentos o diretor ou o reitor (nos liceus) e o conselho administrativo”. Este é composto pelo diretor /reitor, que preside, e dois vogais (um professor do quadro designado pelo Diretor-Geral da Administração Escolar, ouvido o presidente, e o chefe de secretaria que exerce o cargo de secretário.

A implementação da Lei 5/73 é surpreendida na fase embrionária de seu desenvolvimento pelo “25 de Abril”. Por isso, embora alguns dos itens do modelo que ela consagrava (não avaliado nem sequer testado) tenham servido de base a estudos posteriores e sido transferidos para opções estruturantes da reforma surgida da revolução, nunca se pôde saber a que poderia conduzir, dada a sua incongruência com o sistema político-social vigente, tanto antes como depois.

No contexto pós-revolucionário, temos que distinguir dois momentos: o momento pré-constitucional (das comissões de gestão ao conselho diretivo); e o momento constitucional, o da consolidação dos diferentes órgãos de gestão (conselho diretivo, conselho pedagógico, com seus órgãos de apoio, e conselho administrativo). O primeiro resulta da dinâmica revolucionária que desencadeia, na sociedade, a onda libertadora de tensões acumuladas durante décadas, que se propaga rapidamente às escolas, alterando significativamente o seu devir e mesmo o do sistema educativo. O primeiro sinal de rutura é dado, ainda com o golpe de estado bem fresco, embora somente para o ensino superior, com a publicação do DL n.º 176/74, de 29 de abril, da Junta de Salvação Nacional, a exonerar as autoridades académicas do tempo de M. Caetano.

O DL n.º 221/74, de 27 de maio, do governo provisório, com vista a “apoiar as iniciativas democráticas tendentes ao estabelecimento de órgãos de gestão que sejam verdadeiramente representativos de toda a comunidade escolar” (vd preâmbulo), determina que a sua direção possa ser confiada, pelo Ministro da Educação e Cultura (MEC), a comissões democraticamente eleitas ou a eleger depois de 25 de abril (vd art.º 1.º). Estas comissões de gestão “escolherão entre os docentes um presidente que as representará e assegurará a execução das deliberações coletivamente tomadas” (art.º 3.º). Este decreto, que é promulgado por necessidade de controlo dos acontecimentos, verificada a validade da experiência conseguida e com vista a garantir a participação de outros agentes interessados na ação educativa, dá lugar ao DL n.º 735-A/74, de 21 de dezembro, que estabelece o novo ordenamento da administração e gestão das escolas, em que a comissão de gestão dá lugar ao conselho diretivo [integrado por representantes dos professores, dos alunos (só em escolas secundárias) e do pessoal administrativo e auxiliar]. Este conselho é coadjuvado por um conselho pedagógico, cuja presidência cabe ao presidente do conselho diretivo, que preside também ao conselho administrativo.

O mesmo DL garante que o MEC “apoiará a criação de associações de pais e encarregados de educação dos alunos dos estabelecimentos dos ensinos preparatório e secundário”, devendo os conselhos diretivos dos respetivos estabelecimentos manter estreitos contactos de cooperação, em assuntos de interesse comum, com as ditas associações (vd art.º 38.º). Por outro lado, o art.º 39.º estabelece que o regime deste diploma “vigorará, a título experimental, durante o ano escolar de 1974-1975”, sendo “obrigatoriamente revisto até 31 de agosto de 1975”. Por sua vez, o despacho n.º 40/75, de 8 de novembro, aprova o regime de gestão da escola primária, cabendo a direção, em escola com mais de dois lugares, ao diretor, eleito e coadjuvado pelo conselho escolar (formado pelos docentes), e ao encarregado de direção, nas outras.

