Da periferia para o centro ou do centro para a periferia?

28-01-2014 01:30

Da periferia para o centro ou do centro para a periferia?

A propósito das leituras da Liturgia da Palavra para o Domingo III do Tempo Comum, o Padre Vítor Gonçalves, conforme texto transcrito pela Agência Ecclesia, percebe o percurso de Jesus a começar pela periferia, a Galileia, e a dirigir-se para o centro, Jerusalém, onde culmina na glorificação através da morte e morte de Cruz e se apresenta ressuscitado às mulheres e aos discípulos. É por essa razão que, como diz Paulo na Carta aos Filipenses, “Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes” (Fil 2, 9).

A este respeito, o papa Francisco, ao Angelus do passado dia 26 de janeiro, apontando o exemplo da Galileia como o símbolo das periferias por onde Cristo começou o trabalho evangelizador, salienta o seu perfil de terra dos gentios, “zona de fronteira desprezada pelos judeus mais observadores” em religião e “uma zona de trânsito onde se encontram pessoas diferentes por raças, culturas e religiões”. E vê o Pontífice na atuação do Messias uma clara intencionalidade, ensinar-nos que “ninguém está excluído da salvação”.

Tanto Francisco como Gonçalves salientam que Jesus não começou a partir de Jerusalém – o centro religioso, social e político – de onde poderia parecer mais fácil e óbvio. E é nas periferias sociais que o Mestre vai recrutar os principais colaboradores, os discípulos e os futuros apóstolos (são pescadores, publicanos, essénios, sicários e mulheres):

“Não se dirige às escolas dos escribas e dos doutores da Lei, mas às pessoas humildes e simples, que se preparam com empenho para a vinda do Reino de Deus. Jesus vai chamá-los lá onde trabalham, na margem do lago: são pescadores. Chama-os, e eles O seguem imediatamente. Deixam as redes e vão com Ele: as suas vidas tornar-se-ão uma aventura extraordinária e fascinante” – relembra o bispo de Roma, que já exortara os participantes na X Assembleia Geral do Conselho Mundial de Igrejas, realizada em fins de outubro passado na Coreia do Sul, a irem às “periferias existenciais” e a serem solidários com “os irmãos mais vulneráveis”.

É decididamente necessário “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que têm necessidade da luz do Evangelho”, por outras palavras, deixar a comodidade do centro e ir sujar os pés e enlamear-se lá no sítio onde a Igreja pode ficar acidentada. Porém, Francisco prefere ter uma Igreja acidentada porque se desloca e trabalha a uma Igreja doente porque nada faz, não sai: fecha-se, cristaliza!

Entretanto, discutir se devemos caminhar da periferia para o centro ou do centro para a periferia faz-me lembrar duas coisas.

A primeira tem a ver com a natureza e expressão do mandato de Jesus: “Ide, doutrinai todas as gentes” (Mt 28,19). Depois, “eles voltaram para Jerusalém com grande alegria e estavam continuamente no templo a bendizer a Deus” (Lc 24,52). Por fim, com a força do Espírito “partiram por toda parte, cooperando o Senhor com eles e confirmando a sua Palavra com os milagres que a acompanhavam” (Mc 16,20). Assim, se Cristo começou pela Galileia como periferia, os discípulos, que tinham sido recrutados nas periferias, receberam o Espírito Santo em Jerusalém, o centro ora com a força do Espírito, e irradiaram pelas novas periferias da diáspora. E a evolução histórica transformou a sede do império romano em centro de difusão da missionação pelo resto do mundo conhecido, mesmo o novo mundo achado no século XV, o da primeira globalização. O próprio Francisco I veio da periférica Argentina e ganhou a Roma do Vaticano, que guarda os túmulos das colunas da fé, Pedro e Paulo, e se arvora em sede da cristandade num Continente envelhecido à procura da retoma da sua identidade histórica. Mas, primeiro, ele partira na pessoa dos antepassados. O seu consócio António Vieira, no sermão da Sexagésima, bem criticava os pregadores que pregavam sem saírem, quando os pregadores, à maneira do “semeador” evangélico, deviam sair a semear a semente da Palavra de Deus.

A segunda coisa que me ocorre é a diferença entre Cristo e os cristãos, para lá da imitação a que Ele urge (“É este o meu mandamento que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei a vós” – Jo 15,12): Cristo era mestre na multiplicação dos benefícios (vejam-se os casos de multiplicação dos pães e dos peixes), ao passo que os cristãos são chamados à divisão (enquanto distribuição) dos benefícios. Não é por acaso que os primeiros cristãos de Jerusalém possuíam tudo em comum e por todos tudo era dividido, de modo que a ninguém faltasse nada do que era necessário (cf Act 2,42-47; 4,32-37); e os cristãos das outras localidades resolviam o problema das necessidades dos irmãos através das coletas (cf 2 Cor 8,16-24; 9,1-5). No entanto, há uma divisão que é feita a exemplo da divisão que o Mestre fazia e mandou fazer em Sua memória, a fração do pão – a Eucaristia, em que se parte o Pão da Vida e se toma o vinho da Salvação e se distribuem pelos participantes de corpo inteiro e se levam aos enfermos e encarcerados.

E infelizmente há um aspeto em que os cristãos se apuraram em divisão: os cismas e as heresias ou, de forma menos anticristã, a separação em várias religiões cristãs, sabendo que muitas delas têm uma real consciência eclesial, o que as fez enveredar pelo ecumenismo com vista, a prazo, à plena comunhão na fé, a culminar na comum celebração eucarística, o sinal visível da unidade!

Entretanto, caminharemos da periferia para o centro ou vice-versa, entendendo a questão como um problema apenas de método, fixando-nos no essencial. Não podemos acomodar-nos ao conforto do centro, mas devemos dele haurir a força anímica; não podemos desistir das periferias, sob pena de falharmos na busca e desenvolvimento do Reino de Deus.

Periferia e centro são duas dimensões complementares da marcha do povo de Deus: tal como na estrada, se não tivermos em conta a força centrípeta, que impele o veículo para o centro da curva, e a força centrífuga, que o impele para longe do centro, o veículo não se mantém na estrada e a marcha é interrompida, quiçá fatalmente.

Será, pois, a conjugação periferia / centro que encaminhará a persistente aventura do apostolado para o êxito querido pelo Redemptor hominis, "Pão partido para um mundo novo" (lema do Congresso Eucarístico Internacional de Lourdes, 1981).