Sobre a alegada gravidade da nova gramática e nova ortografia

24-11-2013 16:16

A TLEBS teve uma formulação monstruosa e a famigerada Milu suspendeu-a no âmbito do ensino básico, mantendo as especificidades do ensino secundário. Surgiu, em sua sucessão, o dicionário terminológico (DT), que, para lá de um Doutor João, de quem muitos disseram mal, não pela incompetência, mas pelo oportunismo de que se revestira a sua nomeação, esteve na sua validação a pena do Professor Vítor Manuel Aguiar e Silva, este jubilado da Universidade do Minho e anterior docente da Universidade de Coimbra, velho conhecido de insofismável competência no campo linguístico e no campo literário.

Conquanto a nova gramática, entrada no ensino demasiado tardiamente, a meu ver, detenha rubricas altamente criticáveis e até algumas inconsequências, não me parece que a venerável Teolinda seja mais consequente na sua crítica, para mais colocando-a na boca de um miúdo do 8.º ano. Assim, ela não concorda que na frase "O Rui estava na retrete", "na retrete" seja predicativo do sujeito, porque não se trata de uma característica do Rui. É verdade, mas também, quando digo "Crato é ministro da educação", também "ministro da educação" não é uma característica de Crato. A Teolinda devia saber que, segundo a lógica, o predicativo é algo que, através de verbo de ligação, se afirma, nega ou pergunta de algo: uma qualidade, uma característica, uma posição, uma situação, etc. Assim, se em "o Rui está doente", "doente" é predicativo do sujeito, também o é em "acamado" em "o Rui está acamado" e terá que o ser "na cama", se o Rui estiver na cama, "de joelhos", "de pé", "deitado", "sentado", "de cócoras" e "na retrete" ou "no altar".

Claro que também acho que é demasiada ambição querer que os alunos básicos ou secundários sejam metralhados com hipotexto e metatexto e quejandos. Porém, mudança de nomenclaturas não estranho. A título de exemplo, relativamente à expressão "meu tio", comecei por aprender a chamar a "meu", pronome possessivo empregue em posição adjetiva (ainda é assim que Celso Cunha e Lindley Cintra) lhe chamam; depois, passei a chamar-lhe adjetivo determinativo possessivo; mais tarde ainda, pronome possessivo adjunto; e agora (ficaremos por aqui?!), determinante possessivo... O que importa é dar aos alunos ferramentas para compreensão das estruturas da língua e facilitar a sua expressão oral e escrita.

Já agora, ainda aprendi na gramática da língua portuguesa: os nomes substantivos, os nomes adjetivos e os nomes numerais. Se consultarem um dicionário da Porto Editora, lá encontram “substantivo”, “adjetivo” e “numeral” na classe dos adjetivos, numa primeira aceção.

E, se aceitamos como compreendidas na noção de nome (que até há pouco se designava como substantivo), além das coisas, animais e pessoas, etc., as qualidades, ações e estados, etc., teremos, por exemplo, que a qualidade do belo empregue substantivamente será beleza, formosura, lindeza; mas, se a empregarmos adjetivamente, isto é junto ao nome, teremos, por exemplo, rapaz belo, formoso ou lindo. Idem, para doença e doente, saúde e são, reprovação e reprovado. Vejam que “belo” habitualmente é adjetivo, mas acima foi empregue como nome ou seja substantivado.

Não é por acaso que eu me recuso a classificar uma palavra ou a dizer o seu significado a não ser no contexto ou em situação comunicativa concreta. Pasme-se como levemente se acusa o “subir para cima” como pleonasmo de mau gosto. Lembro-me de que Eva, no princípio do mundo, terá subido a um castanheiro. Quando quis descer, teve medo. Foi quando o espertalhão do marido, ternamente condoído por ela, a afoitou: “Não tenhas medo, desce aqui para cima do meu ombro”! Era assim Adão, o primeiro homem…

Na Matemática, temos as designações em vez dos nomes. Todavia, “23” ou “ax” ou “(a+b) (a-b)” são monómios (do grego “um só nome” ); “2+3x” é um binómio (do grego, nome duas vezes); “a+b+c” é um trinómio (do grego, nome três vezes); e “a+b+c++x” é um polinómio (do grego, nome muitas vezes). Duvida-se se antigamente até a palavra advérbio era adjetivo (adverbium = verbum ad verbum – junto ao verbo, a outra palavra). É claro, a palavra “verbo” nunca foi adjetivo. É a palavra por excelência de que, segundo a gramática derivacional e a gramática das valências, dependem todos os outros segmentos da frase. Num terminado estádio de evolução das gramáticas “verbo” ficou reservado para uma determinada classe de palavras. Mas um bom dicionário regista para “verbo” aceções como: aquilo que se diz; palavra; eloquência; voz, entoação; forma de enunciação do pensamento através das palavras, elocução, forma de expressão; e a tradução latina do grego “lógos” como a segunda pessoa da Trindade Santíssima.