Entretanto, é promulgada, a 2 de abril de 1976, para entrar em vigor a 25 de abril, a Constituição da República Portuguesa e, porque o DL n.º 735-A/74, de 21 de dezembro, nunca foi revisto, contra o que ele próprio determinava, os conselhos diretivos mantêm-se em funções ou, em caso de demissão, cedem lugar à figura do encarregado de direção. E já na vigência da Constituição e no mandato do I governo constitucional, é elaborado e promulgado o DL n.º 769-A/76, de 23 de outubro, que aprova o regime de gestão dos estabelecimentos de ensino preparatório e secundário. Trata-se de ato legislativo do governo produzido no uso da autorização conferida pela Lei n.º 4/76, de 10 de setembro, que deplora o vazio legislativo pelo não cumprimento do estipulado no diploma anterior sobre a matéria e tenta, no aproveitamento da experiência alcançada, articular o fator democrático com o fator disciplinador e credibilizador das organizações escolares (vd preâmbulo). Fica inaugurado o momento constitucional.

O novo diploma assume a continuação do acolhimento dos modelos participativos, como sendo a melhor alternativa a qualquer modelo autocrático, já que têm como objetivo uma diferente e mais lata distribuição do poder e da autoridade das organizações. A lógica da participação, garantindo que todas as partes interessadas estejam representadas, podendo participar nas decisões, consagra e estimula a expressão dos indivíduos. Assim, adotam-se princípios e estruturas de gestão participada nas escolas, com foco nos professores e só em menor grau nos outros trabalhadores não docentes e nos alunos, mas sem que existam mecanismos consolidados de descentralização da administração, reconhecimento da autonomia das escolas e participação dos pais e de outros representantes da comunidade. Tal situação, em que a maioria dos representados são os docentes, é a que sustenta o DL ora em causa e subsequente legislação subsidiária.

O decreto em apreciação pretende consolidar a experiência do modelo de “gestão democrática” introduzida após 1974, despindo-o da carga revolucionária. Aparecem aplicações de fórmulas democráticas de eleição e de participação resultantes da situação social e política, onde emerge a consolidação da democracia representativa consubstanciada na Constituição, tendo sido banidos quaisquer laivos de manifestação de democracia direta. Por alguma razão, o diploma é acusado de défice democrático por alguns setores de opinião. No “modelo” de base que o sustenta, a participação e a eleição têm como intervenientes os membros da comunidade escolar: professores, alunos e funcionários, com larga maioria do corpo docente.

A dimensão participativa é institucionalizada através de eleições e de órgãos colegiais de decisão (conselho diretivo, conselho pedagógico e outros órgãos de gestão intermédia, designadamente conselhos de grupo/disciplina presididos pelos delegados, conselhos de turma presididos pelos diretores de turma e conselhos dos diretores de turma presididos pelos coordenadores), como consequência das exigências democráticas de participação dos membros da escola nos seus órgãos de direção e gestão.

O DL de 1976 surge, sem serem avaliados os resultados da experiência da aplicação do normativo anterior, mas mantém os órgãos de gestão nele estatuídos e é prevista a sua aplicação a todas as escolas dos ensinos preparatório e secundário até 31 de dezembro de 1976 – o que nem sempre aconteceu, continuando os casos de gestão entregue a encarregado de direção.

À luz do novo diploma, o conselho diretivo é constituído por 3 ou 5 docentes (conforme o número de alunos da escola), 2 representantes dos alunos e 1 representante do pessoal não docente. São criados os cargos de presidente, vice-presidente e secretário, designados de entre os docentes que integram o conselho, que serão eleitos pelo respetivo pessoal, devendo os detentores do primeiro e do segundo dos cargos ser professores profissionalizados. A representação dos alunos verifica-se apenas nas escolas do ensino secundário (que se iniciava no 7.º ano de escolaridade – do curso unificado de 3 anos) em que são ministrados cursos complementares (10.º e 11.º anos, e mais tarde, o 12.º), sendo os seus representantes eleitos pelos delegados de turma, através de lista que tem de ser proposta, no mínimo, por dez deles. Do mesmo modo, a representação do pessoal não docente verifica-se através de processo eleitoral. O conselho pedagógico é constituído pelo presidente do conselho diretivo, que acumula a sua presidência, pelos delegados de grupo/disciplina, pelo coordenador dos diretores de turma, delegados dos alunos e pelos representantes dos pais e encarregados de educação (cuja atividade é regulamentada pela Lei n.º 7/77, de 1 de fevereiro).

