Ditaduras em democracia

14-01-2014 17:54

Ditaduras em democracia

Juro à fé de quem me ouve ou lê que não quero contrapor minha reflexão ao pós-título “a tortura em democracia” da socrática obra “a confiança no mundo”. Este arrazoado resulta da recorrência da propalada ditadura do “relativismo” enunciada pelo cardeal Ratzinger na abertura do conclave que o elegeu a 19 de abril de 2005, reiteradamente abjurada por si mesmo enquanto papa reinante sob o nome de Bento XVI e crismada, nestes dias, sob o designativo de ditadura do “descartável”. Tendo as duas ditaduras, salvo seja, a mesma natureza exclusivista, a ditadura do descartável apresenta, a meu ver, uma hediondez maior, porque mais do que relativizar conceitos, dinamismos e objetos, o que já de si leva ao descarte, a tentação eficaz do descarte levará ao “emprateleiramento” de pessoas e a negar-lhes lugar e lugar condigno no mundo. Sendo abundantes os exemplos, hei necessariamente de me ater apenas a alguns.

Começo logo pela drástica diminuição da natalidade, que, se fosse ditada pelo excesso de população a nível local e regional, ainda seria o menos. Porém, a burocrática “desincentivação” à maternidade/paternidade, o democrático direito dos potenciais progenitores ao conforto pessoal e familiar, o ataque patronal à proliferação dos(as) trabalhadores(as), a penúria das condições económicas e sociais, em que ganha vulto o desemprego, tantas vezes sem fim à vista, ou as precárias relações laborais, os progressivos encargos com a educação, o prolixo consumismo que enreda o nascimento das crianças e sua vida pré-escolar, escolar e social – mais do que a equilibrada saúde materna – tornam consideráveis rincões do orbe inacessíveis a novos seres. Felizes os privilegiados que logram um lugar ao sol nesta enorme teia de egoísmos! E que dizer da contraceção quando imposta pelos poderes públicos ou seus agentes?

Se deambularmos pelo mundo do trabalho, seja ao nível estritamente laboral, seja no campo empresarial ou do empreendedorismo, se encararmos a administração pública e o universo da política, o panorama privilegia a qualificação baseada no grau académico e na jovialidade, nem sempre consequente das unidades humanas de laboração e intervenção. Escreve-se apreço pela senioridade, mas cria-se ambiente de desconforto ou sobreoneração aos mais experientes, a quem se oferece, em alternativa, a aposentação antecipada, o aumento da idade legal da reforma, a rescisão amigável, a redução salarial, a extinção do posto de trabalho, o encerramento de serviços e o despedimento coletivo. Descartam-se pessoas, empresas, estatutos e serviços com uma pinta impensável há uma dúzia de anos. Ditosos os trabalhadores, os empresários e os poucos políticos que resistem à erosão do descarte, que nem sempre são os mais competentes! E pontificam intocáveis aqueles que, graças à sua qualificação académica (às vezes, o 12.º ano) e à sua notória experiência profissional (proveniente tantas vezes do simples facto da filiação de algo e de uns meses de prática simulada) balançam entre gabinetes e cargos governamentais e gabinetes e cargos cimeiros da administração pública ou privada.

E os idosos? É tão penoso o aumento da esperança média de vida que tudo fica condicionado ao seu cálculo: a idade e o montante da aposentação/reforma, os salários, os protocolos para exames complementares de diagnóstico, os seguros de saúde e de vida. Depois, vêm os lares a funcionar legal ou ilegalmente, sob o signo do enceramento iminente, propagandeia-se a legitimação e “bondade” da eutanásia e disseminam-se os incómodos e os ditos despicientes!

E tudo surge nas pantalhas da discussão e da ação persuasiva sob o signo das ditaduras da inevitabilidade, da honra dos compromissos solenemente assumidos com os credores internacionais, do não enervamento dos mercados financeiros e da obrigação de acautelar o futuro dos filhos e netos!

Não posso omitir outros epifenómenos, de que destaco: a libérrima República Francesa proíbe o véu islâmico nas escolas e a burka nas ruas, mas autoriza a proliferação das mesquitas (se possível, sem os minaretes); por pressão da diminuta ARL (Associação República e Laicidade), as nossas escolas penalizaram com a expulsão os crucifixos. É óbvio que o Estado é aconfessional, o ensino público não pode ser pautado por critérios religiosos, mas também é linear que praças, ruas, caminhos, cemitérios e edifícios estão pejados de crucifixos, para não falarmos do peitos e pescoços de muitíssimas e ilustríssimas senhoras e não poucos senhores novos. Não creio que a sociedade, sobretudo a sua vertente comercial, suportasse a iconoclastia decorrente da letra da laicidade do Estado e da epistemológica pretensão da poderosa ARL. No quadro da lei da liberdade religiosa, que respeita a separação Estado/religiões, mas aceita a intervenção das confissões religiosas no ensino público, não percebo como é que, para lá dos símbolos habituais, não têm legitimado lugar outros como o crescente, a estrela davídica, o alcorão ou a bíblia. Não se estará desenhar no mundo assumidamente democrático uma incongruente cultura da promoção da desigualdade, da controvérsia, da constrição, em nome exatamente da igualdade, da fraternidade e da liberdade?

