A liberdade de um autor religioso
A liberdade de um autor religioso
Na edição on line do Diário de Notícias, de 30 de dezembro, questiona-se se um autor religioso pode ser realmente livre. Tal questionamento tem a ver com a afirmação do teólogo José Tolentino Mendonça, padre e poeta, consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, que, a propósito da publicação, nas últimas semanas, de seus “três livros, da poesia à prosa, passando pelo ensaio, e onde Jesus e Papa Francisco convivem com Jack Kerouac e Bruce Springsteen”, afirmara que escrevia com muita liberdade.
Não percebendo muito bem por que motivo se lança a questão somente sobre a liberdade de um autor religioso e não de outros também, propus-me a reflexão sobre a ideia de liberdade. Paulo de Tarso clama que nós fomos chamados à liberdade e Jean Paul Sarte assegurava que o homem era um projeto e estava condenado à liberdade. A isto hei por bem afirmar que gosto da chamada à liberdade e rejeito a liberdade como marca de condenação.
Se liberdade é a capacidade de optar pelo bem, na sequência da operação de discernimento para que o homem é permanentemente convocado, todo o homem goza de uma liberdade interior de que nada nem ninguém o pode expropriar. “Não há machado que corte a raiz ao pensamento” – Não rezava assim a canção? Já não refiro, agora que o tempo de escravatura acabou na teoria, o contexto paulino de liberdade em contraposição com o estatuto de escravo que alguns homens, de que era exemplo Onésimo que Paulo considerava um filho gerado na prisão para a causa do evangelho, bem como o facto enunciado pelo apóstolo de que nós, incorporados em Cristo, somos livres, enquanto descendentes de Abrão pela condição de nascimento da mulher livre e não da escrava.
É certo que o conceito de liberdade tem muitas aceções – desde a capacidade de escolher e de não escolher, de escolher o bem ou de escolher o mal, de optar entre várias hipóteses – mas o contexto da escrita remete-nos para um determinado sentido da liberdade: a liberdade de opinião e expressão, por força da liberdade de investigação e discurso, em consequência da liberdade de consciência: “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16).
Não está em causa a liberdade legal de fazer tudo o que a lei não proíba e de não fazer nada daquilo a que ela não obrigue. Não está também em jogo a capacidade de voto num programa de governação, num esquema de atuação ou na opção por um ângulo de matéria atinente aos costumes. Está na mesa simplesmente a capacidade de expor, sem qualquer tipo de vigilância ou censura, as ideias, os sentimentos ou a doutrina.
Então, em matéria literária, artística, política ou científica, o escritor religioso é tão livre como qualquer outro. Em matéria de doutrina religiosa também o é, desde que exponha na sequência da investigação e estudo ou mesmo da simples reflexão. Só que não pode arvorar-se no direito de dizer que representa a Igreja ou a agremiação religiosa a que pertence, se acaso não escreve em consonância com ela.
De resto, não pode, como os outros, cair na veleidade de que não erra ou que tem a última palavra nas matérias que versa e, sobretudo, tem de professar a humildade ovidiana “vejo o melhor e aprovo-o, mas sigo o pior” (video meliora proboque ac deteriora sequor – Metamorfoses VII,20) ou o reconhecimento paulino da condição humana “Não faço o bem que desejo, mas pratico o mal que não quero” (Non enim quod volo bonum hoc facio, sed non quod nolo malum hoc ago – Rm 7,19-20). Deve, ao invés, ultrapassar as malhas do instinto e renunciar aos caprichos das paixões menos benéficas e, por outro lado, resistir a toda a tentativa de coação que pretenda que ele desista de seus intentos, faça isto ou aquilo ou o faça desta ou daquela maneira.
Tal é a condição da vida humana: a dialética bem / mal; a articulação liberdade / responsabilidade; o dilema capacidade / limitação.