Porém, o funcionamento do conselho diretivo só é regulamentado com a publicação da portaria n.º 677/77, de 4 de novembro, que especifica as atribuições do conselho diretivo, como órgão deliberativo, bem como as competências de cada um dos seus membros. E o do conselho pedagógico e seus órgãos de apoio só é regulamentado pela Portaria n.º 679/77, de 8 de novembro. O conselho administrativo mantém a composição e competências estabelecidas nos diplomas anteriores.

Legislação posterior vem estabelecer: as diligências a desenvolver, na impossibilidade de realização do processo eleitoral para o conselho diretivo (despacho n.º 129/78, de 7 de junho); a redução da componente letiva dos membros dos conselhos diretivos (portaria n.º 691/76, de 19 de novembro) e dos membros das comissões instaladoras (Desp. n.º 379/76, de 29 de dezembro); a regulamentação da constituição de comissões instaladoras dos estabelecimentos de ensino preparatório e secundário (Pta. n.º 561/77, de 8 de setembro); a fixação das datas de eleição e posse do conselho diretivo e exigência de haverem solicitado a recondução os elementos que não sejam dos quadros (DL n.º 157/78, de 1 de julho); a regulamentação dos pedidos de resignação de membros de comissões instaladoras ou de conselhos diretivos (Desp. n.º 188/79, de 18 de julho); a nova regulamentação do funcionamento e atribuições dos conselhos pedagógicos e seus órgãos de apoio (Pta. n.º 970/80, de 12 de novembro).

Como se vê pelo exposto, a fixação da gestão democrática resulta de longo processo forjado na paciente atenção à realidade, marcada pelas vicissitudes da formação e colocação de professores, da criação de novos estabelecimentos e da criação e desenvolvimento de novas organizações.

Enfim, com a 1.ª e profunda revisão da Constituição, operada pela lei constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, a gestão democrática envereda paulatinamente por novo rumo cujo lastro fundamental é a consagração da autonomia (reconhecida, aprofundada e progressivamente contratualizada, embora nem sempre conseguida) das organizações escolares com base no recém-constituído princípio da participação democrática no ensino explicitado no ora art.º 77.º, na sua já comentada dupla vertente:

“1. Os professores e alunos têm o direito de participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei; 2. a lei regula as formas de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de caráter científico na definição da política de ensino”.

Neste quadro constitucional há de resultar a nova lei de bases do sistema educativo, o primeiro contraponto coerente e organicamente estabelecido à lei de Veiga Simão, que levará ao desenho de novos percursos, a que viremos noutra ocasião. As palavras de ordem serão “autonomia” e “parcerias”.

