Mal-entendidos aldeãos e não só

13-02-2014 13:32

Mal-entendidos aldeãos e não só

Nunca será excessivo acautelar a sintonia entre emissor e recetor na dinâmica da relação comunicacional. Se emissor e recetor não possuem um conhecimento equivalente do código linguístico ou se entre eles se instala ruído tal que obste ao fluxo comunicativo em boas condições, tudo pode acontecer. Os casos abundam e alguns são bem divertidos, ao passo que outros podem trazer sérios incómodos. Muitos resultam da utilização de uma língua que não a materna e cujo domínio não deixa de ser problemático, mas outros advêm de um saber infantil ou de um saber aldeão.

Recordo um incidente ocorrido na representação de uma peça de teatro com o cariz de drama filosófico em que intervinham diversos filósofos quer da antiguidade quer da modernidade. O dramaturgo, como é óbvio, resolveu pô-los em debate nem sempre profundo e, às vezes, pouco sério. A dado momento, vi um deles escandalizado porque outro alvitrou que o interlocutor de ocasião poderia colocar os papéis em cima da secretária. Um entendia o designativo “secretária” com o significado de “mesa”, enquanto o outro o entendia simplesmente como elemento feminino de um secretariado. O diabo foi a reação de alguns ouvidos pios da plateia!

Num determinado dia, a criança do primeiro ciclo chegou a casa a choramingar porque a professora a tinha tratado muito mal: chamara-lhe “criatura” (nome contraposto a “criador”) e a menina confundiu com “cria”, o filhote de animal irracional. Valeu a lúcida calma paterna!

Falando ainda de crianças, recordo o episódio da visita da professora do primeiro ciclo que foi à sala da colega solicitar qualquer informação e deparou com as criancinhas todas em absoluto silêncio, de joelhos e mãos postas enquanto a professora estava de pé – e toda a turma a ouvir o hino nacional a partir de uma boa aparelhagem. A razão do espetáculo deve-se ao facto de a professora titular da turma ter explicado às inocentes criancinhas que iam ouvir o hino nacional; o hino é um símbolo sagrado, porque representa a Pátria, pela qual se deve dar a vida até à última gota de sangue. Portanto, a Pátria e o hino que a simboliza merecem respeito. Por isso, iriam ouvir o hino com muito respeito. Mal a aparelhagem começou a debitar a patriótica música para os ares, a turma caiu de joelhos, silenciosa e de mãos postas bem juntinhas, direitinhas e em clara posição vertical.

Passando ao universo da gente simples de aldeia, lembro-me de que, num brilhante dia da semana, do mês e do ano, um grupinho de sacerdotes visitou uma simpática velhinha em Vilar Formoso. A conversa decorreu muito bem, como era de esperar. Porém, à despedida, um dos sacerdotes sugeriu que ficasse rezando por eles, ao que ela respondeu: “Ah, não! O Senhor Padre não precisa de me recomendar, eu já rezo todos os dias pela conversão dos pobres pecadores”.

Também me recordo daquele grupo de raparigas a cantar com toda a piedade “Coração sacerdotal de Jesus, aturai, aturai pelos sacerdotes”! O segmento “atuai, atuai” soava de outro modo. Os rapazitos cantavam a Nossa Senhora “Coração Virginal de Maria, vinde a cem à hora, vinde a cem à hora, vinde a cem à hora levar-me ao céu”! Veja-se a parafonia com o “vinde sem demora”. E também cantavam piamente“Aceitai-nos, Senhor, com Jesus nosso irmão, imolado na cruz, o altar da redenção”. Só que as vozes pronunciavam “esfolado” em vez de “imolado”.

O padre italiano falava Português com desenvoltura, mas não conhecia suficientemente o vocabulário. E lá foi consultar o dicionário de italiano-português. E o sermão no cume da eloquência lá fez troar o apelo à adoração da “Santa Face de Jesus”, depois de em momento anterior da mesma peça oratória, ter vincado que Nossa Senhora dera à luz na gruta de Belém o “Seu Divino Filho”. E o padre espanhol, porque tinha consultado o dicionário de espanhol-português, anunciou na ocasião adequada da celebração da Vigília Pascal que iam fazer devotamente a procissão à sagrada “pia” para renovação das promessas do Batismo. Porém, como não basta a consulta do dicionário, sendo necessário ponderar o vocábulo adequado ao contexto, lá saíram palavras como “focinho”, “parir”, “cria” e “pila”.

Em maio de 1974, as forças vivas da cidade promoveram uma ruidosa manifestação de gratidão e apoio às Forças Armadas (ainda não se falava claramente em MFA), pela revolução abrilina. Como era natural, o estribilho que todos clamavam era “o povo unido jamais será vencido”. Porém, nós ouvimos dois miuditos a gritar “o povo unido continua a ser…” (Não termino porque a caneta deixou de escrever!). E os mentores da manifestação, de vez em quando, soltavam vivas a várias entidades, que todos repetiam em entusiástico e clamoroso coro falado. Num desses momentos, ouvia-se “vivam as forças armadas”, “viva o Spínola”, etc. Só que um deles gritou “abaixo Salazar e Caetano” e alguns, embalados na onda dos “viva”, respondiam “viva”. Era a falta de prática na condução de multidões, nunca se devendo gritar palavras de ordem de sentido contrário na mesma sequência. Por vezes, analogamente, os ministros do Batismo, podem ouvir pais e padrinhos a responder à pergunta “Credes em Deus Pai todo-poderoso, criador do Céu e da Terra?” com o “renuncio”, se vierem embalados na resposta “renuncio” às perguntas de abominação de Satanás, às suas obras e às suas seduções – a que se obsta com a mudança do tom de voz nas perguntas ou com um introdução explicativa às perguntas de profissão de fé.

