A sucessão apostólica − Essência e cambiantes

12-02-2014 21:30

A sucessão apostólica − Essência e cambiantes

Por sucessão apostólica entende-se a convicção de que os 12 apóstolos projetaram prospetivamente sua autoridade e ministério nos legítimos sucessores, os quais, por sua vez, o fizeram do mesmo modo em relação a outros, alargando-se progressivamente o círculo sucessório e mantendo-se ininterruptamente a cadeia da sucessão in saecula. Os apóstolos fundavam comunidades eclesiais, entregavam-nas ao cuidado pastoral de outrem e, quando elas tinham força para andar por si, partiam para outra, continuando a sua animação por carta e/ou visita. Seria de seguir hoje este exemplo – nem colagem perpétua a uma igreja local nem abandono; não itinerância total, mas solicitude solidária.

Simão Pedro, constituído como a rocha sobre a qual Cristo alicerça a Igreja (super hanc petram – Mt 16,18), é encarregado de “confirmar os irmãos na fé” (cf Lc,22,32) e recebe a especial missão de apascentar os cordeiros e as ovelhas do Senhor (cf Jo 21,15-23). Por isso, a Igreja Católica vê Pedro como o líder dos apóstolos, com a maior autoridade e serviço, recebendo, portanto, os seus sucessores essa maior autoridade apostólica e uma peculiar diaconia. Até à reforma quinhentista, nenhuma das Igrejas locais duvidava dessa autoridade e desse ministério petrino, só que progressivamente os patriarcas das outras igrejas começaram a considerar o bispo de Roma como o detentor do mero primado de honra, um primus inter pares, ao que Roma veio a contrapor o primado dogmático. Não se põe em causa, em termos católicos, a questão do primado de Pedro e legítimos sucessores como sendo de direito divino. A questão que fica em aberto é se o sucessor de Pedro tem de ser mesmo o bispo de Roma, por direito divino, ou se o é com base na tradição que remonta ao momento em que Simão ocupava a cátedra de Roma com aquela desenvoltura ora resoluta ora eventualmente receosa (não revestido com o aparato plasmado nos quadros de Grão Vasco), devendo aceitar-se o facto que a tradição histórica deu por consumado. Ou seja, a coincidência do primado de Pedro e sucessores com a da pessoa do bispo de Roma poderá em tese ser de direito eclesiástico.

Seja como for, os bispos romanos que se seguiram a Pedro eram aceites pela igreja primitiva como a autoridade central entre todas as outras igrejas, a ponto de ficar célebre o aforismo “Roma locuta, causa finita” (Se Roma falou, fica o assunto encerrado). Assim, a sucessão apostólica, combinada com a supremacia de Pedro entre os apóstolos, resulta no bispo romano como sendo a autoridade suprema da Igreja Católica – o papa.

Não se pode, no entanto, absolutizar a ideia do primado sem mais. A colegialidade é um dado neotestamentário marcante e que a Lumen Gentium, constituição dogmática sobre a Igreja, recupera. Os encontros de Cristo a sós com Pedro e as referências singulares a esta personalidade, embora remetam para momentos significativos, não são frequentes. Pelo contrário, usualmente o Mestre dirige-se a todos os discípulos, a quem explica sobretudo as parábolas, e especialmente aos que escolheu para apóstolos e, de entre estes, havia um escol formado pela tríade Pedro, Tiago e João. É notória a ambição dos dois filhos de Zebedeu (Tiago e João), veiculada pela mãe, da conquista de lugares reservados, um à esquerda e outro à direita de Jesus, aquando do advento do Reino, a que Jesus ripostou condenando o carreirismo (aliás hoje frequente) e esclarecendo que entre os discípulos deve imperar a lógica do serviço contra a lógica do poder. De certo modo, não percebo muito bem porque insistia o venerável arcebispo de Braga, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires ao não querer ajoelhar diante dos cardeais, argumentando com o facto de os bispos serem de instituição divina, ao passo que os cardeais são de mera instituição eclesiástica. É caso para pensar se os “cardeais” Pedro, Tiago e João – as testemunhas privilegiadas de momentos íntimos do Messias (considerem-se os episódios do Tabor e do Getsémani) resultam da opção eclesiástica, a menos que se pense que a razoabilidade discursiva do hoje Beato Bartolomeu dos Mártires residia no facto de nem todos os cardeais do Renascimento não possuírem caráter episcopal. Agora me recordo de que foi o papa Beato João XXIII quem decretou que todos os cardeais fossem laureados com a sagração episcopal, aliás conforme tese que vi gravada em Latim num véu de cálice na Universidade de Coimbra.

A reforçar a ideia da colegialidade, é de recordar que o apóstolo Paulo chega a repreender Pedro por ele estar a conduzir os outros de forma errada (Gl 2,11-14) e que o livro dos Atos dos apóstolos reserva papéis proeminentes para Paulo, Barnabé e Tiago, o irmão de Jesus. E, em Roma, a ação de Pedro e a de Paulo têm coincidências temporais, não sendo menos visível a intervenção de Paulo – e ambos lá foram martirizados.

