A igreja “panteónica”, que foi depósito de armamento e fábrica de sapatos

19-01-2014 23:16

A igreja “panteónica”, que foi depósito de armamento e fábrica de sapatos

A expressão popular “obras de Santa Engrácia”, associada à igreja de Santa Engrácia, ainda se usa para caraterizar qualquer obra ou empreendimento que não tenha fim à vista, mas o Panteão Nacional, sedeado naquele templo, é visitado sobretudo por estrangeiros. Mas, afinal como é que esta casa mal-amada adquiriu este estatuto?

A sua história é atribulada e remonta a uma igreja primitiva ferozmente destruída por uma tempestade, sendo mais tarde emoldurada por uma lenda em torno de um amor proibido e até uma frustrada maldição.

A predita igreja primitiva, da qual nada resta hoje, foi erguida em 1568 por vontade da infanta D. Maria (1521-1577), filha de D. Manuel I, para receber o relicário da vigem mártir Engrácia de Saragoça, por ocasião da criação da antiga freguesia de Santa Engrácia, atualmente um bairro da freguesia de São Vicente de Fora. Praticamente desfeita durante a aludida tempestade, em 1681, sucede-lhe o atual edifício – para muitos a primeira joia do barroco português de influência italiana, com projeto do mestre João Antunes, coroado por um zimbório gigante e o com um interior pavimentado com vários tipos de mármore colorido – cuja primeira pedra foi lançada logo no ano de 1682, mas que só viria a ser concluído, por ordem expressa do Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, António de Oliveira Salazar, em 1966, passados que foram 284 anos.

Agora, segundo a descrição do SIPA (Serviço de Informação para o Património Arquitetónico), apresentas as caraterísticas da arquitetura religiosa, maneirista e barroca. A planta é em cruz grega, com três capelas absidadas, espaço central quadrangular e quatro torres nos ângulos.

O exterior é marcado pela ondulação dos alçados com curvas e contracurvas e alternância triangular / circular de frontões que representam uma inovadora e criativa utilização das formas clássicas a acentuar o dinamismo exterior da massa arquitetónica.

Os elementos arquitetónicos presentes no edifício testemunham o barroco italianizante, decorrendo o cariz barroco do portal essencialmente dos elementos esculturais que o ornamentam.

Decoram o edifício colunas das ordens dórica, jónica e compósita. O entablamento é neoclássico. São ainda de destacar os seguintes motivos artísticos: revestimento de altar, capelas, chão, paredes e revestimento do zimbório de decoração barroca em estrutura maneirista nos embutidos de mármore policromo; amplidão de espaço arquitetónico valorizado por efeitos contrastantes de claro / escuro barroco; e a grande harmonia entre a policromia do mármore e a cor alva da parede.

Reza a lenda que o cristão-novo Simão Solis, tendo sido visto a rondar a igreja, em várias ocasiões, com as patas do cavalo em que seguia embrulhadas em panos para que não fizessem barulho, e também na noite de 15 de janeiro de 1630 – data do 'Desacato de Santa Engrácia', referido nos registo da paróquia, de que resultou a danificação do relicário do altar-mor – fora pelos vizinhos das redondezas acusado ao Santo Ofício de assaltar o templo e de o profanar, roubando as sagradas hóstias guardadas no predito relicário. Não obstante ter jurado até à morte que era inocente, foi queimado vivo, em 31 de janeiro de 1631, no Campo de Santa Clara, pelo que, ao passar pela mesma igreja antes da execução, terá lançada a maldição à obra em processo de construção, bradando: “É tão certo morrer inocente como as obras nunca mais acabarem!” É que a verdadeira razão – descoberta mais tarde – por que o presumível assaltante nunca haverá querido dizer o que fazia junto a Santa Engrácia na tenebrosa noite era a espera que fazia de que Violante, filha de um fidalgo e noviça no Convento de Santa Clara, viesse ao seu encontro para que fugissem juntos, uma vez que o seu relacionamento era proibido pelo pai da moça.

Ainda incompleto, o templo passa a ter o estatuto de monumento nacional em 1910 e depois a função de Panteão Nacional por força da Lei n.º 520, de 29 de abril de 1916. É aberto ao público com aquele estatuto no ano seguinte ao da conclusão das obras, conseguida em 1966, passados que foram 50 anos sobre aquela decisão legislativa.

Entre a destruição da igreja primitiva e a inauguração em missa solene com o cardeal patriarca D. Manuel Gonçalves Cerejeira, foram muitas as tentativas para concluir as obras, algumas falhadas por falta de verbas. No entanto, nesse período não se pensava noutra função que não a cultual. E, avesso a essa mesma função, o edifício ainda longe de ver ultimada a sua edificação, serviu de depósito de armamento e de fábrica de sapatos do exército durante os conturbados anos de viragem do século XIX para o século XX (de liberalismo decadente e republicanismo iconoclasta).

