A gestão das escolas rumo à autonomia

19-02-2014 18:43

A gestão das escolas rumo à autonomia

A Constituição de 1976 definiu os princípios orientadores da política educativa portuguesa, tornando obsoleta a lei de Veiga Simão e pertinente a existência de nova Lei de Bases do Sistema Educativo, remetendo para Assembleia da República a competência legislativa nessa matéria, como é óbvio.  

No entanto, a lei da sua 1.ª revisão (LC n.º 1/82, de 30 de setembro) consagra no art.º 77.º, o princípio da participação democrática no ensino, formulando-o duplamente nos seguintes termos:

1. Os professores e alunos têm o direito de participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei.

2. A lei regula as formas de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de caráter científico na definição da política de ensino.

Parece que, enquanto decorria o trabalho de revisão constitucional, o governo já estava no caminho do n.º 2 deste artigo, pois faz publicar o DL n.º 125/82, de 22 de abril, pelo qual é criado o conselho nacional de educação, como órgão de consulta do Ministério da Educação e com uma composição que, por antecipação, obedece àquele normativo constitucional, mas que terá desenvolvimentos futuros (o primeiro dos quais é indicado pelo DL n.º 375/83, de 8 de outubro), de acordo com a evolução da realidade nacional.

No entanto, só ao fim de 4 anos de discussões, oscilações e hesitações, avanços e recuos é que surge a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro de 1986, a lei de bases do sistema educativo (LBSE), que será alterada pelas leis n.os 117/97, de 19 de setembro, e 49/2005, de 30 de agosto, no atinente ao ensino superior; e pela lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, para alteração da idade e número de anos da escolaridade obrigatória, universal e gratuita.

O seu art.º 45.º (que passou a art.º 48.º na lei n.º 49/2005, de 30 de agosto) estabelece os princípios a que deve obedecer a administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino, que podem enunciar-se como segue: integração comunitária e fixação local dos respetivos docentes (vd n.º 1); administração e gestão orientada por critérios de democraticidade e participação (vd n.º 2); prevalência dos critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa (vd n.º 3); existência, na direção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de educação e ensino, de órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados, segundo regulamentação adequada a cada nível de educação e ensino (vd n.º 4).

Já o art.º 43.º (que passou a art.º 46.º na lei n.º 49/2005, de 30 de agosto) determina, no âmbito dos princípios gerais da administração e gestão do sistema educativo: pleno respeito pelas regras de democraticidade e de participação para a consecução de objetivos pedagógicos e educativos, nomeadamente no domínio da formação social e cívica (vd n.º 1); interligação, a nível nacional, regional e local com a comunidade através da participação dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias, de entidades representativas das atividades sociais, económicas e culturais e de instituições de carácter científico (vd n.º 2); e adoção de orgânicas e formas de descentralização e de desconcentração dos serviços (vd n.º 3).

Sendo certo que a LBSE, sem contrariar a Constituição, foi um pouco mais generosa que a lei fundamental ora revista, a legislação subsequente conseguiu inúmeras formas de atropelar os preceitos constitucionais e oscilar entre o cumprimento extensivo ou restritivo da LBSE – mercê de complacência com o status quo estabelecido, da falta de evolução qualitativa de algumas estruturas sociais de suporte, das opções políticas e das restrições financeiras – como se pode verificar por uma análise mesmo que sumária dos diversos diplomas que alegadamente reforçam a autonomia escolar. Há, entretanto, que lançar um modesto olhar sobre o que se passou no lapso de tempo entre a promulgação da LC n.º 1/82 e a LBSE.

Ainda antes da revisão da Constituição, além do que afirmamos aquando da concomitância do processo de revisão, desenvolveu-se um processo legislativo que culminou com o DL n.º 580/80, de 31 de dezembro, que estabelece o regime da profissionalização em exercício e que atribui competências nessa área ao conselho pedagógico, que cessaram com a publicação do DL n.º 405/86, de 5 de dezembro, que estatuiu a formação em serviço.

Por outro lado, surgiram muitas situações de não eleição de conselhos diretivos nas condições exigidas legalmente, por não existência de professores profissionalizados nas escolas ou por indisponibilidade dos mesmos, até porque a escola de provimento poderia não ser aquela em que desejavam permanecer. Pelo que se recorreu muitas vezes ao sistema de conselho diretivo de nomeação por um ano letivo, cujo presidente, que escolheria a sua equipa, era designado pelo Diretor Geral de Pessoal, mais tarde pelo Diretor Regional de Educação, com base num ato eleitoral em assembleia geral de professores de que resultava uma listas dos três nomes mais votados, dos quais só um viria a ser nomeado (habitualmente o mais votado).

