No aniversário do anúncio da renúncia de Bento XVI ao pontificado

05-02-2014 21:05

No aniversário do anúncio da renúncia de Bento XVI ao pontificado

Ainda bem que se começa a fazer jus à postura de Bento XVI e se dá relevo às suas opções de fundo e ao estilo da sua atuação. São pelo menos três vozes portuguesas que vêm a terreiro público colocar na rota direita a obra daquele pontífice, ora emérito, tentando perceber o significado do seu gesto de renúncia à luz da sua declaração ao consistório de 11 de fevereiro do ano passado e com a leitura que os factos subsequentes permitem soletrar.

A reitora da Universidade Católica Portuguesa (UCP) pensa que Bento deu a todos “uma lição de humildade” ao renunciar ao exercício do ministério petrino, gesto “que é muito difícil de ter para quem detém o poder”. Com efeito, mesmo que se trate da esfera eclesiástica (onde também o carreirismo tem sido tentador), a abdicação, resignação ou renúncia (que não demissão ou exoneração – estas implicam ou a desistência ou a dispensa de encargos) parece contrariar o lado humano das coisas, já que quem detenha o poder “gosta de o exercer até ao fim”. E nós conhecemos situações de pessoas que se colam à cadeira do poder de forma obstinada, tudo fazendo para a sua manutenção, chegando a inventar-se os mais díspares pretextos. Mas a académica entende – e muito bem – o poder como serviço (ministério ou diaconia), que não pertence aos seus detentores, “é qualquer coisa que se exerce num quadro de liberdade e de responsabilidade até ao momento em que se compreende quais são os limites dessa mesma responsabilidade e dessa mesma liberdade”.

Por seu turno, José Manuel Fernandes, atual responsável pela revista XXI, Ter Opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, considera que a renúncia papal abriu espaço para “um novo paradigma” na conceção do papado e no seu processo de sucessão. Declara o jornalista que se trata de uma “decisão individual”, feita em nome da “reforma” da Igreja Católica, contrariando a ordem habitual das coisas, espelhada – digo eu – na forma como se finou o exercício do múnus petrino por parte da longa lista dos seus predecessores.

O jornalista aflora os obstáculos que estavam a dificultar a ação beneditina (os casos de abuso sexual da parte de bastantes dos clérigos, as questões financeiras e as questões atinentes aos costumes e ao diálogo inter-religioso), a determinação com que aquele sucessor de Pedro encarava as medidas a tomar e a solidão e hostilidade com que estava a debater-se.

Ambos os intervenientes na matéria destacam, na decisão pontifícia, o fenómeno surpresa, a admiração e a compreensão. Porém, diferenciam-se no enfoque. A académica salienta a dificuldade da tomada de decisão em que se encontra “uma grande humildade, uma reflexão sobre o poder e o seu exercício e a forma como este deve ser exercido” e ainda a forma como Bento XVI “em liberdade renuncia a esse mesmo exercício do poder e tudo num quadro de uma enorme solidão, em termos pessoais, obviamente, mas de diálogo permanente com Deus.” Já o responsável da citada revista remete para tempos mais remotos o saber-se se a decisão foi efetivamente revolucionária, até porque a Igreja tinha de responder a questões levantadas em várias frentes. Mas há uma coisa em que ele tem toda a razão. Verifica que os conteúdos abordados por Bento XVI e por Francisco não são divergentes. Assim, o jornalista-analista assegura que, “ao contrário daquilo que a comunicação social quer fazer crer, as duas figuras “não estão assim tão separadas uma da outra”. E justifica a diferença de entendimento por parte da opinião pública pela diferença de estilo, é certo, mas também e sobretudo pela forma como os dois líderes católicos foram recebidos pelo “ambiente mediático”. Como fundamentação, dá como exemplo a forma como os dois últimos papas refletiram sobre a crise socioeconómica, nas suas encíclicas e mensagens, afirmando: “Aquilo que o Papa Francisco diz de uma forma muito terra-a-terra, pela qual às vezes o acusam de ser populista, não é muito diferente do que já estava na encíclica sobre a Caridade ou na intervenção de Ano Novo de 2013 de Bento XVI”.

Sobre a verdadeira razão pela qual o predecessor apresenta a renúncia, vale a pena reler o significativo excerto da sua declaração, em que destaquei/grifei alguns segmentos:

Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para  administrar bem o ministério que me foi confiado.

