Escola do sucesso ou escola do futuro?

17-02-2014 16:53

Escola do sucesso ou escola do futuro?

A questão vem ao caso depois de ter lido, no caderno especial do Público de 16 de fevereiro, a entrevista de Marçal Grilo a Maria João Avilez. Não vou comentar toda a entrevista, com que até concordo na generalidade, mormente no que diz respeito à recolocação do ensino superior e da investigação na plataforma das exportações e ao papel da vertente humanística no conspecto geral da formação, mesmo da tecnológica.

No entanto, apesar de não gostar de contradizer aquelas pessoas cuja probidade, capacidade de trabalho e mundivisão clarividente devo enaltecer, como é o caso, entendo ser oportuno respigar criticamente certos pontos atinentes à educação, não superior. Do ensino superior quase nada direi, até porque pouco saberia dizer.

Um dos seus antecessores, Roberto Carneiro, que pôs em marcha uma das reformas mais amplas de todo o sistema educativo crismou a instituição escolar a que deu corpo com o designativo “a escola do sucesso” e dela fez remetente epistolar para educadores, professores, pais e encarregados de educação, e autarcas. Marçal Grilo apostou na “escola do futuro”, na concomitância com a “paixão” de Guterres pela educação. É de salientar que se trata de denominações de que se gosta, mas que pouco relevam.

Na entrevista, vergasta o imobilismo da escola em confronto com o da ação hospitalar, a ponto de exclamar: “se pegar num médico do séc. XIX e o trouxer de repente para um hospital, ele será incapaz de fazer cirurgia, nem sequer perceberá onde está”, ao passo que “o meu avô que foi professor primário no final do século XIX, seguramente reconheceria numa sala de aula muito do que viveu há cem anos nas suas classes”.

E eu fico a pensar que os hospitais são poucos comparativamente ao número de escolas; e os médicos com todos os produtores de equipamentos, produtos e subprodutos concernentes à saúde – que, sendo um bem público, não deixa de constituir um poderoso negócio – arvoram-se em lóbi que muito dificilmente os sucessivos governos nos diversos países conseguem contrariar. Veja-se o esforço e o tempo que os últimos governos despenderam para generalizarem a prescrição médica por substância ativa e a concomitante procura dos medicamentos genéricos. Depois, a formação contínua dos médicos nunca esteve em banho-maria como a dos professores, cujos regimes jurídicos se sucedem, mas as ações borregam umas atrás das outras, com exceção das que os suficientemente motivados pagam ou daqueles que o MEC impõe a alguns para propaganda de imagem de rigor (vg. formação de corretores de provas nacionais). Reparem quantas lágrimas se derramaram pelo alegado excesso de gastos na requalificação do parque escolar e nos centros de novas oportunidades – nem sempre com a preocupação da temperança, mas do combate, por vezes, intempestivo. Duvido de que todos considerem a educação como um bem necessário!

Agora, na administração da Gulbenkian, Grilo preconiza a formação que passe pelo investimento em alguns equipamentos – tablets, por exemplo – e pela atenção à formação dos professores que os irão utilizar, já que “nenhum equipamento por si só resolve problema algum, se não estiver ao serviço de um projeto pedagógico conduzido pela liderança da escola e pelos professores preparados para utilizar esses equipamentos”. Ora, “a formação dos professores para o melhor uso das novas tecnologias”, embora seja necessária, fica muito aquém das necessidades de formação contínua (Sócrates também nela apostou com os “Magalhães”, programas e-escolas, quadros interativos – do plano tecnológico da educação, uma vertente do choque tecnológico – e foi ridicularizado), que deve atualizar a componente científica e a componente pedagógica (e não somente a didática).

Recordando o período em que sobraçou a pasta da Educação, aponta as 4 componentes da passagem pelo governo, com que, aliás, se concorda: a participação no Conselho de Ministros, que proporciona a visão de conjunto do país e seus problemas específicos (e implica a tomada de responsabilidade solidária, acrescento eu); a gestão do Ministério da Educação, enquanto máquina difícil de dominar; a importância das reformas, traduzida na produção legislativa — decretos-lei, propostas de lei e outros diplomas; e a mensagem que o ministro lança à sociedade.

Em consonância com a predita mensagem (“a importância da educação nos primeiros anos de escolaridade”) – diz – “lançámos o pré-escolar, criámos as suas bases”, em prol da “sociabilização da criança, o contacto com as letras, os números, as pessoas, o mundo” – considerando essa vertente “ essencial para o seu desenvolvimento”. 