As mudanças de terminologia acontecem em diversos campos do conhecimento. Por exemplo, eu dizia a fórmula química da água – H2O; passou a OH2;  e depois H2O, como se diz agora.  Os meus dedos tinham falange falanginha e falangeta, exceto o polegar que tinha falange e falangeta. Agora têm primeira falange, segunda falange e terceira falange. E eu fico sem saber se o polegar tem primeira e segunda falanges ou primeira e terceira, já que a antiga falangeta nele é a segunda, mas tem as características da terceira dos outros dedos.

Também a propósito da nova ortografia, somos mimados com reações bem esquisitas: um juiz repreende funcionário judicial porque quer que ele escreva sem erros dizendo que o acordo não está em vigor; outro juiz recusa-se a seguir relatório de advogado porque os tribunais alegadamente não têm de obedecer ao governo; um administrador do CCB manda retirar do sistema informático os conversores para a nova ortografia; muitos se queixam da confusão sobre hifenização ou não, abundância de palavras homógrafas, palavras de dupla grafia, etc.

Ora, a ortografia não implica necessariamente a mudança de gramática, a não ser em casos muito pontuais, como o da hifenização, que tem que ver com o capítulo da representação da língua na escrita. É certo que é provável alguma dificuldade acrescida à aprendizagem pelo efeito de retorno, mas esse perigo existe em qualquer esquema ortográfico, dado que há diferenças enormes entre o código oral, rico e amplamente diversificado, e o escrito, mais fixista, pobre e derivado. Quanto ao mais, problemas de hifenização, sim. E na ortografia de 1945 não os havia? Quem não nada com escolhos por entre eles?! Palavras com dupla formulação, homografia, homonímia, homofonia e dupla grafia? E antes? Vejam-se, por exemplo: regime e regímen, abdome e abdómen, febra e fêvera; comprovativo e comprobativo; fora (advérbio) e fora (verbo ser); fosse (verbo fossar) e fosse (verbo ir, verbo ser); canto (esquina) e canto (de cantar, nome e verbo), rotura e ruptura…

Contradições há, então não há?! Por exemplo, na frase “Dá-lhe no focinho”, “lhe” remete-nos necessariamente para o complemento indireto, mas tens que lhe acertar bem diretamente; e “no focinho” seria complemento oblíquo, mas tens que lhe acertar em cheio e não obliquamente e não me digas que é um simples modificador do grupo verbal, que eu quero que modifiques bem o sujeito.

Todavia, na velha gramática também havia contradições bem eloquentes. Assim, na referida frase, “no focinho” seria complemento circunstancial de lugar onde como “em Aveiro” ou “na vila”; e no segmento “e aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”, “da lei da morte” seria complemento circunstancial de quê, de lugar? E “corpo”, “homem”, “criatura” eram substantivos concretos. E “alma” ou “espírito”, “Deus” ou “anjo” e “criador”, que se lhes contrapõem respetivamente não eram porquê?

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A nova ortografia resulta de uma decisão política, concertada entre povos, em prol de uma política internacionalizante da língua e não de uma opção linguística. Não deve, porém, contrariar gravemente a gramática da língua.

Não é fruto de mera decisão governativa. Se quem a pôs em marcha foi uma resolução do conselho de ministros, ela tem por detrás de si um decreto do Presidente da República, uma resolução do parlamento e um acordo internacional.

A nova ortografia, não deve ser arma de arremesso partidário, porquanto: se se arvora em norma a observar sob a égide de um governo socialista, o presidente não é socialista; se tem origem em tratado internacional em tempos de governo do PSD, o presidente ao tempo era Mário Soares – isto em 1990 (texto definitivo) e em 1986 (texto preliminar, amplamente criticado e depois corrigido).

Académicos contra? Sim. E académicos a favor: Malaca Casteleiro, Fernando Cristóvão, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Carlos Reis, Maria Helena da Rocha Pereira, entre tantos e tantas, de cuja probidade científica não se têm dúvidas.

Porém, ainda estamos no tempo da tolerância ortográfica!