A gestão democrática das escolas e a Constituição

13-02-2014 20:30

A gestão democrática das escolas e a Constituição

Sempre que o Ministério da Educação (e Ciência) promove a produção de legislação sobre gestão de escolas ou similar, argumenta com o acréscimo de autonomia, ao passo que os críticos acusam o seu acrescido défice. Se é certo que possuí alguma experiência neste domínio no milénio anterior, quer no setor público quer no privado (ainda que de interesse público), também não é menos verdade que, nos últimos anos, sem aceder à experiência direta da hoje designada gestão de topo, me mantive atento e com alguma intervenção. Em todo o caso, sem aceitar a forçada leitura de ver gestão, formação e pedagogia em qualquer documento do Ministério da Educação, como queria um famoso inspetor da Delegação Regional do Norte, cujo nome gosto de omitir, sempre recusei a afirmação barrosista de que um cidadão pode ser um bom professor, mas não ter capacidade para gerir. Ora, o professor é exatamente um gestor – um gestor de pessoas, de competências, de objetivos, de conteúdos, de metas (sejam elas curriculares ou de aprendizagem), de perspetivas, de tempo, de espaço, de currículos e programas, de recursos de que nem sempre dispõe e, sobretudo, de saberes. Por isso, sempre lancei um olhar colaborante, mas crítico sobre normativos, decisões, atitudes e comportamentos. Hoje deu-me na telha (passe a designação menos ortodoxa) de encetar um percurso reflexivo sobre a matéria e resolvi começar pela Constituição, a lei fundamental com a qual se devem conformar todos os demais normativos e não ao contrário, como pretendem não poucos dos que ora nos governam e dos que pretendem modelar a opinião pública.

Folheando a versão constitucional originária, da pena da Assembleia Constituinte, promulgada em 2 de abril de 1976 e em vigor da partir do dia 25 de abril do mesmo ano, nada encontrei sobre gestão das escolas – o que me deu a entender que, tratando-se de matéria de procedimentos, o tema seria objeto da atividade legislativa ordinária e da respetiva regulamentação, no respeito pelos ditames democráticos ao nível dos princípios e das atitudes e comportamentos da parte de quem gere, com base em critérios de representatividade e participação, privilegiando o modo de eleição.

Mesmo assim, fiz uma deambulação pelos projetos de constituição apresentados previamente à constituinte, nos termos regimentais. Assim, anotei que o PCP refere que a administração e o ensino ministrado nas escolas particulares, cuja criação “necessita de autorização do Estado”, “estão sujeitos a contrôle (sic) público” (art.º 43.º). Mas, no art.º 7.º, pode ler-se, como uma das funções políticas do Estado, “desenvolver de forma criadora os órgãos do poder democrático que assegurem a participação determinante das massas populares na construção do novo aparelho do Estado e na solução dos problemas nacionais”. Ora, a escola debate-se com a problemática educativa nacional e integra a estrutura administrativa da educação, que, por sua vez, integra a máquina administrativa do Estado. Outro partido que tem uma vaga alusão à tarefa da educação (incluirá gestão?) é o MDP/CDE, cujo projeto inclui um art.º 33.º onde se lê: “a prossecução da tarefa educativa compete ao Estado, mas constitui um objetivo em que devem participar as organizações populares e a generalidade dos cidadãos, de acordo com as conclusões fornecidas pela ciência e em íntima relação do estudo com a vida”. Mas já o art.º 4.º pretende “estimular a organização e consciencialização das massas populares e promover, através da sua institucionalização progressiva como órgãos do Estado, a participação cada vez mais ampla do povo em todos os níveis do poder”. A UDP, ao falar da liberdade do povo, no art.º 5.º do seu projeto, consagra o reconhecimento por parte do Estado do “poder deliberativo, executivo e de decisão às organizações que unam as massas populares sem restrições nem limitações, e por elas sejam democraticamente constituídas”. E um dos exemplos apontados são as “assembleias plenárias de estudantes”. E esclarece que as referidas organizações “constituem formas diretas do exercício da democracia, e só aos nela participantes compete a respetiva regulamentação”. Pelo que me é dado concluir, a legislação de gestão democrática da escola produzida a partir de outubro de 1976 radica na matriz constitucional da democracia representativa e participativa e vem pôr termo a tentativas de gestão de escola, algumas convertidas em decreto-lei, de matriz pré-constitucional ou mesmo paraconstitucional. Essa matriz democrática pode resumir-se com a alínea b) do art.º 9.º da Constituição: “assegurar a participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais, defender a democracia política e fazer respeitar a legalidade democrática” (uma das três tarefas fundamentais do Estado, hoje uma das oito).