Nortearam-no os princípios da: concessão (não gosto eu da autonomia concedida, que não aparece assim nos diplomas) de autonomia às escolas, dado que o sistema, em certa medida, ainda em vigor enfermava do centralismo e uniformização, quando “cada escola devia ser tratada como uma instituição em si: com o seu projeto educativo e capaz de desenvolver por ela o que nenhum sistema centralizado pode comandar à distância”; formação específica de diretores para o cargo, com capacitação para liderar o projeto concreto de escola, de comunidade, dos alunos, dos pais; e “importância e responsabilidade que todos temos de ter e assumir na educação e no crescimento equilibrado dos mais novos”.

Sintetiza as iniciativas assumidas em três grandes linhas: educação pré-escolar, autonomia e financiamento do ensino superior. Nos 4 anos de governo, resolveram-se os problemas existentes a que chamou “escolhos”, condição necessária “para que a nau pudesse navegar”, o que alcançou com o “empenhamento dos professores” e o “maior envolvimento dos pais”, bem como com a legislação produzida. Mas tece críticas aos céticos da autonomia, em que inclui os sindicatos, pelo facto de a autonomia implicar algumas medidas específicas, como a contratação dos próprios professores pela escola (refere que “a partir do ano 2000 houve alguma regressão, mas já se retomou hoje a ideia da autonomia como caminho promissor”); ao atual ministro da educação, que “tem feito uma gestão que incide muito, ou que atende mais, a aspetos relacionados com o curriculum, o conteúdo das disciplinas, e que há outros aspetos que não estão a ser acautelados, como a criatividade, a iniciativa, a responsabilidade, a atitude....”; e ao país em geral, no sentido de que “nos valores, há imenso a fazer, se há algo que o país e o mundo perderam, foi a ética”, que “parece varrida do comportamento das pessoas”.

É óbvio que lhe assiste a razão na linha dos princípios, mas alguns deles e as medidas implementadas merecem alguma discussão.

Por exemplo:

Não se concorda com uma autonomia concedida, mas preconiza-se a autonomia desejada, trabalhada, alcançada e reconhecida. A contratação de professores de carreira pela escola autónoma pode arquitetar situações clamorosas de injustiça secundadas pela eventual ultrapassagem de profissionais de maior graduação e nem sempre melhores conhecedores do contexto local, bem como pela instalação do compadrio e amiguismo (as pequenas experiências de recrutamento local não abonam grande coisa de recomendável, a exemplo do que se passa em muitas autarquias no âmbito do recrutamento e seleção de pessoal). Por outro lado, é fácil os dirigentes enveredarem por uma atitude, muitas vezes sequencial de abuso ou de má utilização da autonomia (autonomia deles, que não da escola), nomeadamente para medidas autocráticas e de perseguição de gente que ousa exprimir seus pontos de vista. De resto, a autonomia é consagrada na LBSE (lei n.º 46/86, de 14 de outubro). Neste aspeto, o ministro mais não fez (e é bom) do que continuar e aperfeiçoar os esforços anteriores, a saber: DL n.º 211-B/86, de 31 de julho, que regula o funcionamento do conselho pedagógico e órgãos de apoio e cria o conselho consultivo, com a participação alargada de alunos, pais e representantes da comunidade (não constitui um diploma abrangente de toda a direção, administração e gestão); DL n.º 43/89, de 3 de fevereiro, que Estabelece o regime jurídico de autonomia das escolas oficiais dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário (não inclui a rede de jardins de infância e escolas do 1.º CEB); DL n.º 172/91, de 10 de maio, que define o regime de direção, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (é aplicado em regime de experiência em algumas escolas na área de cada uma das direções regionais de educação e a direção prevista na LBSE é o conselho de escola ou de área escolar). E o ministro, em matéria de autonomia, pelo despacho n.º 128/ME/96, de 8 de julho, prorroga, no ano letivo 1996/97, a aplicação experimental do regime jurídico de direção, administração e gestão instituído pelo DL n.º 172/91; pelo despacho n.º 130/ME/96, de 8 de julho, encarrega o Doutor João Barroso de realizar um estudo prévio de natureza prospetiva e operacional sobre o reforço dos níveis de autonomia das escolas; pelo despacho n.º 37-A/SEEI/96, de 29 de setembro, sanciona medidas que permitem às escolas dos 2.º e 3.º CEB assumir novas responsabilidades a nível organizacional e pedagógico, com respeito pela sua autonomia, nomeadamente quanto à composição do conselho pedagógico; e pelo despacho normativo n.º 27/97, de 2 de junho, aprova medidas tendentes a criar condições para a aplicação de um novo regime de autonomia administração e gestão das escolas, a partir do ano letivo de 1998/99, nomeadamente nos domínios do reordenamento da rede escolar e do reforço da autonomia.

