A “guerra civil” da minha cidade

04-01-2014 16:34

A “guerra civil” da minha cidade

Andei na “guerra civil” da minha cidade, no milénio anterior.

Era uma guerra delicada e respeitadora. Todos os beligerantes se davam bem e eram amigos, como se fossem irmãos. Raramente assumia feições de guerra intestina, como lhe chamavam os romanos: só quando o almoço era de feijoada à Viriato. A guerra dava-se no 14 de Infantaria, que passara por várias localidades, e todos se tratavam por “Viriatos”, em homenagem ao grande pastor-general lusitano com o nome de VIRIATO. Só que nós, naquele tempo, já não fazíamos a guerra nem à pedrada nem à paulada. Isso ficará para o próximo milénio. “Cuja fome ninguém virá que dome” era o nosso lema. Como alternativa, tínhamos outro: “Juro e jurarei – ao rancho e ao pré não faltarei”.

A guerra civil iniciava-se na segunda-feira, às nove e vinte, depois de todos regressarem do fim de semana e de os mártires de serviço sofrerem com a alvorada e tomarem o merecido pequeno-almoço. Aos outros dias, a guerra abria às oito e meia. Meio-dia em ponto, a guerra ia almoçar para, à uma e meia da tarde, retomar o seu estilo. A guerra fechava às cinco da tarde, exceto às sextas-feiras, em que, por ser o dia da mãe, encerrava às quatro, mas nunca sem que o Ex. mo Comandante tivesse passado a revista e tivesse dado a respetiva autorização de fim de semana a quem tivesse requisitado o passaporte.

Sempre que o Ex. mo comandante (ou outro GRANDE) entrasse, toda a guerra se punha em sentido. Era ele que provava, em todos os dias de guerra, o rancho – o qual estava sempre muito bom, no momento da prova. Ao jantar, como a guerra era nula ou muito reduzida, quem passava o certificado de qualidade do rancho era o oficial de dia, que também era oficial de noite. Informações posteriores rezam que se voltou ao antigo regime e também durante o dia útil há oficial de dia que faz a prova do almoço.

Aos sábados, domingos e feriados, bem como de noite não funcionava a guerra – creio que por preguiça ou por avaria. Em todo ocaso, não fosse o inimigo tecê-las, ficavam de serviço os mártires voluntários à força. E, para conforto em tempo de solidão, tinham a presença do padre capelão, do médico e do segundo comandante. Esta guerra minúscula, no entanto, era comandada pelo oficial de dia, assessorado pelo sargento de dia e pelo cabo de dia, que funcionavam preferencialmente de noite. Havia também o oficial de prevenção (não viesse o diabo a urdi-las caprichosamente) e o comandante de piquete, para acudir às emergências e calamidades. Os guerreiros que não participassem nesta guerrilha, tinham duas opções: a instrução noturna, a cargo deles próprios; e a vida artística ou clandestina. Dizem que os serviços forneciam materiais típicos em caixas de fósforos, informação que me não era dado confirmar nem desmentir.

A guerra civil era muito culta: além do trabalho que dava de Biblioteca e de Museu, proporcionava inúmeras visitas de estudo. Eram visitadas as cidades, vilas e aldeias quando falecia algum militar; organizavam-se excursões a algumas serras de Portugal; ia-se a Fátima e a Lourdes; faziam-se raids a Almeida e ao Buçaco; organizavam-se estágios em Coimbra (ao pé de Sua Excelência, o General Comandante de Região Militar, mais tarde extinta) e em Tomar (na Casa de Reclusão); o piquete incorporava-se na procissão do Enterro do Senhor; e todos os dias se ouvia a fanfarra regimental.

Excecionalmente, era guerra a valer, de noite e mesmo fora de quartéis, com direito a ração de combate. Tal acontecia quando inesperadamente o Ex. mo Comandante, depois de ter combinado com os membros do Estado Maior da Unidade, mandava acionar o alarme, para aferir da capacidade da prontidão de guerra na resposta à chamada para outras guerras, as não civis. Funcionava também a guerra de noite (e de dia), quando a Santa Luzia deixava ou quando a população de Penaverde, no concelho de Aguiar da Beira, se decidia a gostar da guerra. Claro, se eventualmente a guerra se sentisse atacada, se pudesse, reagia; se não pudesse, paciência. Fugir, sem autorização do comando, é que não podia ser. Seria um crime essencialmente militar, punível pelo código de justiça militar, como tantos outros. Além disso, os fugitivos seriam apelidados de cagões, cobardes, traidores, filhos espúrios ou homúnculos sem pátria.

De véspera, em todas as guerras, se combinava quem era o inimigo no dia seguinte e quando se trocava de estatuto ou de campo. Não se podia lançar um dilagrama, rebentar um morteiro, fazer troar um canhão ou disparar um tiro, sem autorização do Ex. mo Comandante, que às vezes, se fazia bem esquisito, sobretudo se o ensaio não tivesse sido feito com tempo e cuidado. Não se podia pôr em risco nenhum dos filhos da guerra nem gastar mal o dinheiro dos contribuintes! Ninguém podia passar fome. Estávamos ali para defender a pátria e não para definhar por ela. Os filhos da pátria tinham que andar bem nutridos. Mulheres ali não as havia (ao menos dentro do quartel não havia as tentações que hoje possa haver, dada a sua presença, que podem não conduzir a pecado, entenda-se): estávamos para combater e não para outras coisas...