Na bíblia, pode ser considerado como exemplo de sucessão apostólica o facto de, por Judas Iscariotes haver traído Cristo e se suicidar, o seu lugar apostólico ter sido declarado vago pelo apóstolo Pedro, que aponta a necessidade de que alguém o ocupe (Act 1,16-17.21-26). É eleito Matias e, mais tarde, associam progressivamente outros nas funções que lhe foram confiadas, para que continuem o seu ministério. E Paulo, que fora chamado misteriosamente pelo Ressuscitado (cf. Gl 1, 1), confronta o seu Evangelho com o Evangelho dos Doze (cf. ibid. 1, 18), preocupando-se em transmitir o que, por sua vez, recebera (cf. 1 Cor 11, 23; 15, 3-4) e, na distribuição das tarefas e missões, é associado ao colégio apostólico, juntamente com outros, por exemplo Barnabé (cf. Gl 2, 9). Tal como no início da condição de apóstolo há o chamamento e o envio (vocatio et missio) da parte do Cristo ressuscitado, também a sucessiva missão de outros acontecerá na força do Espírito (pareceu-nos nós e ao Espírito Santo – era a clássica fórmula de decisão apostólica), por obra de quem já foi constituído no ministério. Este é o caminho pelo qual continuará o ministério, que, a partir da segunda geração, se chamará ministério episcopal, a que se associa o serviço presbiteral de íntima cooperação com o bispo, sucessor apostólico. Assim, a Igreja Católica acredita e defende que, devido ao sacramento da Ordem, todos os bispos ordenados válida e licitamente (para a validade dos atos por si praticados basta que a ordenação tenha sido válida, mesmo que eventualmente ilícita), em comunhão com o Papa, sucessor de Pedro, são todos sucessores dos apóstolos. Assim, quando morre o Papa ou quando ele renuncia, outro é eleito para o seu cargo, sucedendo-lhe, e, enquanto um bispo válido e legitimamente ordenado (ou consagrado) estiver vivo e em funções, consagra outros bispos e ordena presbíteros e diáconos, dando assim uma continuidade ininterrupta à sucessão apostólica, que é, por isso, a base de toda a hierarquia católica.

Porém, quem produziu uma saborosa catequese sobre a sucessão foi Bento XVI na sua audiência geral de 10 de maio de 2006. Depois de afirmar que, na linha da Tradição da Igreja, enquanto “presença permanente da palavra e da vida de Jesus no seu povo” se exige a reciprocidade palavra e pessoa, sendo a palavra a força de conteúdo a transmitir e a pessoa a testemunha que se sente obrigada a falar, não daquilo que inventa, mas do que viu e ouviu, garante que tal reciprocidade – entre conteúdo da palavra de Deus, a vida do Senhor e a pessoa que lhe dá continuidade – é caraterística da estrutura da Igreja.

Acentuando a condição do bispo como cabeça da Igreja local, à maneira de Jesus – pastor e bispo das nossas almas (cf 2 Ped 2,25) – Bento XVI assegura que a função episcopal evolui, sob a égide do Espírito de Deus, até à formulação inaciana do tríplice patamar (a que corresponde múnus específico) de bispo, presbítero e diácono. Deste modo – garantia o pontífice – a sucessão na função episcopal apresenta-se como continuidade do ministério apostólico, penhor da perseverança na Tradição apostólica, palavra e vida, que o Senhor confiou à Igreja, num vínculo entre o colégio episcopal e a comunidade originária dos Apóstolos compreendido na linha da continuidade histórica. Mas, para lá desta linha, é necessário também perceber o seu sentido espiritual, “porque a sucessão apostólica no ministério é considerada como lugar privilegiado da ação e da transmissão do Espírito Santo”.

Segundo os testemunhos da Igreja antiga, que o alemão pastor evoca, “a apostolicidade da comunhão eclesial consiste na fidelidade ao ensinamento e à prática dos Apóstolos, através dos quais é garantido o vínculo histórico e espiritual da Igreja com Cristo”. Mais: “o que os Apóstolos representam no relacionamento entre o Senhor Jesus e a Igreja das origens, representa-o analogamente a sucessão ministerial no relacionamento entre a Igreja das origens e a Igreja atual”. E não se trata de “uma simples concatenação material; é o instrumento histórico do qual se serve o Espírito para tornar presente o Senhor Jesus, Chefe do seu povo, através de quantos são ordenados para o ministério através da imposição das mãos e da oração dos bispos”.

Finalmente, é de salientar a dupla valorização da sucessão. Em primeiro lugar, vem a apreciação retrospetiva, de que, no geral, todos cuidam. É fácil um bispo surpreender-nos com a referência elogiosa aos antecessores. Os documentos pontifícios estão pejados de recorrentes referências a palavras, gestos e ações dos predecessores, muitas vezes citados pelo próprio nome, não sendo suficiente a menção genérica dos predecessores. Por vezes, a sucessão defronta-se com a responsabilidade sobre uma pesada herança, como foi o caso de Paulo VI, perante a herança projetiva do concílio Vaticano II inaugurado pelo predecessor. E nos grandes momentos lá é invocada a “autoridade apostólica” que fora transmitida e a responsabilidade da guarda do fidei depositum. Porém, não é menos relevante a apreciação e a valorização prospetiva da sucessão (o bispo na ordenação presbiteral solicita a promessa de obediência do ordinando a si e aos seus sucessores!), de que Bento XVI dá exemplar testemunho. Não se limita a referir que o sucessor fará o que entender ou em não lhe criar dificuldades (aqui, remete-se à clausura do silêncio, que prepara com tempo), mas, sem o mostrar, desprende-se voluntariamente das iniciativas encetadas que lhe dariam mais visibilidade (encerramento do Ano da Fé, Jornada Mundial da Juventude, conclusão de encíclica sobre a fé e exortação apostólica na sequência do último sínodo dos bispos), sem nada apressar nem deixar cair e tudo disponibilizando. Ainda entre o anúncio da renúncia e a sua efetivação produziu encontros múltiplos de doutrinação, parénese e humanismo e publicou um documento motu próprio facilitador do conclave, bem como prometeu explicitamente a oração e a obediência e reverência incondicionais ao futuro papa. A sucessão não tem necessariamente de ser precipitada, pode ser, como se viu, solidária, bem preparada e sem designar delfim!