O caso mais típico, do meu ponto de vista, surgiu numa das aldeias meio perdidas dos contrafortes da Serra de Montemuro. Eram tempos bem remotos em que o único aparelho de rádio existente na aldeia era o do taberneiro. É claro que, à tardinha e à noite, aquele estabelecimento comercial, único no povoado, encontrava-se usualmente repleto de “senhores homens” atraídos pelas sucessivas rodadas de tinto, pela ocasião privilegiada de conversa e, nos últimos tempos, pelas notícias em cima do acontecimento. Era fácil a conversa de convivência descambar para a altercação (algumas vezes até com empurrões, arranhões e não sei que mais) e o ambiente ficava polvilhado de palavrões e imprecações. Mas um dia, o dono da taberna preveniu: Meus amigos, cuidado, quem se portar mal vai lá para fora. Daqui por um pedaço vai falar no rádio Sua Santidade, o Papa. Quero respeitinho, sem palavrões e sem berros. O padre santo de Roma é o representante de Cristo. Tenho que o ouvir com silêncio, atenção e respeito. Quem se portar mal vai de vela p’ra rua. Às tantas, o locutor da Emissora Nacional avisou: “senhores rádio-ouvintes, dentro de momentos, vamos estabelecer ligação com a Rádio Vaticano para a transmissão de uma radiomensagem de Sua Santidade”. Foi quando o taberneiro repetiu com veemência a ordem de silêncio, atenção e respeito. E, quando o locutor anuncia a ligação imediata à Rádio Vaticano para a transmissão da dita radiomensagem, aqueles homens todos se prostraram de joelhos em terra, sem uma palavra ou um queixume e ouviram todo o discurso papal. Mas, quando o locutor proclama “senhores radio-ouvintes, acabámos de transmitir de uma formosa radiomensagem de Sua Santidade o Papa aos portugueses, a partir da Rádio Vaticano”, aqueles seletos ouvintes suspiraram de alívio e, enquanto se levantavam, lá vinham em catadupa a asneira, o palavrão e o “bolas, parecia que não acabava mais”!

Quantas historietas não se contam acerca do famoso “merci beaucoup”, entre a emigração! E não vale a pena falar da custosa limpeza dos gabinetes (cabinets – casas de banho), que eu não percebia por que motivo era tão aborrecida, ou explicar que recusei o prato de “canard” (pensando que era “canário” em vez de “pato”). E os emigrantes portugueses em França, a seu tempo, vão para a “retraite” (reforma) e Lutero teve a sua inspiração teológica contestatária dans une retraite (“retiro”, mas o professor de História, católico e pouco ecuménico, lançava o despeito sobre as teses inspiradas quando o teólogo estava numa “retrete”). Enfim…

Porém (e, com este anedótico episódio bem real, termino), o caso que me encantou com uma ternura desapontante foi quando presenciei o seguinte cenário: Como era frequente, em devoção mariana do Mês de Maria na igreja paroquial, o abade atendia de confissão, durante a recitação do terço e ladainha lauretana, quem o desejasse e, a seguir, aproveitava um momento de oração eucarística com o povo e dava a Bênção do Santíssimo Sacramento. Num determinado ano, o livro de orações para aquela devoção mariana era um devocionário organizado por um grupo de padres capuchinhos liderado por Frei Alcindo Costa, sob o título Mês de Maria pela Bíblia: liturgia da palavra, celebração do rosário, hora de vésperas, atos de consagração. Era o exercício de oração dirigido por uma senhora bem piedosa, muito dinâmica e, tanto quanto possível naquela paróquia, com a abertura à modernidade. Eis que, depois ter pronunciado, num momento de oração dedicado ao tema “Maria e a unidade dos cristãos”, as expressões “favorecendo o ecumenismo” e “segundo as normas do ecumenismo”, jogou o livro para cima do altar e com uma expressão facial esquisita. Evidentemente que, se a senhora reagiu com esta veemência discreta, já sabem que foi por ter lido “comunismo” em vez de “ecumenismo”. Depois, o abade teve uma conversa com a oficiante e, tudo esclarecido, foi a mesma que ajudou imenso na pedagogia dos diversos tipos de entendimento necessário a nível da paróquia.

Por isso, tenhamos o cuidado de provocar a sintonia conveniente entre emissor e recetor e evitar os ruídos que obstem à boa comunicação. E, apesar de tudo o que possa ter acontecido ou venha a acontecer, não desistamos de comunicar e de fazer a pedagogia da comunicação!