Entretanto, a Constituição da República Portuguesa passou por sete revisões, duas delas bastante amplas e profundas. A primeira dessas duas foi produzida pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro. Mantém a referida matriz democrática, já enunciada, no mesmo artigo 9.º, como uma das cinco tarefas fundamentais do Estado, mas em alínea c) e com a seguinte redação: “defender a democracia política e assegurar a participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais”. A outra, a 7.ª revisão, produzida pela Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de agosto, mantém-na em alínea c), entre as oito tarefas fundamentais do Estado, com a seguinte redação “defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais”. Não me parece haver uma alteração substancial de redação, exceto em duas coisas que denotam um apurado esbatimento ideológico: os constituintes coevos desta revisão não gostam do designativo constitucional de “povo” e parece que não simpatizam com a pretensão organizativa deste mesmo povo. É seguro que a maioria parlamentar de 1982 era parecida com a que produziu a revisão de 2005 (falo do momento dos trabalhos parlamentares, que não o do seu termo nem o da promulgação), mas a degradação ideológica já era bem significativa, e também no partido socialista.

Em todo o caso, a LC n.º 1/82, tem um artigo, o 77.º (participação democrática no ensino), que atravessou as décadas até hoje, onde se lê: “1. os professores e alunos têm o direito de participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei; 2. a lei regula as formas de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de caráter científico na definição da política de ensino”.

A partir daqui desfiou-se poderosa elaboração legislativa que mudou a face das organizações escolares, nem sempre no melhor sentido. Deixando para ulterior momento a análise da legislação da autonomia, administração e gestão de escolas, vamos agora deter-nos no alcance daquele duplo preceito constitucional.

O artigo em análise consagra duas plataformas distintas: o direito de participação na gestão democrática das escolas, a estabelecer na lei ordinária, e a forma legal de participação na definição da política de ensino. A primeira plataforma estabelece o direito de participação dos professores e alunos na gestão democrática das escolas. É suposto que o legislador ordinário deva definir os modos de participação como o faz por disposição constitucional, no caso da segunda plataforma, que não aparece explicitamente como um direito específico, mas como um corolário genérico das ideias fundamentais de democratização, do Estado, da sociedade, da educação e ensino, da cultura e da expressão num setor concreto da democracia participativa, embora indireta (o texto explicita “associações” e instituições”).

Já o n.º 1 eleva à dignidade de direito constitucional o de participação dos professores e alunos (não encontrando a lei ordinária até agora forma de fazer participar os alunos de nível inferior ao ensino secundário, que ficou reduzido aos últimos três anos do sistema forma de ensino não superior) e mobiliza o princípio de democratização da sociedade e do Estado nas suas dimensões cultural e participativa, bem como o princípio da democratização da educação e da cultura, o direito de participação na vida pública e o princípio de autonomia das organizações. O direito consagrado neste n.º 1 estriba-se em termos de legitimidade democrática e de autodeterminação, que assistem a quem deve tomar as decisões atinentes ao contexto escolar, interno ou externo. Por seu turno, as estruturas de direção devem legitimar-se democraticamente de modo a acolher o pluralismo de interesses e opções da comunidade e potenciar a legitimação dos interessados, através da suscitação da sua participação e na promoção de uma organização e funcionamento eficazes e transparentes. Demais, a gestão democrática pressupõe que a gestão compete, no todo ou em parte, a órgãos próprios (democraticamente eleitos pela coletividade, com a participação de professores e alunos) e não exclusivamente ao dono da escola (Estado central, poder local, etc.) ou seus representantes. Também o preceito, que não permite a exclusão não fundamentada de qualquer dos setores nomeados no texto, não estabelece uma relação de paridade nem proíbe a inclusão de outros agentes, o que configura uma grande margem de liberdade de acordo com o contexto e a tipologia de escola a ter em conta.