A guerra tinha atividades especiais, como a apresentação de novos filhos da guerra, o juramento de bandeira dos mesmos, o dia da guerra, as datas em que se recordavam os soldados mortos em combate (generais e brigadeiros, era raro, que eu visse!), a passagem à peluda dos cansados de serem chamados filhos da guerra e a visita de algum grandalhão. Nesses momentos, a guerra caprichava em alinhamento, pompa, discursos, banda de música, bandeiras e armas. Enfastiantes eram as três semanas de duro ensaio, para que tudo saísse nos trinques. A guerra não podia ficar mal vista perante os pais e mães dos filhos da guerra nem perante as diversas autoridades civis, religiosas e militares. Vinha general, bispo, governador civil, jornalistas... Alguns pais ficavam embevecidos, quando o seu filho era o único que, no meio de tantos, marchava com o passo certo.

Mas a guerra usava o telefone, o rádio, os papéis e livros, a bússola, o sol, a orientação das igrejas paroquiais. Pena é que ainda não havia o telemóvel nem o computador estava divulgado, quanto mais os i-pod, i-pad ou i-ped ou tablet. Os carros da guerra andavam sempre com o conta-quilómetros avariado. Os que nunca tinham avaria eram os carros do comando – parecia mal! Usava-se a energia elétrica e rezava-se para que ela não faltasse, não sucedesse que não se soubesse do gerador ou que ele não funcionasse na altura própria.

Armas nunca faltavam. Cada um tinha a sua e não a podia abandonar, se não era duramente punido. Faltavam muitas vezes as munições, mas ninguém levava a mal. Aliás, só se muniam as praças com autorização do comandante de companhia, não fosse algum desmandar-se desnecessariamente. E também havia ao serviço da guerra quem só usasse armas de museu ou armas agrícolas e de cozinha: o padre e os básicos.

A guerra era completa: não falhava o tacho; era proibida a greve e o eventual levantamento de rancho prejudicava a imagem da Unidade; dispunha-se de educação cívica e moral militar; tínhamos enfermaria (com médico, enfermeiros, maqueiros e socorristas), capela (com padre e sacristão – o pessoal ia à missa, confessava-se e comungava); estava a guerra dotada de museu e biblioteca; havia oficinas auto, carpintaria, serralharia, porcaria, vacaria, abastecimento de combustíveis – gastava-se uma fortuna; havia ginásio e campos de jogos, paiol, centro cripto. Nada faltava à guerra.

Quando alguém se portava mal – o que era raro – o Ex. mo Comandante, com base nos processos amigáveis da secção de justiça e disciplina, dava umas “porradas”, quando os capitães não tinham já dado as respetivas “pissadas”. Peço imensa desculpa, mas a guerra civil tinha destes palavrões para significar punições disciplinares ou meras repreensões, respetivamente.

A guerra era muito organizada: tinha pelotas, companhias (cada uma vivia na sua casa, onde havia de tudo, exceto comida), batalhões, secções, secretaria, gabinetes. Até havia uma secção de instrução, para que deixasse de haver analfabetos; uma secção de operações, para que não houvesse preguiçosos; uma secção de logística, para que nada andasse ao deus-dará; e uma secção de informação, para que cada um soubesse em que lei vivia. A guerra só recebia ordens de cima. Ainda não estavam em vigor as leis das ogivas e dos mísseis. Além das armas convencionais, também se usavam as armas biológicas, como colheres, garfos, facas, copos, autoclismos, dentífricos, toalhas, medicamentos. Destes, alguns eram químicos. Por isso, também pudemos falar de guerra química. Já me esquecia de que a secretaria regimental também tinha em armazém muito papel químico. Guerra nuclear havia, quando as ordens vinham do núcleo duro, isto é, o estado maior da Unidade; atómica era quando o inimigo ficava reduzido a pó, ou seja, verdadeiramente atomizado. Todos andavam ao toque de corneta, mas, nas festas da guerra, aparecia um cabo a tocar uma gaitinha metálica, com um som muito agudo, à qual chamavam requinta. O comando geral da guerra estava entregue a um a primeiro comandante coma patente de coronel, assessorado por um tenente-coronel como segundo comandante. A minha guerra desfrutava ainda de um terceiro comandante, que era o cabo que mandava fazer alicerces, armar os aços e misturar a areia com o cimento e com a água. Quando ele se enganava ou não sabia, vinha de Coimbra o capitão engenheiro, que também acertava pouco.

Na guerra, a antiguidade era um posto. Por isso, os “ferrugens”, aqueles que faziam sentido com as pernas abertas, praxavam os “maçaricos” e faziam-nos arranhar, muito sofrendo quem era maçarico.

A guerra era inviolável. Para que o fosse efetivamente, o quartel era guardado permanentemente por um indivíduo que já soubesse o que andava fazer e que triava todas as entradas. A todos fazia vénias, mas perante uns punha a arma ao ombro e a outros apresentava-a – de modo que a guerra civil da minha cidade, além de eficaz, passava sempre por muito simpática e cordata – para gáudio da população da cidade, que dela soberbamente se orgulhava.

Texto do início do 3.º milénio “recalibrado”, à Marques Guedes não necessariamente aumentado, em 2014.01.04