Agorafobia democrática

17-01-2014 19:08

Agorafobia democrática

Na celebração do 33.º aniversário da revolução abrilina, em florescente consulado de José Sócrates, ainda não diplomado na invenção de outras narrativas, o então promissor deputado Paulo Rangel, no discurso que proferiu em nome da bancada socialdemocrata, caraterizava a situação política do momento como de claustrofobia democrática e constitucional, “do ponto de vista dos valores processuais da liberdade de opinião e da liberdade de expressão”. E, falando do alegado ambiente de condicionamento da liberdade, perguntava: “Como garantir e realizar essa democracia de valores, essa república da tolerância e do pluralismo, se nunca como hoje se sentiu uma tão grande apetência do poder executivo para conhecer, seduzir e influenciar a agenda mediática”?

Nestes dias, ao refletir no que hoje se passa, pergunto-me como caraterizar o panorama democrático atual. É que os sintomas não são lá muito saudáveis e criam alguma preocupação. Invocando o estado de necessidade e, concomitantemente, tendo colocado o país na condição de “estado exíguo”, as ideias de que o governo quer que vivamos passam pela inevitabilidade que não permite qualquer alternativa menos gravosa e tão eficaz ante o complexo de soluções que os heroicos timoneiros de tão envelhecida nau elaboram e apresentam. Porque vivêramos acima das nossas possibilidades, colocámo-nos na dependência generosa e exigente dos nossos credores internacionais. E todo o processo legislativo e o consequente resultado são forçados a ostentar no cariz e nos efeitos a marca troikenha. Discussão livre das ideias, dos projetos, das propostas e das petições, isso não: pode enervar os mercados, levar os credores a questionarem a nossa capacidade de cumprimento das metas orçamentais e de pagamento da dívida soberana ou a baralhar o nosso tecnocrático caderno de encargos. Mais: as iniciativas, as soluções, as propostas ou têm dificuldade em cair na mesa da discussão ou sofrem uma discussão castrada. Isto, porque uns nada querem e outros não têm autoridade para propor seja o que for; ou porque uns assinaram um memorandum que pretendem rasgar e outros dele fizeram o seu programa de governação, além do qual pretenderam passar, hipoteticamente para assegurar um êxito indiscutível e mesmo plausível. E o programa ultrapassou confortavelmente as barreiras de hipotética rejeição inicial, das moções de censura adrede apresentadas e da moção de confiança com que o governo reptou o parlamento na hora certa.

E é assim que, ao arrepio de uma séria e ampla discussão política, embora capciosamente levada à ribalta pura e simplesmente para receber um democrático ámen, se apregoa vacuamente um consenso patriótico, se enceta e põe em marcha uma atabalhoada reforma do Estado que redunda em cortes e mais cortes em investimento, rendimentos, serviços e pessoas, se propaga a reformatação do ideário e se instala o ambiente da aceitação acrítica, mas de má vontade – só porque tem de ser. E semeou-se a cizânia da inveja económica e social e do esquema do descarte.

Ora o medo de levar as próprias ideias ao pelourinho da discussão, a repulsa pelas ideias de outrem, que podem pôr em crise as nossas e destabilizar interesses e a ideia fixa da necessidade de manutenção do poder não configuram, em meu entender, a síndrome da claustrofobia, já que, à partida, não se partiu de situações restritivas nem se viveu em estado de constrição. Isso que agora se vive há mais de dois anos e meio é, de certeza, resultado ou consequência de iniciais ações restritivas e subsequente estado constritivo. Quanto ao fenómeno, no entanto, eu prefiro denominá-lo de “agorafobia” (desconforto na praça pública, de agorá e fóbos, no grego) “democrática” (dado que, por mais limitados que nos encontremos na fruição da democracia, ainda não nos afastámos umbilical e irreversivelmente do modo democrático).

Mas cuidado! A agorafobia, neste contexto, é bem mais perigosa que a claustrofobia, pois, enquanto esta tem uma origem circunscrita e produz efeitos em menos e menores setores sociais, aquela, com origem mais heterogénea, mas mais sólida e vincada, atinge, pelos meios utilizados, uma infinidade de setores, podendo tornar-se pandémica. Então, não é verdade que se instalou um pouco por toda a parte o pavor da precariedade, a dúvida sobre a perda de emprego e o pânico da não reversão do desemprego? Não é verdade que a massa crítica se eclipsou na administração pública e nas empresas do Estado? Não é verdade que o povo, nomeadamente as camadas mais jovens, se alheou deveras do pensamento e da atividade política? Não cresceu assustadoramente, até por provocação de ponderados governantes, a emigração de quadros? Não sentem os reformados, aposentados e sobreviventes – que não dispõem de qualquer poder reivindicativo – o assalto asfixiante e contumaz às suas pensões? Não se generalizou, não obstante a explícita declaração da sua legitimidade, a antipatia pelo real exercício do direito à greve, por razões de incómodo psicossocial e de sofrida injustiça em relação aos títulos pré-pagos?

Recentemente, registam-se duas objeções baseadas nos inibidores custos excessivos. A Presidente da Assembleia da República, embora não se opusesse à decisão paramentar das honras panteónicas ao piedoso Pantera Negra, invocava os custos da trasladação (não sei se raciocina assim agora que se levantou a hipótese quase certa da prestação de idênticas honorificências a Sophia de Mello Breyner Andresen). E um dos contidos grupos “para lamentares” apresentou o mesmo raciocínio lógico do despesismo em tempo de crise severa a propósito da decisão de referendar a coadoção por parte de casais de pessoas do mesmo sexo e, já agora, também a adoção pelos mesmos em relação a criança ainda não adotada por nenhum dos dois elementos do casal.

A este respeito, sem negar ou validar a legitimidade constitucional de referendo ou até o seu interesse ético, só me pergunto porque é que, primeiro, se promove um processo legislativo que culminou na aprovação parlamentar e. só depois. se lançou a ideia do referendo. Do mesmo modo, é de questionar, porque é que em matérias de alguma fraturação social (e não de viabilidade governativa), em virtude das questões de consciência filosófica ou moral, se impõe a disciplina de voto, até para a abstenção, tendo os senhores deputados unicamente as liberdades de abandono da aula da discussão democrática e/ou da declaração de voto, para não incorrerem em penalização disciplinar por infração à disciplina partidária. Dá-me a impressão de que os grupos parlamentares devem olhar mais a sério para a Constituição, para as liberdades, garantias e direitos do cidadão (os deputados não deixam de ser cidadãos e de poder mobilizar a sua consciência) e para os programas com que se apresentaram ao eleitorado.

Tudo isto não compagina a verdadeira agorafobia em periclitante democracia?

Que remédio? Talvez, a par do cavaquista sobressalto democrático e do soarista sobressalto cívico, não quadrasse mal o sobressalto pela lucidez e pela coragem. E como prevenção? Conhecimento da lei em que se vive, constante massa crítica, muito e consciente trabalho, empreendedorismo sustentável, justa remuneração, produção de ideias e saberes e enfrentamento seguro dos inimigos e óbices da discussão pública.

E os órgãos de soberania que assumam cada um a seu tempo as suas responsabilidades!