Pode questionar-se se o preceito constitucional de participação se estende às unidades orgânicas de ensino particular e cooperativo. À luz do exposto, parece que os fundamentos convocados sugerem resposta afirmativa, dado que ninguém (nem nenhuma estrutura) está dispensado do empenho na democratização política, social e cultural; e todo o serviço de educação e ensino, que está revestido de índole pública ou de utilidade pública (ou, ao menos, caráter parapúblico) e a natureza multigrupal de escola impõem alguma autonomização ante os titulares da escola. Todavia, o texto não o estatui, pelo que, no silêncio da lei fundamental, o legislador ordinário não se vê obrigado a agir.

Quanto ao texto do n.º 2, importa acrescentar que persegue os objetivos seguintes: inserir a escola na comunidade, com interligação às demais atividades; alargar o âmbito da participação a grupos não profissionais conexos com escola; garantir o exercício dos direitos coletivos em matéria educativa. Para tanto, além da participação destas coletividades em órgãos sedeados localmente, há que promover a sua intervenção sistemática através da participação nos órgãos estaduais de nível central e da consulta e discussão de projetos ou propostas de lei, bem como de outras formas de decisão política em matéria educativa.

Pelos vistos, é necessário dar uma grande volta na dinâmica da intervenção cívica e da participação política, de que o comum dos cidadãos anda bem alheado. Vamos começar pela educação?!

Mal-entendidos aldeãos e não só

13-02-2014 13:32

Mal-entendidos aldeãos e não só

Nunca será excessivo acautelar a sintonia entre emissor e recetor na dinâmica da relação comunicacional. Se emissor e recetor não possuem um conhecimento equivalente do código linguístico ou se entre eles se instala ruído tal que obste ao fluxo comunicativo em boas condições, tudo pode acontecer. Os casos abundam e alguns são bem divertidos, ao passo que outros podem trazer sérios incómodos. Muitos resultam da utilização de uma língua que não a materna e cujo domínio não deixa de ser problemático, mas outros advêm de um saber infantil ou de um saber aldeão.

Recordo um incidente ocorrido na representação de uma peça de teatro com o cariz de drama filosófico em que intervinham diversos filósofos quer da antiguidade quer da modernidade. O dramaturgo, como é óbvio, resolveu pô-los em debate nem sempre profundo e, às vezes, pouco sério. A dado momento, vi um deles escandalizado porque outro alvitrou que o interlocutor de ocasião poderia colocar os papéis em cima da secretária. Um entendia o designativo “secretária” com o significado de “mesa”, enquanto o outro o entendia simplesmente como elemento feminino de um secretariado. O diabo foi a reação de alguns ouvidos pios da plateia!

Num determinado dia, a criança do primeiro ciclo chegou a casa a choramingar porque a professora a tinha tratado muito mal: chamara-lhe “criatura” (nome contraposto a “criador”) e a menina confundiu com “cria”, o filhote de animal irracional. Valeu a lúcida calma paterna!

Falando ainda de crianças, recordo o episódio da visita da professora do primeiro ciclo que foi à sala da colega solicitar qualquer informação e deparou com as criancinhas todas em absoluto silêncio, de joelhos e mãos postas enquanto a professora estava de pé – e toda a turma a ouvir o hino nacional a partir de uma boa aparelhagem. A razão do espetáculo deve-se ao facto de a professora titular da turma ter explicado às inocentes criancinhas que iam ouvir o hino nacional; o hino é um símbolo sagrado, porque representa a Pátria, pela qual se deve dar a vida até à última gota de sangue. Portanto, a Pátria e o hino que a simboliza merecem respeito. Por isso, iriam ouvir o hino com muito respeito. Mal a aparelhagem começou a debitar a patriótica música para os ares, a turma caiu de joelhos, silenciosa e de mãos postas bem juntinhas, direitinhas e em clara posição vertical.

