.Em torno do pleonasmo...

16-01-2014 14:42

.Em torno do pleonasmo...

Uma situação

Pessoa amiga me lançou hoje, por correio eletrónico, logo no começo do dia, o seguinte repto: você já “pleonasmou” hoje?

E dava-me conta da “pleonasmite”, qual doença congénita (pandémica, corrigiria eu, já que, não obstante o seu inquestionável alastramento, ninguém nasce com ela, nem sei se a terá herdado) comum aos portugueses – e eu estendo tal caraterística à generalidade dos falantes, pois, já os latinos diziam egomet e nos metipsos, para reforço do pronome pessoal – sem cura, sem vacinas e resistente ao espectro antibiótico. Porém, tranquilizava-me com o facto de tratar de um hábito morboso, mas não letal, embora frisasse o incómodo que provoca quando não controlado ou assumindo uma feição comedida.

Também a reptante não se mostrou parca na adução de exemplos. Assim, apresenta “quatro exemplos óbvios: ‘subir para cima’, ‘descer para baixo’, ‘entrar para dentro’ e ‘sair para fora’”. Mas, utilizando o sistema de perguntas, prossegue referindo “recordar o passado”, prestar atenção aos “pequenos detalhes”, partir uma laranja em “metades iguais”, dar os “sentidos pêsames”  à “viúva do falecido”. E, depois, assegura não estar a socorrer-se apenas da sua ‘opinião pessoal’, mas a basear-se em ‘factos reais’ (e eu já fui vítima de alguns factos bem imaginários!)  para dar este ‘aviso prévio’ de que esta ‘doença má’ atinge a ‘todos sem exceção’. E continua acentuando que na rua, muitas montras de lojas nos aliciam com ‘ofertas gratuitas’; “algumas agências de viagens anunciam férias em ‘cidades do mundo’; no trabalho, a chefia pede um ‘acabamento final’ naquele projeto, para evitar ‘surpresas inesperadas’ por parte do cliente; e, aquando de uma discussão mais acesa com a cara-metade, às vezes, vem uma forte vontade de ‘gritar bem alto’: ‘Cala a boca’!”

Também o mundo do cinema nos presenteia com aquele filme que “estreia pela primeira vez” em Portugal, como a televisão, que é de “certeza absoluta”, a “principal protagonista” da propagação desta virose, em qualquer um dos telejornais nos permitirá “ver com os nossos próprios olhos” a pleonasmite em direto na pequena pantalha. O repórter certifica que o matagal “arde em chamas”; o treinador de futebol carpirá a tenuidade dos “elos de ligação” entre a defesa e o ataque; o “governante que governa” comunica que o rigoroso inquérito prontamente instaurado concluiu pelo desfalque do “erário público”; o chefe da diplomacia anunciará a “sólida consolidação” das “relações bilaterais entre aqueles dois países”. E um qualquer “político da nação”, ao comentar  a recente próxima manifestação que juntou uma “multidão de pessoas”, vai alvitrar um “consenso geral”  para a ultrapassagem da crise.

Embalado na resposta, também eu lancei mão da minha dose peonasmítica e respondi:

“Sim, certamente, caríssima amiga, depois de ter dormido um tranquilo sono do justo no leito da cama, tendo-me deitado ao comprido, ontem de véspera, já pleonasmei repetindo a mesma ideia com palavras diferentes, hoje neste dia, aqui neste lugar, com este meu próprio linguajar, proferindo em voz alta pela minha própria voz mesmo junto da minha mulher, a senhora dona destes meus olhos, umas lindas coisa bonitas. E logo à tarde, depois do meio-dia, ambos os dois, ela e eu, iremos à cidade urbana comprar umas mercadorias aqui para dentro desta casa doméstica, etc e outras coisas. Já agora neste momento um beijinho muito pequenino e um grande abração.”.

Depois, como não posso pensar que estou maluco da cabeça e não quero desejar viver a vida fora do meu habitat natural, não vou adiar para depois a ideia de “viver a vida”  no meu “habitat natural”, com um largo e generoso “sorriso nos lábios” imune de “dores desconfortáveis” nem “hemorragias de sangue”. 

Para que tudo dê mesmo certo, resolvi “encarar de frente” a temática do pleonasmo. Para tanto, há que retomar a sua definição e algumas das suas aplicações no uso da língua, já que o uso é considerado a principal norma de utilização legítima da língua.

A reflexão

Ora, ao demandar uma definição de pleonasmo em algumas das atuais gramáticas escolares, embora a definição seja formulada em termos consensuais, há divergência na sua integração na subdivisão das figuras de estilo. Uns o encaixam nas figuras de fonologia e morfologia, não sei bem porquê; outros, nas de semântica, dado implicar reforço ou realce de ideia; e outros, nas de sintaxe, como adiante veremos. Perante esta situação de divergência, resolvi seguir a enunciação feita por Isabel Casanova, que, na linha de Lindley Cintra e Celso Paiva, define pleonasmo como “uma figura de sintaxe que consiste na superabundância de palavras para reforçar uma ideia”. E acrescenta que, às vezes, se inclui neste conceito “a especificação de caraterísticas naturais que são próprias do referente”, como “mar salgado”, neve gelada”, ao que os referidos mestres chamam de “pleonasmo e epíteto da natureza”.