Nem mesmo os liberais, sob cuja égide e à luz da Revolução Francesa (Será devido ao ideário da revolução que se pode filiar a ideia de panteão no republicanismo?) é criado o Panteão Nacional (Decreto de Passos Manuel, de 26 de Setembro de 1836), lhe destinam um local. O regime da monarquia Constitucional queria guardar em regime de precioso relicário “‘as cinzas dos grandes homens’ que se tinham sacrificado na revolução de 1820”, bem como promover a “reparação do esquecimento a que, há séculos, estava votado o maior de todos os portugueses, Camões. É Almeida Garrett (1799-1854) quem, depois de o celebrar com um poema romântico com título homónimo, o quer ver sepultado no Mosteiro dos Jerónimos, monumento nacional comparável ao panteão inglês da Abadia de Westminster, onde hoje estão sepultados escritores e homens de ciência como Shakespeare, Spenser, Tennyson, Dickens, Darwin e Newton.

Segundo o historiador Fernando Catroga, “os primeiros ‘panteonizáveis’ neste quadro que se segue ao enaltecimento da figura de Luís de Camões, são inseparáveis de uma visão que acredita no progresso e rejeita o culto do passado”. Por isso, enalteciam-se “os que melhor exprimiam um pulsar coletivo, não tanto os políticos e os militares, mas, sobretudo, os intelectuais e, entre estes, os poetas”, ou seja, os “oriundos da ‘República das Letras’, onde o escritor emergia, cada vez mais como um clérigo laico”. Depois de Camões, chegou a vez de se honrarem, nos Jerónimos, imóvel que muitos portugueses veem ainda como o verdadeiro panteão e talvez ainda o seja de facto, os escritores Alexandre Herculano, João de Deus e o próprio Garrett.

Por seu turno, Isabel Melo, a diretora do panteão de Santa Engrácia, reconhece que, se ele está hoje um pouco mais presente no imaginário nacional, “deve-o a Amália Rodrigues, a fadista que morreu em 1999 e que para lá foi trasladada em 2001, numa cerimónia a que assistiram milhares de pessoas”. Tinha sido publicada no ano anterior a Lei n.º 50/2000, de 29 de novembro, que, de forma sustentável, “define e regula as honras de Panteão Nacional”.

De acordo com as declarações da mesma personalidade, uma mais-valia enditará o imaginário nacional com a panteonização da escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, dado que esta escritora “é muito acarinhada pela sua obra poética, mas também pela ligação ao combate ao Estado Novo e pelos seus contos eternos para crianças”, a que se seguirá – tudo o indica – o consagrado Eusébio.

As personalizadas honorificadas com as honras de panteão, por decisão política, são recordadas com dois tipos de memória: o cenotáfio, para aquelas cuja trasladação poderia casar incómodo significativo para a opinião pública; e a guarda dos restos mortais, para aquelas que estavam sepultados provisoriamente no Mosteiro dos Jerónimos e para aquelas cuja trasladação tiver sido decretada após a inauguração do Panteão Nacional.

É de referir que das dez figuras que têm os restos mortais na Igreja de Santa Engrácia, só Amália e Sidónio Pais, o Presidente da República assassinado em 1918, recebem flores.

Entretanto, a lei n.º 35/2003, de 22 de agosto, distribui o estatuto de Panteão Nacional por dois monumentos religiosos – Santa Engrácia, em Lisboa, e Santa Cruz, em Coimbra – sendo a finalidade atribuída ao segundo muito restritiva, exclusivamente à laia de reconhecimento. Terá sido para sido para concretizar em parte a ideia expressa por Maria João Neto, segundo a qual “diz-nos o senso comum que onde há o túmulo de um rei há um panteão, e isso pesa”? Terá sido, antes, para honrar Afonso Henriques, o conquistador, e Sancho I, o povoador? Mas, nesse caso, o país estaria semeado de panteões. Pois, que dizer de Alcobaça, onde estão sepultados Afonso II, Afonso III e Pedro I; de Odivelas, onde tem morada perpétua Dinis, o culto lavrador; da Sé Patriarcal, onde repousa Afonso IV; o convento do Carmo, onde sepultaram Fernando I, trasladado de Santarém; a Batalha, com João I, Duarte, Afonso V e João II; a Basílica da Estrela, onde estão retidas as cinzas de Maria I; ou os Jerónimos onde, com a exceção daquela, foram sepultados todos os reis da Casa de Bragança, incluindo Pedro IV até à sua trasladação para o monumento do Ipiranga, no Brasil, e cujo coração se encontra na igreja da Lapa, no Porto, e ainda Manuel I, João III e o desejado Sebastião, cadáver real ou factício? Ou será ainda porque também lá colocaram o primeiro Presidente da República Manuel de Arriaga?

Já não bastava esta igreja ter sofrido tantas vicissitudes climatéricas, ocupacionais e políticas (terá sido temporariamente postergada pela nova República por ter servido de bandeira à ditadura nacional, atomizadora de velhos mitos e fautora de outros), como ser pretexto para discussão político-financeira sobre quem pode ou não habitá-la ad perpetuam rei memoriam. Coloquem lá em túmulo ou em cenotáfio  todos aqueles e aquelas que não caibam no Portugal profundo e deixem que o panteão do povo - este retângulo à beira mar estendido - seja tão vivo no futuro como no passado, para o que é preciso inverter as tendências asfixiantes do presente.