A posição de “bom aluno”

03-01-2014 23:54

A posição de “bom aluno”

 

O país aproxima-se cada vez mais do momento em que a troika se vai embora e teoricamente os mercados nos abrem as portas do financiamento com ou sem aval das autoridades da zona Euro. Longe vá o agouro de segundo resgate!

Ir-se embora a troika, vai: devem estar fartos de fazer aqueles exercícios de avaliação “positiva” em que nada ou quase nada do previsto se cumpre; e nós saturados com as contradições entre as declarações políticas dos responsáveis do FMI e as operações técnicas dos seus altos funcionários, que baixaram a Lisboa, secundadas por aquelas afirmações Urbi et Orbi sobre o que Portugal deve ou não deve fazer. No entanto, continua a pairar a incerteza sobre a possibilidade de a governação lusa ser ou não capaz de levar o país a bom termo sem contrapartidas pesadas. Gaspar, depois de fazer bem o exercício de ministro do FMI, da EU e do BCE, reconheceu que se enganou, disse as razões, foi-se embora e indicou sucessora agradável à direção alemã.

O governo, que chegou a querer ir além do estabelecido pelo programa de ajustamento e se autoafirmou como bom aluno da Europa, já veio dizer que o programa fora mal desenhado porque em junho de 2011 os políticos não implicados no governo não conheciam o real estado do défice e da dívida, quando as contas foram reveladas meses antes e o ao tempo negociador por parte do PSD saiu das operações negociais tão eufórico como o ainda primeiro-ministro de então: não era necessário o aumento de impostos, nem esmifrar os subsídios de férias e de natal nem mexer nas pensões. Mais tarde, o programa, apesar de reclassificado como mal calibrado, continuava a levar-nos ao termo do período de ajustamento com sucesso.

Ontem, dia 2 de janeiro, o governo da nação, numa operação cosmética a que chamou de “recalibragem” das medidas rejeitadas pelo tribunal Constitucional, procedeu à “calibragem” do programa, não na fonte ou a médio prazo, mas a curto prazo e seletivamente no universo dos portugueses, desde há muito selecionados – idosos e funcionários públicos. Já agora o ato de recalibrar um produto não o melhora: não é pelo facto de, por exemplo, as avelãs passarem duas vezes na calibradora que aumentam de volume ou de peso!

Se bem me lembro – que me não leve a mal o distinto Vitorino Nemésio – o então “certíssimo” e o hoje apagado primeiro-ministro de 1985 a 1995, no pleno exercício das funções presidenciais fazia questão de estatuir Portugal como o bom aluno da União Europeia a que aderira em 12 de junho de 1985, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 1986.

Penso que a adesão de Portugal à Europa não foi nem devia ser apresentada como um ato de matrícula numa escola, em que uns têm a missão de ensinar (professores ou docentes) e outros a necessidade de aprender. Tal confissão de aprendizagem devia ter sido repudiada por uma oposição política que fosse consciente. Não estávamos em maré de dar cartas ou de receber cartas. Era uma atitude de mutualidade em que as relações deveriam ser recíprocas, em pé de igualdade de estados-membros. E a situação degradou-se a ponto de uns terem conseguido o estatuto de superior que dá ordens e os restantes ou obedecem ou são chamados à pedra. No caso de Portugal, fomos obedecendo e sendo chamados à pedra, porque abusámos real ou aparentemente de recursos e de projetos nem sempre sérios; no caso de outros, uns tiveram o castigo que Portugal teve e uns tantos não tiveram qualquer sanção. A nós, adicionalmente, após o tirocínio da navegação pelo reino do betão, coube-nos o rebuçado de termos um português como presidente da Comissão Europeia durante dez anos, com as enormes vantagens (!) que o país sente do Minho aos Açores, quiçá sem passar pelo resto do continente. E de um patamar de relações de igual para igual, na lógica do mutualismo, em que se dispõe de tempo suficiente para conciliação e equilíbrio de contas, a Europa passou a ter, ao arrepio dos tratados, países credores (vg Alemanha, Holanda e Finlândia...) e países devedores (Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha/banca, Chipre e, em certa medida, Itália, França...). Será esta a união europeia ou a da exploração dos países mais débeis pelos mais ricos, já esquecidos dos benefícios que lhes foram historicamente concedidos com a máxima liberalidade?  

De resto, quem é professor, sobretudo de classes mais avançadas, bem sabe que bom aluno não é aquele que “psitaquicamente” decora tudo quanto o mestre expôs, mas sobretudo aquele que, atento ao professor e às suas indicações, progride em regime de autonomia cada vez mais conseguida, e apresenta informação, de quando em quando, problemas e soluções, por vezes, inéditas, embora sujeitas à discussão da classe, com quem estabelece relações de diálogo ativo e cooperação eficaz.