A transumância do arco da governação

10-01-2014 19:32

A transumância do arco da governação

Penso dever atribuir esta denominação ao fenómeno costumeiro daquilo a que nos habituámos, com Mário Soares, a designar por alternância democrática, ou seja, o facto de termos uma força partidária simples ou em coligação no governo (Para Cavaco Silva, “no poder”) e outra na oposição. E tais forças alternam-se no governo, usualmente sem que a Casa da Democracia lance mão eficaz dos petardos constitucionais, designadamente através da rejeição do programa de governo, da aprovação de moção de censura ou da reprovação de moção de confiança. Outras formações partidárias, ao menos em Portugal, nunca chegaram à governação, mas têm o papel fundamental de suscitar o debate e “agitar a malta” (como manda a canção), mobilizando a dureza vocabular, a impertinência da iniciativa legislativa e fiscalizadora, tantas vezes sem êxito, e o agendamento potestativo.

Não gosto do designativo “alternância de poder”, já que o poder político, se for levado a sério, reside no povo e, constitucionalmente, distribui-se no regime de separação e interdependência pelo Parlamento (poder legislativo e fiscalizador, que deveria ser tido como bem importante – CRP, art.os 161.º-165.º), pelo Governo (poder executivo e administrativo, tantas vezes a sobrepor-se ao poder legislativo – CRP, art.os 197.º-201.º) e pelos tribunais (poder judicial – CRP, art.os 211.º-214.º e 223.º – que os magistrados não assumem como poder político, quando dizem que a culpa é dos “políticos”). E temos o poder moderador, simbólico e de representação atribuído ao Presidente da República (CRP, art.os 133.º-135.º), que, se efetivamente bem exercido, não é despiciendo, sobretudo em tempo de crise institucional. São poderes ou modalidades de “poder” que resultam do povo, por via da eleição direta ou por via da nomeação por parte de quem adquire a prerrogativa de nomear. Mesmo o poder judicial, cujos titulares não são eleitos pelo povo (e, nos casos em que o provimento resulta de eleição, o universo eleitoral é deveras restrito) é exercido em nome do povo (CRP, art.º 202.º/1). E relevamos ainda o poder regional autónomo e o poder local, com órgãos próprios, a que a CRP (Constituição da República Portuguesa) dedica os seus títulos VII e VIII, respetivamente.

Bem gostaria de chamar alternância democrática ao epifenómeno da posição de força partidária ora na governação, ora na oposição. Porém, alternância democrática sê-lo-ia se estribada em efetiva alternativa de governação e não em mera alternativa de estilo, com os habituais remoques à governança anterior e as dramáticas amnésias quanto a solenes tiradas da oposição de antanho ou das promessas firmemente propaladas em anterior campanha eleitoral, bem como com os férvidos ataques das demais forças partidárias.

Chamarei, sem qualquer rebuço, transumância a este balancé democrático. Transumância consiste na deslocação do rebanho com suas necessidades alimentares e apetites climáticos de terra onde sazonalmente não podem satisfazer-se para terra ora propícia à sua plena satisfação, mas com a esperança certa de que o regresso à anterior posição está bem gizado no horizonte. O vocábulo resulta da acoplação do prefixo “trans” (além de) com o nome latino “humus” (terra, solo), que persiste no léxico português, quer como palavra-base, com igual grafia, como nas derivadas, por exemplo, “inumação” (enterrar), “exumação” (desenterrar) – e outras já presentes no latim, como “humidade”, “humano”, “humanidade”, etc.. Ora a situação de força partidária na oposição é de si transitória e o húmus da ânsia governativa é alimentado quotidianamente, bem como a promessa de obtenção de uns lugarzinhos de conforto para as ovelhas mais egrégias do respetivo rebanho e até o generoso arroteamento de algum terreno adequado à merecida ocupação dos atuais governantes que melhor encaixem nos interesses de bloco central, perdão, de economia gregária. De modo semelhante, o governo é constituído por homens e mulheres que não são ministros ou secretários de estado (como na França ou na Igreja Católica, cujos titulares não perdem o título de ministro, secretário de estado, presidente, cardeal, arcebispo, bispo, monsenhor, cónego e, desde 28 de fevereiro de 2013, papa!), mas estão precariamente naquelas funções (já lá vai o tempo de Salazar, quiçá o de Cavaco!). Depois, abrem-se para essa gente as portas de grandes empresas, da Europa, do Banco de Portugal, da EDP e, porque não, de algum instituto universitário, em Paris.

A título de exemplo, recordo alguns dados que a memória não permite olvidar.