Já os mesmos aludidos autores esclarecem que “o pleonasmo é a reiteração da ideia”, ao passo que “a repetição da mesma palavra é um recurso de ênfase e, segundo a forma por que se disponha no período ou na oração, tem na retórica nome especial”, que não o pleonasmo. E distinguem vários tipos de pleonasmo, que discriminarei por palavras minhas: o pleonasmo propriamente dito, o pleonasmo vicioso, o pleonasmo e epíteto da natureza e o objeto pleonástico (complemento pleonástico, diremos nós no português europeu).

O pleonasmo propriamente dito é o abrangido pela definição acima explicitada, efetivamente sem acrescento de qualquer valia informativa, mas enquanto recurso estilístico pejado de valor enfático ou expressivo; o pleonasmo vicioso é aquele que nenhuma valia – informativa ou expressiva – acrescenta à enunciação, resultando apenas da ignorância do sentido exato dos termos ou de negligência discursiva, devendo ser tido como “falta grosseira” (vg “breve alocução”, “monopólio exclusivo”…). Já o pleonasmo enquanto epíteto da natureza é um recurso literário, uma forma de ênfase que consiste no emprego de adjetivo que insista no caráter intrínseco, normal ou dominante do objeto traduzido pelo seu nome (não se trata de mera reiteração de ideia, vg “noite escura”, “neve gelada”). Por seu turno, o complemento pleonástico, seja ele direto, seja ele indireto, utiliza-se com a colocação do grupo nominal ou equivalente no início de frase e com a sua repetição na forma pronominal. Por exemplo, “paisagens, quero-as comigo (complemento direto); “ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo (complemento indireto) “minha desgraça, causaste-ma tu” (complemento direto, mas a realização pronominal comporta complemento indireto “me” e direto “a” = ma). Não raro “para ressaltar o complemento direto ou indireto se usa fazer acompanhar o pronome átono da correspondente forma tónica regida da preposição”, como em “a mim não me enganas tu” e ”a ti até te pareceu mal que ele tivesse procedido tão bem”.

Além do que fica explanado, há que referir que o pleonasmo também resulta de várias situações não despiciendas de contexto comunicacional e intenções comunicativas, em concreto. Sem nos fixarmos demasiado em pormenores, convém referir situações típicas do quotidiano, de que se destacam algumas, apenas a título de exemplo. Quando se afirma que “ele mente com os dentes todos”, evoca-se o aforismo de que cai um dente sempre que se mente. Chamar por boca pode quer dizer que não so faz por aceno ou por escrito. Se o namorado sugere à namorada que está em cima do muro com medo de descer, que “desça aqui para cima do meu ombro”, é a linguagem do afoitamento e da proximidade que está a facultar a conversação. Em termos do liberalismo económico, quando se glosa a lei da oferta e da procura, aquela “oferta” tem de ser bem paga, caso contrário o produto pode ser destruído ou rarefeito. Quando o vizinho grita que é um homem muito homem ou um homem com H grande, é porque sabe que a palavra tem no uso comum um sentido pouco abonatório ou insuficiente. E eu fico sem saber se ele um homem de palavra e corajoso, se quer afirmar a sua caraterística de macho ou se quer negar que seja aldrabão, político, anjo e outras coisas mais. Porém, quando se diz que ele não os tem no sítio, toda a gente entende a expressão não no sentido denotativo. Quanto a outras situações, relativamente ao “habitat natural”, hoje já se criam habitats artificiais, como faz a EDP com os ninhos de cegonhas; o “erário público” contrapõe-se ao que pode também ser o pecúlio pessoal, familiar, empresarial ou associativo; e assim por diante. Isto para não aludir às analogias e polissemias nem sempre percetíveis pelo contexto. Assim, há que distinguir rato da zoologia e rato informático; mão de tinta, mão de vaca, mão do homem e mão de Deus; vara vegetal, bara de burel, vara cível, vara criminal e vara de porcos; manda de bois e manada de elefantes; fato de roupa e fato de cabras; bando de passarinhos e bando de malfeitores; conselho de estado e conselho do advogado. E mais não digo! 

Finalmente, quando Paulo VI, em 13 de maio de 1967, gritou ao mundo “homens, sede homens” certamente que não estava a pleonasmar, mas a apelar à responsabilidade do homem pelo mundo!

Por isso, não abusemos do pleonasmo, mas como abusus no tollit usum  (“o abuso não tira o uso”), usemo-lo com parcimónia e com propriedade quando ele for necessário ou der jeito para a expressividade, sobretudo se ela for afetuosa.