Vejamos o que nos leva a pensar um conceito moderno e arejado de democracia, que galgue as contradições da Revolução Francesa, livre que persegue e mata, democrática que afunila no império napoleónico; ou as da nossa Primeira República, em que todos tinham lugar, mas muitos tiveram de se esconder.

Democracia será a forma de governo em que todos os cidadãos participam em regime de igualdade — diretamente ou através de representantes livremente eleitos, os deputados — na proposta, no desenvolvimento e na criação das leis. Comporta necessariamente as condições sociais, económicas e culturais que facultam o exercício livre e igual da autodeterminação política e consequente intervenção.

Duas formas básicas de democracia se implantaram ao longo do tempo, ambas atinentes ao modo como o corpo inteiro dos cidadãos executa a sua vontade. Uma delas é a democracia direta, em que todos os cidadãos têm participação direta e ativa na tomada de decisões do governo. Contudo, na maioria das democracias modernas, todo o corpo de cidadãos detém originariamente o poder soberano, mas o poder político é exercido indiretamente por meio de representantes eleitos, nos termos constitucionais, o que é designado por democracia representativa.

Muito embora não exista consenso sobre uma definição unívoca de democracia, todos atinam em que a liberdade, a igualdade e o Estado de Direito  compaginam caraterísticas importantes suas desde os tempos antigos. Estes pressupostos tornam-se evidentes quando todos os cidadãos são iguais perante a lei e, nessa qualidade, têm igual acesso aos processos legislativos e à ocupação de cargos públicos. Por exemplo, na democracia representativa cada voto tem o mesmo peso, não existem restrições excessivas sobre quem quer se tornar um representante, além da liberdade de os seus cidadãos elegíveis ser protegida por direitos legitimados e que são tipicamente protegidos pela respetiva Constituição.

Do lado teórico, a democracia exige três princípios fundamentais: a soberania reside nos níveis mais baixos de autoridade e deles emana; a igualdade política; e normas sociais (leis, estatutos e regulamentos) pelas quais os indivíduos e as instituições só consideram aceitáveis ​​atos que refletem os outros dois princípios.

A democracia deve incluir elementos fundamentais como: o pluralismo político, a igualdade perante a lei, o direito de petição  para reparação de injustiças sociais e assimetrias regionais e locais;  o processo legislativo efetivo, participado e transparente; as liberdades cívicas; os direitos humanos; e a atenção aos elementos da sociedade civil que atuam fora da área da governança. Conforme assegura Roger Scruton, a democracia por si só não pode proporcionar liberdade pessoal e política, a menos que as instituições da sociedade civil tenham nela efetiva e significativa presença.

Frequentemente o regime da maioria absoluta é considerado como uma caraterística da democracia. Porém, o sistema democrático alicerçado unicamente no poder da maioria permite que minorias políticas sejam oprimidas pela “tirania da maioria” quando não há proteções legais dos direitos individuais ou de grupos. Uma parte essencial da democracia representativa "ideal" são as eleições competitivas que sejam justas tanto no plano material, como no plano processual e formal. Além disso, as liberdades como a política, a de expressão, a de imprensa, a de reunião e a de manifestação são consideradas direitos essenciais que permitem aos cidadãos serem adequadamente informados e aptos a votar e a assumir outro tipo de intervenção de acordo com seus próprios interesses.

Há também uma característica da democracia, hoje considerada basilar, que é a capacidade de todos os eleitores de participarem livre e plenamente na vida da sociedade. Com a sua ênfase nas noções radicais de contrato social e de vontade de todos os cidadãos, livre e assiduamente expressa, a democracia também pode ser caraterizada como a forma mais genuína de coletivismo político, se ela consubstanciar uma forma de governação em que todos os cidadãos têm uma palavra a dizer de peso igual nas decisões que afetam as suas vidas. E a democracia afirma-se efetivamente na obediência à manifesta e clara vontade da maioria, mas com o escrupuloso respeito pelos direitos e pelas legítimas aspirações do indivíduo e das minorias. Tanto assim é que os parlamentos e os órgãos de direção estratégica das coletividades, em vez da representação maioritária, são atualmente constituídos através do método de representação proporcional pela média mais alta de Hondt.

Concluindo, um conceito moderno e arejado de democracia, à luz da nossa Constituição, deveria ser capaz de sanear a nossa sociedade dos atropelos que a enxameiam em nome das inevitabilidades, fazendo sobressair indelevelmente os valores da ética e da legalidade e os princípios da igualdade e da equidade, da proporcionalidade e da universalidade, da confiança e da atenção aos direitos adquiridos, do seguimento inabalável da vontade da maioria e do respeito escrupuloso dos direitos de cada um e da minoria que integre.