Quanto à seleção de vocábulos

31-01-2014 18:41

Quanto à seleção de vocábulos

Deu entrada na mesa da Assembleia da República um projeto de lei do Partido Comunista para a recuperação dos quatro feriados em tempos suprimidos ou suspensos por razões de austeridade, produtividade, competitividade e outras palavras derivadas terminadas pelo sufixo -dade, como por exemplo inevitabilidade. Não sei se o projeto de lei teria ou terá hipótese de singrar face à atual correlação de forças na Casa da Democracia, mas o que irritou os outros parlamentares foi o facto de na portada do documento constar a palavra “roubo”, que os subscritores do projeto, de imediato, se prontificaram a retificar.

O argumento de contestação consistia basicamente na ousadia atentatória de chamar de roubo a uma lei aprovada por uma maioria num parlamento democrático, fruto de duma decisão política legítima (tratava-se da alteração ao Código do Trabalho em que foram quatro feriados “subtraídos” aos “privilégios” dos trabalhadores – estarei a selecionar bem os vocábulos?).

Oscilante entre a dita ousadia atentatória e a concomitante irritação parlamentar, lembrei-me de consultar dois dos dicionários da nossa praça cultural. E li:

“roubo – n.m. 1 ato ou efeito de roubar; subtração ou imposição de entrega de coisa móvel alheia, com ilegítima intenção de apropriação, cometida com violência ou ameaça 2 coisa roubada 3 (fig) preço excessivo 4 (direito) crime contra a propriedade” (cf Dicionário da Língua Portuguesa, 2011, da Porto Editora).

O Novo Aurélio da Língua Portuguesa, da Editora Nova Fronteira, no verbete “roubar”, acrescenta à tal subtração de coisa móvel alheia os segmentos “para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la reduzido, por qualquer meio, à impossibilidade de resistir”.

A fazer fé nestes dicionários, que as autoridades não se atreveram a retirar do mercado, a supressão dos feriados (seja por subtração definitiva, seja por inibição transitória de sua fruição) é um roubo, pelas seguintes razões: tinham sido entregues aos cidadãos, nomeadamente aos trabalhadores, por lei e o seu gozo estava radicado na tradição portuguesa; de nada valeram as ações de resistência, quer em nome da inutilidade quer em nome dos direitos adquiridos; trata-se de bens, embora imateriais, que nõ são do legislador, e, pelo menos, um deles é um feriado “móvel” (o Corpo de Deus); e, se o legislador não os retirou para si, fê-lo em favor do capital, ainda que sem proveito significativo. Os referidos dicionários não ilibam do designativo da ação de roubar quem quer que seja, ainda que se trate do Parlamento, ou que a decisão seja de caráter político. De resto, ninguém duvida de que um ato não mudará de caraterização moral só porque passou a ser consignado em lei. Ou será que já não podemos falar de leis injustas e iníquas, à quais São Tomás de Aquino entendia que se poderia, e nalguns casos deveria, desobedecer ou em relação às quais se continua a legitimar a desobediência civil? Por outro lado, há que distinguir entre a legalidade de um ato (ou seja a sua conformação com a lei) e a sua legitimidade, proveniente de quem de direito ou da sua justeza e utilidade. E a supressão dos feriados é legal e é legítima do lado da autoria, mas não é justa nem útil.

A pari, temos de considerar como roubo os cortes atrabiliários de salários e de pensões, pelas circunstâncias que emolduram tais decisões, pelos prejuízos causados a muitos dos atingidos e pela desfaçatez dos alegados benefícios. A atermo-nos a estes, é de questionar: se contribuíram para a diminuição da despesa pública ou se ela aumentou; se com tais cortes se reduziu sustentavelmente o défice público; ou se a dívida soberana e o seu serviço diminuíram. Pelos dados disponíveis, tem de concluir-se pela inutilidade dos cortes em si mesmos. Também por extensão terá de ser considerado roubo (chame-lhe ou não) o selvagem aumento dos bens essenciais à condigna vida das pessoas, em proporção inversa à diminuição do rendimento das famílias, e sem que os poderes estaduais tenham qualquer papel interventivo – moderador ou regulador.

A propósito de linguagens utilizadas, recordo o episódio exemplar em que Jaime Gama, então Ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros, ao encerrar um debate parlamentar em nome do governo de Oliveira Guterres, numa das suas infelizes tiradas discursivas, chamou ignorante à deputada Manuela Ferreira Leite, que ripostou à sua maneira. Aí, o Presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, interveio considerando excessivo e fora do léxico parlamentar o facto de o senhor ministro ter chamado ignorante à senhora deputada e esclarecendo que, quando muito, poderia ter referido que ela revelava alguma ignorância naquela matéria. Estamos no capítulo das realizações eufemísticas – v g “quente” ou “contente” em vez de bêbado, “comportamento desviante” em vez de “crime”, “com defeito de fabrico de que o próprio não tem culpa” em vez de “maluco”.

É óbvio, quanto à seleção vocabular, que não é necessário (será até mesmo indecoroso) mimosear as bancadas adversárias ou o mero interlocutor com determinadas palavras que não quadram num saudável léxico parlamentar ou na sadia relação interpessoal, mas também não é caso para os ofendidos virem carpir-se com tamanha dose de indignação com o suporte da legitimidade política ou com o prestígio da Casa da Democracia que tantas vezes Suas Excelências os Senhores Deputados da Nação (perdão, do Povo) menosprezam. Vejam-se os casos episódicos: de veto de idas de membros do governo ao parlamento; das grandes clareiras nas sessões plenárias; das situações de sono e sonambulismo no hemiciclo; dos aproveitamentos abusivos das disposições regimentais; da indicação da personalidade A ou B como autora da lei x ou do decreto-lei y (quando nós sabemos que a República aboliu a figura do legislador individual, sendo esta figura de legislador desempenhada pela assembleia e/ou pelo governo); da excessiva responsabilização do governo pela produção legislativa, quando, em última análise, a decisão legislativa é parlamentar e o ato de promulgação é presidencial; da não contagem individualizada dos votos; da imposição da disciplina partidária em questões de consciência ou da sua observação forçada contraditada por subsequentes declarações de voto; e de episódios como o mais recente da decisão de um referendo só para atraso de conclusão de processo legislativo e sua aplicação no ordenamento jurídico.

Já não me refiro ao tratamento anedótico de algumas questões, como: chamar “roubo” à subtração de uma média quantidade de dinheiro feita por um simples cidadão e “desvio” ao desfalque vultuoso praticado por um magnate da política ou da finança; referir que a mulher pobre “pariu um moço” e a rica ou da alta roda social e política “deu à luz um novo rebento”; ou rotular de “zaragata as bulhas” entre operários ou homens do povo e “desentendimento” as rixas entre pessoas ricas ou importantes.

Enfim, porque nos entretemos tanto com as designações e menosprezamos as equações? Porque aplicamos tanto das nossas energias ao acessório e descuramos o essencial? E porque acusamos tanto e insistentemente os outros e pregamos aos quatro ventos a nossa indefetível inocência?