Da unicidade de pensamento…à imposição de uma determinada engenharia social

23-01-2014 11:53

Da unicidade de pensamento…

… à imposição de uma determinada engenharia social

Todos aceitam que a democracia é o governo do povo. Dividem-se as opiniões em determinar como o povo exercerá o poder de que é detentor: se através da participação direta em assembleias deliberativas e/ou executivas regulares (o que será relativamente fácil em universos territoriais e populacionais devidamente circunscritos); ou se pela participação através da deputação de representantes seus por via eleitoral.

No primeiro caso, perante a magnitude do universo popular é tentadora a criação da vanguarda ativa que acaba por tomar as rédeas do dinamismo da decisão postergando um cada vez maior número de unidades pensantes e operativas. Daí, para chegar ao pensamento único com pequenas variantes de pormenor basta um passo de caracol. Quanto ao segundo modo de exercício do poder democrático, é fácil o eleitor divorciar-se da coisa pública, se o levarem a ater-se unicamente ao momento do voto e ele renunciar a outras formas de intervenção, como a participação em reuniões, manifestações, ações populares, debates em rádio e televisão, colunas de jornais, convívios, petições – ou seja, o fomento e a utilização da consistente massa crítica – já que o ato eleitoral pode ser de efeito limitado em virtude da hegemonia dos aparelhismos partidários e da conveniente invocação do despesismo.

Seja como for, a democracia assenta sempre no seguimento da vontade expressa das maiorias. Porém, para que não impere a ditadura de uma caprichosa maioria de tentação tirânica, inventou-se a modalidade de alguma participação de forças não maioritárias desde que de expressão considerada significativa, sobretudo nos órgãos deliberativos ou de superior direção estratégica. É a metodologia da representação proporcional. E o sistema torna-se ainda mais salutar se apostar no respeito pelos legítimos interesses das minorias, maxime quando estes configuram direitos, liberdades e garantias fundamentais. É por isso que as contemporâneas constituições, ainda antes da definição da organização do poder político (eu preferiria dizer “dos poderes políticos”), consignam um complexo de princípios, como a universalidade, a igualdade, a proporcionalidade, a proteção da confiança, o acesso ao direito e a segurança jurídica; e os direitos, liberdades e garantias nos campos pessoal e familiar, social e cultural, económico e do emprego, da participação cívica e da intervenção política.

Consagrada que fica a complexidade de pluralismos, de que se torna evidente o pluralismo político, no entanto, muitas vezes, a coberto da igualdade de oportunidades de participação e intervenção, cometem-se dois tipos de erro: ou a oferta de espaço ou tempo de intervenção em temos de igualdade a forças cuja expressão social é deveras desigual, o que remete para uma certa injustiça; ou a oferta dessa oportunidade de acordo com a real expressão social, o que impede que alguns nunca tenham oportunidade de aparecer na pantalha da discussão pública ou que não atinjam a visibilidade que lhes permita sair da menoridade social e política. Por outro lado, os detentores do poder económico e financeiro, os seus fiéis servidores (lacaios), umas vezes bem pagos, outras nem tanto, ou os dotados de alta capacidade de penetração nos escaninhos dos poderes ou no mundo da intriga competem para impor os seus interesses supernos, com uma voracidade assustadora, se percetível, e tantas vezes em nome dos mais plausíveis ideais.

Entretanto, nos últimos tempos, como tem acontecido noutras ocasiões, mais do que o respeito pela vontade, interesses, direitos e legítimas aspirações de grupos minoritários, alguns pretendem impor à aceitação das maiorias os seus pontos de vista, as suas práticas, não só com foros de legitimidade como de exemplaridade. E quem não alinhar, ou com legitimidade ou por caturrice, é apontado como residindo ainda na Idade Média, nas malhas do obscurantismo obsoleto e na resistência ao progresso da civilização. É o que Duarte Branquinho na edição de O Diabo, de 21 de janeiro, denomina de uma tentativa de imposição de uma engenharia social.