É um grande trabalho de continuidade e aperfeiçoamento (que não de originalidade de iniciativa) que vai culminar no regime jurídico da Autonomia, Administração e Gestão das Escolas e Agrupamentos de Escolas, aprovado pelo DL n.º 115-A/98, de 4 de maio, alterado pela lei n.º 24/99, de 22 de abril, e regulamentado pelo decreto regulamentar n.º 10/99, de 21 de julho.

No regime destes diplomas, o conceito de direção (a cargo da assembleia de escola, do regime experimental) fica obnubilado pelo de autonomia, privilegiadamente atribuída à assembleia de escola (constituída por representantes de vários corpos e entidades e eleitos pelos respetivos universos eleitorais ou designados pelas competentes instâncias). Embora eleito, o órgão executivo passou a poder ser, em alternativa, unipessoal ou colegial, o que se presta a ambiguidades, a que o futuro pôs cobro do pior modo. Mantém um conselho pedagógico de polirrepresentação, mas com a dialética de poder / não poder deliberativo, o que deu como resultado a sua transformação prática em órgão de trabalho, consulta e transmissão de diretivas, que o regime atual de autonomia passou para os sistemas de designação e/ou de eleição limitada. Abre para o mecanismo de agrupamentos, que paulatinamente se generalizou até se transmutar, pelo sistema de agregação de agrupamentos verticais no panorama que hoje configura a administração escolar como se de uma empresa se tratasse, mas sem os parâmetros de eficiente planeamento, gestão e controlo. Por isso e verificando que o centralismo cada vez mais aperta a autonomia, vejo com muita dificuldade o supradito “caminho promissor”.

No atinente à educação pré-escolar, efetivamente, o ministro, faz aprovar a lei-quadro da educação pré-escolar (lei n.º 5/97, de 10 de fevereiro), cujo desenvolvimento é regulamentado pelo DL n.º 147/97, de 11 de junho, pela portaria conjunta ME/MSSS n.º 583/97, de 1 de agosto, e pelo despacho n.º 5220/97, de 4 de agosto. Embora se reconheça a validade do programa de expansão e desenvolvimento da educação pré-escolar, não parece justo fazer-se tábula rasa das iniciativas anteriores, até porque nem agora ela se tornou efetivamente obrigatória e universal e considerar a educação pré-escolar como “a primeira etapa da educação básica é um enunciado ambíguo. Se não, porque mantém a denominação e porque não se universaliza “custe o que custar”, como se tornou usual dizer? Coisa análoga se deve dizer da expansão e requalificação do parque escolar: em quatro anos não se pode fazer tudo, mas faz-se muita coisa. E a opinião pública não se mostrou tão severa como para governos anteriores e sobretudo para os subsequentes. Por mim, provenho de zona em que a ampliação e qualificação do parque escolar e a rede de educação pré-escolar se operacionalizaram totalmente antes de 1996.

Finalmente, quanto à formação dos líderes (evito a designação de diretores, gestores ou presidentes), o sinal não passou do que estava estabelecido. É certo que a gestão não se ficou no amadorismo de outrora, evolução para que terá contribuído a sua valorização financeira. O próprio ministro fez publicar o despacho conjunto n.º 200-A/MF/ME/96, de 28 de agosto, que estabelece o aumento das gratificações pelo exercício de funções aos membros dos conselhos diretivos, a partir do ano lectivo de 1996/97. De resto, a formação específica imposta pelo referido DL n.º 172/91 foi regulamentada e facilitada ainda pelo Ministério da Educação de Couto dos Santos e de Ferreira Leite (vd portaria n.º 1279/95, de 28 de outubro, aditamento à portaria n.º 1209/92, de 23 de dezembro, que regula a formação especializada para o exercício de cargos de gestão pedagógica e administrativa). É certo que o DL n.º 115-A/98 impõe a qualificação dos candidatos a diretor executivo ou a presidente do conselho executivo, mas tal qualificação pode provir tanto da formação como da experiência diretiva, que poderia ser de gestão intermédia, como instâncias judiciais vieram a sancionar. Ora, não se definindo em que constituía a profissionalização da gestão escolar, pergunto-me se não se insistiu antes num supino prolongamento do institucionalizado amadorismo, que, em muitos casos, afastou de cena os que adquiriram formação superior em administração e organização escolar, abriu a porta a que muitos entrassem via simpatias municipais e empresariais ou se estabelecessem nas escolas alguns reizinhos. Lembram-se da enorme quantidade de perguntas feitas, em 2010, por dirigentes de escolas “autónomas” a um secretário de Estado da área da educação sobre a avaliação de desempenho docente?

Por mim, tenho imenso prazer em recordar ter servido na gestão de escolas, então não autónomas, em que o poder consistia na força da razão e da argumentação.

Como é que pode avançar a educação, se a sua administração estiver sujeita a jogos de interesses políticos e pessoais? Porque não fazer dela um cuidado motor de desenvolvimento pessoal, social, profissional e político?