Guterres acusava o antecessor do exercício da política o betão; mas construiu mais autoestradas e lançou as famosas SCUT (depois atreladas a Sócrates). Durão Barroso e o seu Ministério das Finanças, alegadamente porque o país estava de tanga, congelaram salários de funcionários públicos acima dos mil euros (gente rica!); as pensões de aposentação daqueles que não tivessem perfeito a idade de 60 aninhos, levaram um corte de 4,5% por cada ano que faltasse para aquele patamar etário; a oposição humidamente patriótica reagiu e o Tribunal Constitucional (TC), num primeiro momento não aceitou a conformidade constitucional desta medida, porque não tinham sido ouvidos os representantes dos interessados e porque fora decidida em sede orçamental. Por esta lógica, a suspensão da possibilidade do pedido de reforma antecipada da parte dos trabalhadores por conta de outrem no setor privado, cozinhada no segredo dos deuses (lembram-se?), seria inconstitucional. E a maioria dos cortes nos vencimentos da função pública ou dos aposentados e reformados tem sido produzida, sem óbice, em sede orçamental. E até agora foram consideradas inconstitucionais: a supressão dos subsídios de natal e de férias (em sede orçamental); e a convergência das pensões do setores público e privado (não em sede orçamental)!

Por seu turno, um governo socrático alterou profundamente, mas de forma autónoma, o estatuto de aposentação, em dois momentos (2005 e 2007), com aumento da idade de aposentação para 65 anos, alteração do cálculo da pensão e forte penalização da sua aposentação. Sem contestação significativa, tal reforma foi salva pela configuração do regime de transição que o atual governo encurtou, em sede orçamental. Patrioticamente, o governo – que o Presidente do CES (Conselho Económico Social) assegura ter procedido a “pouco ajustamento com muita dor” ou a “uma terapia inexperiente com uma gestão pouco competente” – preparou uma CES (contribuição extraordinária de solidariedade), que agora em operação de “recalibragem” quer alargar a um universo maior e que passou no TC por assumir um caráter transitório cuja linha do horizonte ninguém vislumbra. O mesmo conseguira Sócrates com a redução espetacular dos vencimentos dos funcionários do Estado, que o atual governo quer reeditar com dose reforçada, e com o congelamento das carreiras e proibição de contagem do tempo de serviço para efeitos de progressão (por duas vezes), que democraticamente o orçamento do estado vem mantendo ironicamente até que a economia exiba francos sinais de recuperação. Tal modalidade de transitoriedade passará no Tribunal Constitucional? A ver vamos.

Só mais um exemplo: Quem não recorda a polémica gerada à volta da avaliação de desempenho dos docentes e da prova de avaliação de capacidades e conhecimentos dos professores contratados (PACC)? A Milu Rodrigues teve de recuar várias vezes, porque a oposição partidária em bloco se aliara à contestação, apesar de o PR lhe ter dado cobertura quer na fase mais dura quer nas fases mais suavizadas. Não podemos silenciar a prolação monstruosa de que os professores não eram avaliados há mais de 30 anos! A Isabelinha Vilar viu o seu projeto de avaliação negociado com as estruturas sindicais rejeitado por uma parlamentar maioria, de que muitos dos seus elementos tinham endeusado o fervor reformista da antecessora. E, perante o acórdão negativo do TC à decisão da maioria, a ministra concluiu desassombradamente pela vitória do sistema educativo. Por sua vez, a PACC foi vertida para o estatuto da carreira docente, mas quase ninguém deu por ela. De repente, Crato consegue em tempo record montar um simulacro de avaliação de desempenho dos docentes, com uma cosmética diferente; faz “gato-sapato” das metas de aprendizagem anteriormente elaboradas; esconjura o ensino com base nas competências; promove a elaboração de metas curriculares, em que privilegia os objetivos e os conteúdos; e manda elaborar, sem avaliação séria dos anteriores, novos programas em disciplinas fundamentais como Português e Matemática. Quanto à PACC, o espetáculo legislativo, administrativo e judicial impõe se à consideração de todos e será um bom candidato a um estudo de caso desde que algum académico lhe queira pegar.

Voltando à problemática da transumância, é de concluir que, em tempo de seca severa, só por milagre é que o rebanho consegue um mínimo sustentável de alimentação e de sobrevivência climatérica. Ao invés, a transumância política consegue a maravilha taumatúrgica da subsistência do rebanho e do contrarrebanho à custa: da intoxicação da opinião pública, pondo uns contra outros; sobrecarregando a classe média com cortes de salários e com impostos ou equivalentes; simulando mexer com os grandes; apoucando os pensionistas, que não fazem greve; e driblando os acórdãos do Tribunal Constitucional com a formal reiteração do acatamento de suas soberanas decisões e com o estudo temporão de medidas de efeito equivalente, mas com maior onerosidade sobre os mesmos de sempre. Apre!