Para obviar à desertificação da direção das escolas, é publicado o DL n.º 312/83, de 16 de janeiro, que estabelece as gratificações a atribuir aos membros docentes de conselhos diretivos de ensino preparatório e secundário, de que resultou alguma apetência, por vezes muito controversa, para a ocupação dos lugares. Pelo despacho n.º 30/EBS/85, de 21 de setembro, é fixada a representação do pessoal docente, no conselho diretivo em função do número de alunos do respetivo estabelecimento; e pelo DL n.º 211-B/86, de 31 de julho, fica regulamentado o funcionamento do conselho pedagógico e órgãos de apoio (sendo um deles o conselho consultivo, com a participação alargada de alunos, pais e representantes da comunidade).

Por outro lado, estabelece-se o regime de constituição, competências e mandato das comissões provisórias, para situações especiais das escolas, e comissões instaladoras, para as novas unidades escolares (desp. n.º 9/ME/83, de 11 de julho; DL n.º 215/84, de 3 de julho; e pta n.º 672/85, de 11 de setembro).

Já na vigência da LBSE, insiste-se nas alterações ao regime do DL 769-A/76, com a fixação das datas para as eleições do conselho diretivo (DL n.º 197/87, de 30 de abril) e para a sua posse (DL n.º 281/87, de 11 de julho, por alteração do anterior). E vêm os despachos n.os 16/SEAM/88, de 12 de abril, a regulamentar a designação do presidente das comissões instaladoras de estabelecimentos de ensino preparatório e secundário, 15/SEAM/88, de 12 de abril, a estabelecer o processo de homologação das eleições dos conselhos diretivos e das comissões provisórias dos referidos estabelecimentos, 16/SEAM/88, de 12 de abril, a estabelecer o processo eleitoral para os conselhos diretivos.

Depois, reconhecendo que “o parque escolar do ensino não superior constitui, no momento presente (sic), motivo de sérias preocupações para o Ministério da Educação, mormente a sua manutenção e conservação” e fazendo apelo ao “uso da autonomia administrativa e financeira na gestão das receitas que integram o fundo”, é criado o fundo de manutenção das escolas” e estabelecem-se “os elementos que integram a respetiva comissão de gestão” – com a publicação do DL n.º 357/88 de 13 de outubro.

Façamos aqui, para alguns considerandos, um breve momento de pausa neste levantamento de produção legislativa respeitante à matéria autonómica. Do meu ângulo de visão, os dois normativos decisivos e positivos são apenas o da criação do conselho nacional de educação e o da compaginação da LBSE. Quanto ao mais, o DL que, entre outras coisas, consagra o conselho consultivo, se bem que na linha da economia da revisão constitucional em termos de participação a nível local, não abrange toda a dinâmica da direção, administração e gestão; o da criação da comissão de gestão para a manutenção dos estabelecimentos, faz contraditoriamente apelo a uma autonomia escolar, consignada na LBSE, mas sem qualquer regulamentação que lhe dê eficácia; e os outros mais não fazem que apor remendos ao sistema vigente, sem o sancionar nem contradizer, talvez somente a aguentar a pressão à espera de melhores dias, mas sempre na satisfação sistemática da tentação da normação detalhada e do controlo total por parte da tutela.

Finalmente, é publicado o DL n.º 43/89, de 3 de fevereiro, que estabelece o regime jurídico da autonomia das escolas, em termos culturais, pedagógicos, organizativos e administrativos. Porém, deixa de lado a autonomia financeira, que dá lugar a regras de gestão na área, a cargo de um conselho de direção, e não abrange os estabelecimentos da educação pré-escolar nem os do 1.º CEB. No entanto, ousa cassar as virtualidades do DL n.º 211-B/86, que revoga, atribuindo-lhe a letra D, e sem o fazer substituir por outro – vazio mal colmatado pelo desp. nº 8/SERE/89, de 8 de Fevereiro, que aprova o regulamento que define as regras de composição e funcionamento dos conselhos pedagógicos e dos seus órgãos de apoio. E não para a preocupação em torno do DL n.º 769-A/76, pois, o desp. n.º 12/SEAM/89, de 23 de maio, vem estabelecer as condições de elegibilidade do pessoal docente para os conselhos diretivos dos estabelecimentos dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e do ensino secundário.

Meus ilustres lusitanos, ora pensai comigo: se é tão difícil chegar à autonomia por via legislativa – tantas e tão grandes são as contradições e escolhos, os avanços e os recuos, tamanha a promiscuidade entre o enunciado autonómico e a tentação reguladora e “controleira” (releve-se-me o disparate) – como não há de ser espinhosa a rota prática do seu exercício quotidiano! É que a autonomia implica um estatuto de maioridade, que obriga a tomar decisões sem que outrem forneça orientações, mas com responsabilidade, de modo a prestar contas atempadamente a quem de direito, designadamente a tutela administrativa e a comunidade. E isso não é fácil…

Aguardemos se a revisão constitucional de 1989, por via direta ou indireta, nos traz novidades.