A gestão democrática das escolas e a Constituição

13-02-2014 20:30

A gestão democrática das escolas e a Constituição

Sempre que o Ministério da Educação (e Ciência) promove a produção de legislação sobre gestão de escolas ou similar, argumenta com o acréscimo de autonomia, ao passo que os críticos acusam o seu acrescido défice. Se é certo que possuí alguma experiência neste domínio no milénio anterior, quer no setor público quer no privado (ainda que de interesse público), também não é menos verdade que, nos últimos anos, sem aceder à experiência direta da hoje designada gestão de topo, me mantive atento e com alguma intervenção. Em todo o caso, sem aceitar a forçada leitura de ver gestão, formação e pedagogia em qualquer documento do Ministério da Educação, como queria um famoso inspetor da Delegação Regional do Norte, cujo nome gosto de omitir, sempre recusei a afirmação barrosista de que um cidadão pode ser um bom professor, mas não ter capacidade para gerir. Ora, o professor é exatamente um gestor – um gestor de pessoas, de competências, de objetivos, de conteúdos, de metas (sejam elas curriculares ou de aprendizagem), de perspetivas, de tempo, de espaço, de currículos e programas, de recursos de que nem sempre dispõe e, sobretudo, de saberes. Por isso, sempre lancei um olhar colaborante, mas crítico sobre normativos, decisões, atitudes e comportamentos. Hoje deu-me na telha (passe a designação menos ortodoxa) de encetar um percurso reflexivo sobre a matéria e resolvi começar pela Constituição, a lei fundamental com a qual se devem conformar todos os demais normativos e não ao contrário, como pretendem não poucos dos que ora nos governam e dos que pretendem modelar a opinião pública.

Folheando a versão constitucional originária, da pena da Assembleia Constituinte, promulgada em 2 de abril de 1976 e em vigor da partir do dia 25 de abril do mesmo ano, nada encontrei sobre gestão das escolas – o que me deu a entender que, tratando-se de matéria de procedimentos, o tema seria objeto da atividade legislativa ordinária e da respetiva regulamentação, no respeito pelos ditames democráticos ao nível dos princípios e das atitudes e comportamentos da parte de quem gere, com base em critérios de representatividade e participação, privilegiando o modo de eleição.

Mesmo assim, fiz uma deambulação pelos projetos de constituição apresentados previamente à constituinte, nos termos regimentais. Assim, anotei que o PCP refere que a administração e o ensino ministrado nas escolas particulares, cuja criação “necessita de autorização do Estado”, “estão sujeitos a contrôle (sic) público” (art.º 43.º). Mas, no art.º 7.º, pode ler-se, como uma das funções políticas do Estado, “desenvolver de forma criadora os órgãos do poder democrático que assegurem a participação determinante das massas populares na construção do novo aparelho do Estado e na solução dos problemas nacionais”. Ora, a escola debate-se com a problemática educativa nacional e integra a estrutura administrativa da educação, que, por sua vez, integra a máquina administrativa do Estado. Outro partido que tem uma vaga alusão à tarefa da educação (incluirá gestão?) é o MDP/CDE, cujo projeto inclui um art.º 33.º onde se lê: “a prossecução da tarefa educativa compete ao Estado, mas constitui um objetivo em que devem participar as organizações populares e a generalidade dos cidadãos, de acordo com as conclusões fornecidas pela ciência e em íntima relação do estudo com a vida”. Mas já o art.º 4.º pretende “estimular a organização e consciencialização das massas populares e promover, através da sua institucionalização progressiva como órgãos do Estado, a participação cada vez mais ampla do povo em todos os níveis do poder”. A UDP, ao falar da liberdade do povo, no art.º 5.º do seu projeto, consagra o reconhecimento por parte do Estado do “poder deliberativo, executivo e de decisão às organizações que unam as massas populares sem restrições nem limitações, e por elas sejam democraticamente constituídas”. E um dos exemplos apontados são as “assembleias plenárias de estudantes”. E esclarece que as referidas organizações “constituem formas diretas do exercício da democracia, e só aos nela participantes compete a respetiva regulamentação”. Pelo que me é dado concluir, a legislação de gestão democrática da escola produzida a partir de outubro de 1976 radica na matriz constitucional da democracia representativa e participativa e vem pôr termo a tentativas de gestão de escola, algumas convertidas em decreto-lei, de matriz pré-constitucional ou mesmo paraconstitucional. Essa matriz democrática pode resumir-se com a alínea b) do art.º 9.º da Constituição: “assegurar a participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais, defender a democracia política e fazer respeitar a legalidade democrática” (uma das três tarefas fundamentais do Estado, hoje uma das oito).