E essa tentativa de imposição de engenharia social, para lá de servir os seus não ocultos fins e lançando mão de vários meios (utilização de crianças e invocação de seus superiores interesses, manifestações junto dos lugares de decisão, provocação social e política perante a visita e a presença de altas personalidades…), cai bem em tempo em que as decisões políticas se afiguram mais gravosas para a população, designadamente para os seus setores mais frágeis ou os espectros económico e financeiro parecem estar a colocar a governação em situação de impasse. Por outro lado, essa pretensão é complementar, se não sua irmã gémea, da política intoxicante da inevitabilidade do rumo certo em que estamos porque o outro governo (só os outros, nós não: nós só participámos por distração!) pôs o país na bancarrota e temos de pagar àqueles que nos emprestaram dinheiro (estávamos a viver acima das nossas possibilidades). Tal esquema de intoxicação é apoiado internacionalmente sob a égide dos mercados e suas agências de rating, como pelas instâncias políticas em que participamos. E, se a sinfonia internacional do esforço de sucesso que Portugal vem fazendo não culminar no êxito hipocritamente esperado, já está preparada a explicação: o FMI discerne que a economia portuguesa, para obter crescimento sustentável, precisa de reforçar a procura interna, quando o governo decreta um programa de mais cortes ao rendimento; a Comissão Europeia vem, com um atraso de três anos badalar que o programa de ajustamento veio muito tarde; e os iluminados de cá explicam que o economista mor não atuou a tempo porque andava mais empenhado na sua campanha presidencial… Laetentur caeli quia inter mortales magnus est numerus stultorum!

E com este desígnio, elaborado por agentes do neocapital – jovens quanto baste, alguns dos quais antes estavam do outro lado da negociação – e propalado na discrição ou na desvergonha um pouco por todo o reino da pobreza cada vez mais generalizada, em muitos casos a raiar a miséria, o Portugal empobrecido à velocidade de cruzeiro, à beira da fervilhação social, fez o milagre económico, está a sair da recessão e vai inaugurar o período pós-troika à irlandesa, com programa cautelar ou, talvez, à portuguesa. Tal vai resultar em cheio porque vamos ter três anos imediatamente consecutivos (uns em relação aos outros, acrescentaria Gaspar) com eleições.

Quem não se lembra daquilo que, no verão de 2004, os confrades de Santana Lopes diziam? A crise tinha chegado ao fim, já Durão Barroso (aquele que encontrara o país de tanga) o tinha profetizado!

E assim, de crise em crise, com luz intermitente ao fundo de cada túnel, se assaltaram os bolsos dos contribuintes da classe média e da classe média baixa – trabalhadores, pensionistas, pequenos aforradores. Não há dinheiro, mas aparecem automóveis novos para atribuir em sorteio a quem não se esqueceu de mandar pôr na fatura o seu número de contribuinte ou para encaixar nas grandes empresas financeiras, nacionais ou internacionais, ou nos vistosos quadros europeus (tudo custa dinheiro) os meninos à roda do tacho do poder, de nem sempre seguro “alto gabarito académico e empresarial”, que a nossa geração pagou porque eles souberam gritar e escrever: “não pagamos, não pagamos”!

No Público de ontem, Gonçalo Calado tenta dramaticamente, em Proposta de Errata ao Programa do Governo, uma redação do programa de governo gizado pela atual maioria em 2011, mas com as opções, objetivos e medidas com que está a ser levado à prática. Seria bom que os protagonistas da maioria atual, devidamente coligados, o apresentassem em 2015 antes das eleições. O povo teria então a oportunidade de os apear ou de os confirmar, sem que pudesse vir a queixar-se do logro a que o conduziram...

Saberá o velho país levantar-se em peso pela dignidade humana e pela reposição da convivência geracional? Onde estarão a Maria da Fonte, a Brites de Almeida? Estarão entretidas com as cotas femininas?

Ressurgiremos! – Eu creio!