Limitação da intervenção política

27-01-2014 01:19

Limitação da intervenção política

É tema glosado no editorial do Diário de Notícias, de 26 de janeiro a propósito da questão que está na mesa da discussão nas conferências Novo Rumo, do PS. E o editorialista até concede que a intenção seja boa, podendo mesmo “assentar no desejo de valorizar o Parlamento e as listas partidárias, convocando para a casa da democracia os melhores entre os melhores”. No entanto, opina – e bem, a meu ver – que “a introdução deste constrangimento tem potencial para produzir o efeito contrário”, citando exemplos de personalidades que, por esta via, teriam sido arredadas da oferta de uma mais-valia própria à governança (embora se possa discordar politicamente da sua qualidade), só porque não tinham sido eleitas. E pergunta-se “se a democracia e o Estado têm alguma coisa a ganhar em excluir dos mais altos cargos de gestão pública aqueles que são inegavelmente os melhores”, mas que, por razões de feitio ou até orgulho, não se expõem ao voto do povo ou, como diria alguém da nossa anterior praça política, não se dispõem a depender do favor popular.

Porém, a questão torna-se curiosa se pensarmos naquele repto voluntário ou imponderado de uma deputada ao então ministro Gaspar “o senhor Ministro foi eleito…”, a que o atingido respondeu irritadíssimo que “eu não fui eleito coisíssima nenhuma!”.

Ora o sistema francês tem por hábito indicar para membro do governo somente quem faça parte do painel dos efetivamente eleitos deputados à Assembleia Nacional e não usa retirar-lhes o título após a cessação de funções governativas. Contudo, conquanto a França tenha servido de fonte de inspiração para muitas opções políticas, nem sempre a sua sequência se apresentou imune aos efeitos perversos. Em democracia representativa, com a diversidade de poderes separados, embora interdependentes, aquele órgão de soberania que deriva diretamente do voto popular é o Parlamento, que, entre nós, se designa por Assembleia da República (AR), nos termos constitucionais (cf CRP, art.os 147.º-155.º). Já o governo é um órgão de soberania constituído pelo primeiro-ministro nomeado pelo Presidente da República, “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (CRP, art.º 187.º/1) “e por ministros e secretários e subsecretários de estado” (CRP, art.º 183.º/1) nomeados “pelo Presidente da República sob proposta do primeiro-ministro” (CRP, art.º 187.º/2). Em tese, tal disposição constitucional nem sequer vincula o Presidente a que a nomeação de primeiro-ministro recaia no líder do partido mais votado, o que habitualmente se faz sob pena de o programa do governo poder vir a ser mais facilmente rejeitado na AR.

Entre nós e na França, o Presidente “é eleito por sufrágio universal, direto e secreto” (CRP art.º 121/1), o que não acontecia na Primeira República, que era eleito e destituído pelo Parlamento; e não sucede na Alemanha, na Itália e outros países, em que a eleição é feita por um colégio eleitoral, em que pontifica o Parlamento, e nos Estados Unidos, em que a eleição compete aos grandes eleitores, podendo acontecer que lá o candidato com maior número de votos não obtenha a presidência.

Quanto ao poder judicial, há que recordar que os juízes são recrutados por concurso, sendo dos do Tribunal Constitucional “dez designados pela Assembleia da República e três cooptados por estes” (CRP art.º 222º/1).

Ora a legitimidade do exercício dos poderes resulta não duma fonte privilegiada em especial, mas da observância do estabelecido constitucionalmente (o que de si já emerge originariamente do processo democrático, que leva à eleição da Assembleia Constituinte, que, por seu turno, determina quando e como é que a AR pode assumir poderes constituintes (vd CRP art.os 284.º-289). Ao assunto, a nossa Constituição estabeleceu diferentes fontes de legitimidade: a da eleição direta (caso do Presidente e da Assembleia); a da eleição indireta (caso, por exemplo do Tribunal Constitucional); a nomeação por múltiplas formas (pelo Presidente, pelo Presidente sob proposta do governo ou equivalente, pelo governo, por membro do governo…); e o concurso (caso dos juízes e o dos diversos lugares na administração pública). E não vejo que se possa, à partida, considerar qualquer delas não democrática, a não ser que os normativos constitucionais ou legais não sejam escrupulosamente observados – quod hic et nunc esset demonstrandum.

Mas, voltando à questão do deputado e do membro do governo, a CRP limita-se a estabelecer, no art.º 154.º, o patamar mínimo das incompatibilidades e impedimentos, estatuindo que “os deputados que forem nomeados membros do governo não podem exercer o mandato até à cessação destas funções”, sendo substituídos nos termos constitucionais; e remete para a lei a determinação das demais incompatibilidades bem como dos impedimentos.

