Abdicação - poema de Fernando Pessoa

29-11-2013 23:47

ABDICAÇÃO

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa – eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

 

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

 

Fernando Pessoa, 1913

 

Comentário

 

O soneto “abdicação” é um soneto particular na obra de Pessoa, pois temos um relato exato de como foi escrito e em que estado de espírito Pessoa se encontrava quando o escreveu.  

Numa carta escrita a Mário Beirão, em fevereiro de 1913, Pessoa descreve como, chegando a casa, sentiu a proximidade de uma tempestade – ele tinha um medo pavoroso dos relâmpagos, não tanto dos trovões – e isso colocou-o num estranho estado de ansiedade, em que, paradoxalmente, lhe deu para criar um soneto de calma inusitada.
Veja-se, desde já, como é curioso o que Pessoa diz, sem se aperceber. Embora ele na mesma carta fale de como o " fenómeno curioso do desdobramento é a coisa que habitualmente tenho", mas lhe escapa que esse desdobramento lhe permitia fugir ao seu medo – neste caso, um medo concreto e mundano, o medo das trovoadas.  
 Não chegava ao génio que era Pessoa a reza simples a Santa Bárbara. Teve, neste caso, de se refugiar na musa poética. Calíope substitui-se, pagã, ao símbolo religioso cristão e assim se criou mais um momento de solene beleza na língua portuguesa.  

"Abdicação" é também um poema que aborda um tema querido a Pessoa – a noite e a solidão. Aqui, a noite é simbólica de um estado de solidão que Pessoa bem conhecia – era a sua realidade quotidiana. Tão triste e simultaneamente calmo é o poema... isto porque a tristeza que Pessoa sente, é uma tristeza de abandono, de quem deixa de resistir: eis o porquê do título do poema “abdicação”. Quem abdica, fá-lo por desistir voluntariamente, não por ser forçado. Pessoa abdica da vida para que a noite / morte o aceite – para ser plenamente nada na noite / morte, já que foi nada no dia / vida. Pelo menos, que seja plenamente nada – e o que há mais pleno de nada do que a noite, enquanto imagem e antecâmara da morte?

O poema está todo envolto num desejo do poeta: “morrer”. Esta ideia revela-se na apóstrofe inicial “Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho…” e na seleção de vocábulos e expressões de conotação negativista, como “abandonei” (os seus “sonhos e cansaços”), “pedaços” (os seus pertences destruídos), “fria escadaria” (sentimento de frio que provém da pedra das escadas, que simboliza, por sua vez, o mesmo frio e a mesma pedra das lápides tumulares, dos cemitérios), “noite” (momento das 24 horas que simboliza a escuridão e a morte) e “morrer”.

E o que faz de Pessoa um ser tão genial? Decide metaforizar a sua vida na de um rei (“Eu sou um rei”) de histórias e aventuras populares, caraterizada pelos objetos cuja representação vocabular pertence ao campo lexical da realeza (pelo menos no imaginário popular) – “espada”, “cetro”, “coroa”, “cota de malha”, “esporas” – e que ele abandonou por querer despedir-se da vida.

Podemos, então, dividir o poema em três grandes partes lógicas: a primeira, correspondente ao primeiro verso e a metade do segundo da primeira quadra (“Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho…”), na qual ele pede a sua morte; a segunda, que abrange os restantes versos da primeira estrofe e os da 2.ª e 3.ª, em que o poeta apresenta o abandono dos seus sonhos, cansaços e tudo o que de terreno lhe pertencia; e, finalmente, a terceira parte, que abrange o segundo terceto ou última estrofe, na qual ele exprime a síntese de todas as suas atitudes de abandono, com a sequência textual totalizante “Despi toda a realeza” de exterior e de interior (“corpo e alma”) e com a comparação tal “Como a paisagem ao morrer do dia”, “regressei à noite antiga e calma” (antes de ser rei, antes de viver, antes de nascer).

É de notar que o vocábulo “realeza” – e não reino ou monarquia – é um nome abstrato, mas, além de significar um estatuto de vida visível e superior, comporta todos os objetos atrás citados ou, metaforicamente, todos os objetos que o tornavam “real” / vivo.

E, por fim, veja-se que o título “abdicação” implica abandono consciente, provavelmente da sua vida (se atentarmos no penúltimo verso – “regressei à noite antiga e calma”).