Entretanto, a Constituição da República Portuguesa passou por sete revisões, duas delas bastante amplas e profundas. A primeira dessas duas foi produzida pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro. Mantém a referida matriz democrática, já enunciada, no mesmo artigo 9.º, como uma das cinco tarefas fundamentais do Estado, mas em alínea c) e com a seguinte redação: “defender a democracia política e assegurar a participação organizada do povo na resolução dos problemas nacionais”. A outra, a 7.ª revisão, produzida pela Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de agosto, mantém-na em alínea c), entre as oito tarefas fundamentais do Estado, com a seguinte redação “defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais”. Não me parece haver uma alteração substancial de redação, exceto em duas coisas que denotam um apurado esbatimento ideológico: os constituintes coevos desta revisão não gostam do designativo constitucional de “povo” e parece que não simpatizam com a pretensão organizativa deste mesmo povo. É seguro que a maioria parlamentar de 1982 era parecida com a que produziu a revisão de 2005 (falo do momento dos trabalhos parlamentares, que não o do seu termo nem o da promulgação), mas a degradação ideológica já era bem significativa, e também no partido socialista.

Em todo o caso, a LC n.º 1/82, tem um artigo, o 77.º (participação democrática no ensino), que atravessou as décadas até hoje, onde se lê: “1. os professores e alunos têm o direito de participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei; 2. a lei regula as formas de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de caráter científico na definição da política de ensino”.

A partir daqui desfiou-se poderosa elaboração legislativa que mudou a face das organizações escolares, nem sempre no melhor sentido. Deixando para ulterior momento a análise da legislação da autonomia, administração e gestão de escolas, vamos agora deter-nos no alcance daquele duplo preceito constitucional.

O artigo em análise consagra duas plataformas distintas: o direito de participação na gestão democrática das escolas, a estabelecer na lei ordinária, e a forma legal de participação na definição da política de ensino. A primeira plataforma estabelece o direito de participação dos professores e alunos na gestão democrática das escolas. É suposto que o legislador ordinário deva definir os modos de participação como o faz por disposição constitucional, no caso da segunda plataforma, que não aparece explicitamente como um direito específico, mas como um corolário genérico das ideias fundamentais de democratização, do Estado, da sociedade, da educação e ensino, da cultura e da expressão num setor concreto da democracia participativa, embora indireta (o texto explicita “associações” e instituições”).

Já o n.º 1 eleva à dignidade de direito constitucional o de participação dos professores e alunos (não encontrando a lei ordinária até agora forma de fazer participar os alunos de nível inferior ao ensino secundário, que ficou reduzido aos últimos três anos do sistema forma de ensino não superior) e mobiliza o princípio de democratização da sociedade e do Estado nas suas dimensões cultural e participativa, bem como o princípio da democratização da educação e da cultura, o direito de participação na vida pública e o princípio de autonomia das organizações. O direito consagrado neste n.º 1 estriba-se em termos de legitimidade democrática e de autodeterminação, que assistem a quem deve tomar as decisões atinentes ao contexto escolar, interno ou externo. Por seu turno, as estruturas de direção devem legitimar-se democraticamente de modo a acolher o pluralismo de interesses e opções da comunidade e potenciar a legitimação dos interessados, através da suscitação da sua participação e na promoção de uma organização e funcionamento eficazes e transparentes. Demais, a gestão democrática pressupõe que a gestão compete, no todo ou em parte, a órgãos próprios (democraticamente eleitos pela coletividade, com a participação de professores e alunos) e não exclusivamente ao dono da escola (Estado central, poder local, etc.) ou seus representantes. Também o preceito, que não permite a exclusão não fundamentada de qualquer dos setores nomeados no texto, não estabelece uma relação de paridade nem proíbe a inclusão de outros agentes, o que configura uma grande margem de liberdade de acordo com o contexto e a tipologia de escola a ter em conta.

Pode questionar-se se o preceito constitucional de participação se estende às unidades orgânicas de ensino particular e cooperativo. À luz do exposto, parece que os fundamentos convocados sugerem resposta afirmativa, dado que ninguém (nem nenhuma estrutura) está dispensado do empenho na democratização política, social e cultural; e todo o serviço de educação e ensino, que está revestido de índole pública ou de utilidade pública (ou, ao menos, caráter parapúblico) e a natureza multigrupal de escola impõem alguma autonomização ante os titulares da escola. Todavia, o texto não o estatui, pelo que, no silêncio da lei fundamental, o legislador ordinário não se vê obrigado a agir.

Quanto ao texto do n.º 2, importa acrescentar que persegue os objetivos seguintes: inserir a escola na comunidade, com interligação às demais atividades; alargar o âmbito da participação a grupos não profissionais conexos com escola; garantir o exercício dos direitos coletivos em matéria educativa. Para tanto, além da participação destas coletividades em órgãos sedeados localmente, há que promover a sua intervenção sistemática através da participação nos órgãos estaduais de nível central e da consulta e discussão de projetos ou propostas de lei, bem como de outras formas de decisão política em matéria educativa.

Pelos vistos, é necessário dar uma grande volta na dinâmica da intervenção cívica e da participação política, de que o comum dos cidadãos anda bem alheado. Vamos começar pela educação?!