Do meu ponto de vista, cercear em demasia o recrutamento pode levar a efeitos negativos. O papel do Parlamento é fundamentalmente político e traduz-se na produção legislativa, por iniciativa dos deputados (projeto), do governo (proposta) ou de grupos de cidadãos (petição), a passar por profunda e ampla discussão política, baseada essencialmente nas opções de Estado; e na fiscalização política e crítica da atividade governativa, através do debate no plenário, da audição em sede de comissão, da apreciação parlamentar de decretos-lei (para ratificação, alteração ou rejeição) e de requerimentos ao governo para esclarecimento. Além disso, advém ao deputado o trabalho político no círculo eleitoral por que foi eleito e o trabalho de representação em grupos de interesse parlamentar de âmbito nacional ou internacional. Em função de tudo isto, não pode o eleito descurar os aspetos de ordem técnica a fornecer pelos assessores e pelos diversos departamentos governamentais.

Donde se infere que o deputado deve assumir-se, antes de mais, como um tribuno, que perceba as realidades, use proficientemente do poder da palavra para persuadir, sistematizar e apresentar ou em grupo de trabalho/comissão ou em plenário. Subestimo o desempenho dos deputados mudos ou eclipsados, que se limitem ao ofício de corpo presente, levantando o braço em obediência à disciplina partidária ou excecionalmente a explicar as mudanças de posição política – da oposição para o apoio ao governo e vice-versa. A título de exemplo, menciono: o caso do deputado que foi “vocacionado” para explicar ao país a mudança de opinião relativamente à avaliação de desempenho dos docentes, maléfica no tempo de Sócrates e boa no de Passos Coelho; ou a prova de avaliação de competências e conhecimentos para ingresso na carreira docente, plausível antes e má agora.

Quanto aos membros do governo, quero afirmar que, sem perderem de vista a vertente política, já que de poder político se trata e eles respondem politicamente perante o poder legislativo (e não o contrário, como por vezes parece!), a sua atuação reveste-se de uma complexa natureza técnica e administrativa. Assim, eu não posso exigir ao ministro, ou a quem as suas vezes faça, dotes de tribuno, mas a capacidade técnico-política e a postura correta perante o povo e o parlamento, na certeza de que, se ao governo compete a orientação da política geral do Estado e a superintendência na administração pública, destas dimensões deve, com humildade democrática e transparência, aliada à firmeza de quem sabe o que faz, prestar contas ao Parlamento, que deve proferir o seu juízo consciente e crítico. E não deve passar o mandato governativo a “espingardar” contra os deputados ou a carpir-se do ativismo político do Tribunal de Constitucional. De resto, o tecnicismo costuma ter consequências humanas nefastas. Mas não é por acaso que a proposta de lei, do governo, deve ser instruída com uma detalhada exposição de motivos e o pedido de autorização legislativa já deve ser também acompanhado do esquisso do respetivo projeto de decreto-lei (é a componente técnica, senhores!), ao passo que o projeto não tem necessariamente de possuir um preâmbulo. De igual modo, o Parlamento não pode apreciar (pode apresentar uma visão crítica) um decreto regulamentar, uma portaria ou um despacho nem tomar a iniciativa de projeto de uma lei do orçamento ou de natureza similar (não são da sua competência as dimensões estritamente técnicas e administrativas). Não será, pois, difícil de aceitar que um cidadão com enorme competência tribunícia possa não ter um mínimo de competências técnico-governativas; e não basta a boa vontade! Também não será fácil admitir que um técnico supercompetente tenha necessariamente de possuir suficientes competências tribunícias e de trabalho político no terreno. E o país não pode deixar de ser representado com o elevado sentido de Estado.

Enfim, quem representa o povo são os eleitos e não os governantes por si mesmos.

E não vale a pena andar a anatematizar, por si só, alguma coexistência de acumulação das funções de deputado com outras, desde que devidamente declaradas e não incompatíveis. Ao invés da exclusão às vezes propalada, aliciem-se os cidadãos competentes para a exclusividade parlamentar com um vencimento um pouco melhor, próximo do rendimento auferido na atividade profissional de origem, quiçá à custa de alguma redução do número de deputados, e acabe-se com a promiscuidade de interesses parlamentares e empresariais (por exemplo, de quem no Parlamento colabora na produção legislativa a contento do que pretende realizar no departamento profissional e empresarial de origem ou de concomitância, por si ou por outrem).

Não é em vão que se exige cada vez mais aos partidos ampla e profunda reforma para se abrirem à sociedade, abandonando de vez o aparelhismo e não se cingirem ao recrutamento de deputados e governantes nas “jotas”. Também, no aspeto da formação política, as fontes devem ser múltiplas: a académica diversificada (não sendo de privilegiar ou excluir esta ou aquela), a experiência profissional (laboral e empresarial), a formação em quadros partidários e o autodidatismo (tudo sem abusar das equivalências!).

Efetivamente, se os partidos pretendem uma verdadeira reforma do sistema político, devem proceder à necessária redefinição dos círculos eleitorais, de modo que os deputados eleitos apostem na proveniência e na proximidade dos seus eleitores, bem como na responsabilidade perante os mesmos, sem perderem de vista o todo nacional. Mas devem outrossim reforçar a capacidade de agregação e inclusão. Não sei se lá vão somente com “universidades de verão” “estados gerais”, “novas fronteiras”, “laboratório de ideias”, “novo rumo”!