A igualdade perante a lei

06-02-2014 19:41

A igualdade perante a lei

Ontem, 5 de abril, a RTP informação apresentou um “Justiça Cega” especial com base nas declarações proferidas pela Procuradora Geral da República na sua primeira entrevista do seu mandato. Perante a moderadora habitual do programa, os indefetíveis interlocutores – Marinho e Pinto e Rui Rangel – passaram em revista várias temáticas desde a complexidade e morosidade da investigação ao segredo de justiça, bem como à corrupção, questões diplomáticas e sentido da administração da justiça.

Se alguém pode dizer que nada de novo se passou, também é certo que foram ali proferidas asserções curiosas, de entre as quais registo as seguintes: os juízes não se deixam pressionar (gostava de continuar a crer em tal afirmação); a investigação e a justiça não se pautam por critérios de ordem política nem diplomática (mas foram afirmações baseadas em situações de investigação que azedaram as relações com Angola); a presunção de inocência até decisão condenatória transitada em julgado é atributo do juiz e não do Ministério Público; a algumas investigações não interessa o segredo de justiça; que não se combate eficazmente a corrupção pela via judicial, mas pelo lado da cidadania e da vontade política; e o Ministério Público, ante a verificação de opinião pública distorcida, tem o dever de esclarecer e até tranquilizar a opinião pública. E também uma que me deu que pensar: quando se abre investigação sobre um cidadão estrangeiro que depositou uma determinada quantia de dinheiro num banco português, à partida, não deveria haver uma investigação judicial, mas outra noutro âmbito, por exemplo, do Banco de Portugal. E interroguei-me como é que se terá ficado a saber uma coisa dessas, sendo certo que, a menos que se reúnam condições de suspeita de aquisição ilícita, prevalece o sigilo bancário. Quem o levanta? Quem o viola?

Porém, a coisa que me ficou a pairar no ouvido foi que todos são iguais perante a lei – dizia um – mas uns são mais iguais do que outros – acrescentava o outro – pois, as prisões estão repletas de pobres, enquanto os ricos usualmente conseguem eximir-se. E recordei a historieta que refere que a professora do primeiro ciclo professava com toda a convicção que as meninas e os meninos eram todos tratados da mesma maneira porque todos são iguais. Porém, quando uma menina questionou porque é que a senhora com uns tinha umas palavras brandas e os tratava por “-nho” (ou “-inha”), mas a outros ralhava e tratava pelo nome, ela justificou-se: “De facto, todos são iguais, mas alguns são mais iguais”.

Perante isto, dei-me ao desporto de ler a Constituição da República Portuguesa (CRP) e ver o que por lá se estabelece, em conformidade com a Declaração Universal do Direitos Humanos (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” /art.º 1.º).

Ora a nossa CRP, no seu art.º 13.º/1, enuncia: “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” – princípio que deve entender-se como corolário do princípio fundamental “a dignidade da pessoa humana”, consagrado no art.º 1.º, e que se constitui uma das bases em que assenta a soberania da nossa República, a par da “vontade popular”, com vista à “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa/Anotada (Coimbra Editora, 1984:148-149), de que respigo alguns ensinamentos, explicitam que o princípio da igualdade, proclamando a “idêntica ‘validade cívica’ de todos os cidadãos”, disciplina as relações entre os cidadãos e o Estado (ou relações equiparadas) e estabelece a regra da conformação social da posição de cada cidadão perante a coletividade. Por outro lado, deve ser assumido como um princípio “estruturante do Estado de direito democrático”, já que “impõe a igualdade na aplicação do direito”, com base na universalidade da lei e na inibição da diferenciação estribada em condições meramente subjetivas; “garante a igualdade de participação na vida política e de acesso aos cargos públicos e funções políticas”; e postula a eliminação (a minoração – diria eu) das desigualdades de facto para assegurar uma (tendencial) igualdade económica, social e cultural.

Confrontando o preceituado constitucionalmente, que normalmente é transcrito para a maior parte das leis de bases setoriais, com a prática (e, como dizia um instrutor que tive, “praticamente na prática o que interessa é a prática”), o perplexo cidadão comum – que sofre os cortes salariais ou de pensões, o aumento do custo de vida, a dificuldade de acesso ao serviço nacional de saúde (vejam-se as listas de espera, a dificuldade de marcação de consultas e de intervenções cirúrgicas, o congestionamento das urgências, o aumento das taxas moderadoras, a penúria de recursos, o encerramento de unidades de atendimento, o aumento de descontos para os subsistemas) e a dificuldade crescente de acesso à justiça (pesada, cara, morosa e burocratizada) – tende a interrogar-se de forma “atualizadamente governamentalizada” em que é que a Constituição o tem beneficiado ou vai beneficiar.

Depois, ouvimos proclamar os arautos da normalidade: a justiça funciona; o serviço nacional de saúde continua a responder; as falhas são pontuais ou constituem casos isolados.

Afinal, em que República vivemos? Nalguma do estudantado de Coimbra?