Não creio restarem dúvidas da lucidez do pontífice, então ainda em exercício, ao reconhecer a diminuição das forças por razões de idade e ao sentir que, não obstante dever o seu ministério ser cumprido com palavras e obras, a par da oração e do sofrimento, lhe estar a faltar o necessário vigor do corpo e do espírito. E dá-nos conta da sua consciência da “gravidade deste ato” que assume “com plena liberdade”.

Porém, o testemunho que mais me apraz registar é o da diretora do Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil e Vocacional de Aveiro, Ondina Matos. Sem se perder em considerandos sobre a idade ou a saúde de Bento, a sua natural timidez ou a sua anterior função de guarda do fidei depositum, a extensão dos seus escritos ou maior necessidade de delegar competências, pega nas pontas essenciais não somente da doutrina, mas do próprio estilo, que muita da imprensa não soube ou não quis anotar.

Esta agente pastoral vê no ato de renúncia um gesto natural do homem que sempre teve o “olhar colocado no futuro”, e faz uma retrospetiva de alguns dos “momentos mais marcantes” do pontificado de Ratzinger, de que releva as três jornadas mundiais da juventude em que participou. Logo em Colónia, “pouca gente estava à espera de sentir um Papa chegar de forma tão sorridente e acolhedora” e logo encetou com os jovens “um caminho de proximidade”. E Sidney continuou e consolidou esse percurso conjunto. Refere mesmo o caso de Madrid: o encerramento da jornada, no aeródromo de Cuatro Vientos, foi marcado por uma grande tempestade, mas Bento XVI insistiu junto dos sacerdotes que o acompanhavam para “voltar e concluir a celebração”. E acrescenta as palavras cativantes de conluio com os jovens “vivemos esta aventura juntos, isto foi uma aventura para vocês e para mim”.

Mas Ondina Matos destaca ainda duas coisas: as realizações atinentes à sua missão no âmbito teológico-espiritual – o Ano Paulino, o Ano Sacerdotal e o Ano da Fé – como momentos importantes da ação pastoral no contexto de “preocupações muito concretas” da Igreja Católica e que “fizeram despertar” as Igrejas locais para as temáticas essenciais em Igreja; e a criação e utilização da conta papal no Twitter, como sinal do interesse que as redes sociais tiveram para o papa alemão – “um papa atento à evolução dos tempos, que encarava a comunicação como uma ferramenta essencial para a proximidade com as pessoas”.

Finalmente, voltando aos conteúdos, não posso deixar de acompanhar José Manuel Fernandes ao apontar o roteiro das encíclicas, completado pelo seu sucessor a rematar em termos doutrinais o Ano da Fé, que teve a obrigação (e penso que também o gosto) de prosseguir e encerrar celebrativamente, bem como a lista bastante longa e conseguida de intervenções ousadas no aspeto doutrinal e na vertente sociopolítica – as exortações apostólicas, os discursos, as mensagens, as homilias, as catequeses, as respostas aos jornalistas e as viagens – de contactos multifacetados em atenção, proximidade e protocolo, um pouco pelo mundo possível.

Surja quem com mais sabedoria que o comum dos mortais dê o devido relevo ao papel eclesial de Ratzinger, não tanto pela simpatia para com a sua personalidade (que bem a merece), mas sobretudo para que a doutrina não fique no olvido. A causa dos homens e a glória de Deus o postulam.

A reitora da UCP declara que “não sabemos se esse silêncio no final nos vai deixar obra escrita para ser meditada ou se pura e simplesmente é um silêncio de reflexão pessoal e de diálogo interior, não sabemos e, por isso, o melhor é não especular e respeitar apenas a sua decisão”. E conclui: “Respeitemos o homem, a pessoa que ele foi e as lições que ele nos tem dado e seguramente que vai continuar a dar, sendo que esta lição do silêncio é uma muito bonita visto que acontece num período mediático, onde toda a gente se coloca em bicos de pés para ser vista e este é o caso de alguém que escolheu o silêncio, não querendo ser visto ou ouvido”.

Quem sabe – interrogo-me – se o silêncio e a discrição a que se votou livremente nos últimos tempos não trarão frutíferas surpresas à Igreja e ao Mundo!