Passando ao universo da gente simples de aldeia, lembro-me de que, num brilhante dia da semana, do mês e do ano, um grupinho de sacerdotes visitou uma simpática velhinha em Vilar Formoso. A conversa decorreu muito bem, como era de esperar. Porém, à despedida, um dos sacerdotes sugeriu que ficasse rezando por eles, ao que ela respondeu: “Ah, não! O Senhor Padre não precisa de me recomendar, eu já rezo todos os dias pela conversão dos pobres pecadores”.

Também me recordo daquele grupo de raparigas a cantar com toda a piedade “Coração sacerdotal de Jesus, aturai, aturai pelos sacerdotes”! O segmento “atuai, atuai” soava de outro modo. Os rapazitos cantavam a Nossa Senhora “Coração Virginal de Maria, vinde a cem à hora, vinde a cem à hora, vinde a cem à hora levar-me ao céu”! Veja-se a parafonia com o “vinde sem demora”. E também cantavam piamente“Aceitai-nos, Senhor, com Jesus nosso irmão, imolado na cruz, o altar da redenção”. Só que as vozes pronunciavam “esfolado” em vez de “imolado”.

O padre italiano falava Português com desenvoltura, mas não conhecia suficientemente o vocabulário. E lá foi consultar o dicionário de italiano-português. E o sermão no cume da eloquência lá fez troar o apelo à adoração da “Santa Face de Jesus”, depois de em momento anterior da mesma peça oratória, ter vincado que Nossa Senhora dera à luz na gruta de Belém o “Seu Divino Filho”. E o padre espanhol, porque tinha consultado o dicionário de espanhol-português, anunciou na ocasião adequada da celebração da Vigília Pascal que iam fazer devotamente a procissão à sagrada “pia” para renovação das promessas do Batismo. Porém, como não basta a consulta do dicionário, sendo necessário ponderar o vocábulo adequado ao contexto, lá saíram palavras como “focinho”, “parir”, “cria” e “pila”.

Em maio de 1974, as forças vivas da cidade promoveram uma ruidosa manifestação de gratidão e apoio às Forças Armadas (ainda não se falava claramente em MFA), pela revolução abrilina. Como era natural, o estribilho que todos clamavam era “o povo unido jamais será vencido”. Porém, nós ouvimos dois miuditos a gritar “o povo unido continua a ser…” (Não termino porque a caneta deixou de escrever!). E os mentores da manifestação, de vez em quando, soltavam vivas a várias entidades, que todos repetiam em entusiástico e clamoroso coro falado. Num desses momentos, ouvia-se “vivam as forças armadas”, “viva o Spínola”, etc. Só que um deles gritou “abaixo Salazar e Caetano” e alguns, embalados na onda dos “viva”, respondiam “viva”. Era a falta de prática na condução de multidões, nunca se devendo gritar palavras de ordem de sentido contrário na mesma sequência. Por vezes, analogamente, os ministros do Batismo, podem ouvir pais e padrinhos a responder à pergunta “Credes em Deus Pai todo-poderoso, criador do Céu e da Terra?” com o “renuncio”, se vierem embalados na resposta “renuncio” às perguntas de abominação de Satanás, às suas obras e às suas seduções – a que se obsta com a mudança do tom de voz nas perguntas ou com um introdução explicativa às perguntas de profissão de fé.

O caso mais típico, do meu ponto de vista, surgiu numa das aldeias meio perdidas dos contrafortes da Serra de Montemuro. Eram tempos bem remotos em que o único aparelho de rádio existente na aldeia era o do taberneiro. É claro que, à tardinha e à noite, aquele estabelecimento comercial, único no povoado, encontrava-se usualmente repleto de “senhores homens” atraídos pelas sucessivas rodadas de tinto, pela ocasião privilegiada de conversa e, nos últimos tempos, pelas notícias em cima do acontecimento. Era fácil a conversa de convivência descambar para a altercação (algumas vezes até com empurrões, arranhões e não sei que mais) e o ambiente ficava polvilhado de palavrões e imprecações. Mas um dia, o dono da taberna preveniu: Meus amigos, cuidado, quem se portar mal vai lá para fora. Daqui por um pedaço vai falar no rádio Sua Santidade, o Papa. Quero respeitinho, sem palavrões e sem berros. O padre santo de Roma é o representante de Cristo. Tenho que o ouvir com silêncio, atenção e respeito. Quem se portar mal vai de vela p’ra rua. Às tantas, o locutor da Emissora Nacional avisou: “senhores rádio-ouvintes, dentro de momentos, vamos estabelecer ligação com a Rádio Vaticano para a transmissão de uma radiomensagem de Sua Santidade”. Foi quando o taberneiro repetiu com veemência a ordem de silêncio, atenção e respeito. E, quando o locutor anuncia a ligação imediata à Rádio Vaticano para a transmissão da dita radiomensagem, aqueles homens todos se prostraram de joelhos em terra, sem uma palavra ou um queixume e ouviram todo o discurso papal. Mas, quando o locutor proclama “senhores radio-ouvintes, acabámos de transmitir de uma formosa radiomensagem de Sua Santidade o Papa aos portugueses, a partir da Rádio Vaticano”, aqueles seletos ouvintes suspiraram de alívio e, enquanto se levantavam, lá vinham em catadupa a asneira, o palavrão e o “bolas, parecia que não acabava mais”!

Quantas historietas não se contam acerca do famoso “merci beaucoup”, entre a emigração! E não vale a pena falar da custosa limpeza dos gabinetes (cabinets – casas de banho), que eu não percebia por que motivo era tão aborrecida, ou explicar que recusei o prato de “canard” (pensando que era “canário” em vez de “pato”). E os emigrantes portugueses em França, a seu tempo, vão para a “retraite” (reforma) e Lutero teve a sua inspiração teológica contestatária dans une retraite (“retiro”, mas o professor de História, católico e pouco ecuménico, lançava o despeito sobre as teses inspiradas quando o teólogo estava numa “retrete”). Enfim…

Porém (e, com este anedótico episódio bem real, termino), o caso que me encantou com uma ternura desapontante foi quando presenciei o seguinte cenário: Como era frequente, em devoção mariana do Mês de Maria na igreja paroquial, o abade atendia de confissão, durante a recitação do terço e ladainha lauretana, quem o desejasse e, a seguir, aproveitava um momento de oração eucarística com o povo e dava a Bênção do Santíssimo Sacramento. Num determinado ano, o livro de orações para aquela devoção mariana era um devocionário organizado por um grupo de padres capuchinhos liderado por Frei Alcindo Costa, sob o título Mês de Maria pela Bíblia: liturgia da palavra, celebração do rosário, hora de vésperas, atos de consagração. Era o exercício de oração dirigido por uma senhora bem piedosa, muito dinâmica e, tanto quanto possível naquela paróquia, com a abertura à modernidade. Eis que, depois ter pronunciado, num momento de oração dedicado ao tema “Maria e a unidade dos cristãos”, as expressões “favorecendo o ecumenismo” e “segundo as normas do ecumenismo”, jogou o livro para cima do altar e com uma expressão facial esquisita. Evidentemente que, se a senhora reagiu com esta veemência discreta, já sabem que foi por ter lido “comunismo” em vez de “ecumenismo”. Depois, o abade teve uma conversa com a oficiante e, tudo esclarecido, foi a mesma que ajudou imenso na pedagogia dos diversos tipos de entendimento necessário a nível da paróquia.

Por isso, tenhamos o cuidado de provocar a sintonia conveniente entre emissor e recetor e evitar os ruídos que obstem à boa comunicação. E, apesar de tudo o que possa ter acontecido ou venha a acontecer, não desistamos de comunicar e de fazer a pedagogia da comunicação!

 

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