Banalização das instituições

29-01-2014 23:10

Banalização das instituições

O tema desta reflexão surgiu-me proximamente da leitura de artigo de Humberto Oliveira em O diabo desta semana. O articulista tece algumas considerações sobre o decurso da cerimónia da condecoração de Cristiano Ronaldo pelo Presidente da República no Palácio de Belém. Não questionando o mérito que justifica, a seu ver, a atribuição de tal honorificência, faz o levantamento do que inscreve na ótica da propaganda ou da busca da popularidade fácil.

Ora, se vem sendo usual o clamor pela falta de prestígio das instituições e do pouco interesse que despertam na opinião pública e, em especial nas camadas jovens, haveria que atentar nas suas causas e intentar a reposição da sua dignidade institucional e concitar o agrado dos cidadãos.

Todos concordam que uma das causas será o acesso aos escalões do poder político e da administração pública por parte de gente impreparada politicamente e, muitas vezes, sem a bastante qualificação académica ou experiência profissional. Outro fator não estranho à desmotivação crescente pela coisa pública será o persistente incumprimento das promessas feitas perante o eleitorado ou mesmo o agravamento das condições de vida do povo a seguir à posse dos novos detentores do poder. Também não será despiciendo o facto do aumento das condições de vida dos anteriores titulares dos cargos públicos, a melhoria de condições económicas e logísticas do desempenho dos governantes e deputados coevo ao respetivo período de exercício e as perspetivas de abertura de futura prateleira dourada aos presentes titulares dos poderes, nas instâncias internacionais, mormente europeias, ou nas grandes empresas que “dialogam” eficientemente com o Estado.

Porém, o referido e apreciado articulista põe o dedo em outra ferida, que eu gostaria de chamar ”arrapazamento do Estado”. Com a busca da popularidade fácil, os deputados, os governantes e até o supremo magistrado da nação expõem-se em todo o lado, falam de qualquer modo, sujeitando-se à necessidade de, a seguir, virem a explicar o inexplicável ou a desdizer o indesdizível. Um ex-presidente, visto a assistir a um jogo de futebol, chegou a alegar a sua justificada atitude com o regresso a esta cidadania mais banal (a cidadania, sendo o estatuto do homem com direitos e deveres, na liberdade de intervir, não pode ser banal nem banalizar-se). Um ex-secretário de Estado da área da educação, ao tempo que desempenhava a respetiva função, não sabia dirigir-se ao Parlamento. A Presidente da Assembleia da República (e os seus substitutos eventuais na mesa seguem-lhe o exemplo) esganiça a voz quando tem necessidade de mandar evacuar as galerias e dá asas ao seu profundo nervosismo; achou normal a escalada da escadaria exterior da Assembleia durante a manifestação das forças de segurança, porque não entraram no edifício e desceram logo que para tal receberam ordens; casou as dificuldades financeiras com a atribuição das honorificências panteónicas ao rei do futebol; e, com grande gabarito escolástico, terá admitido que as manifestações no exterior do palácio parlamentar são atos democráticos, ao passo que, se ocorrerem nas galerias, serão crime. Depois, como se podem levar a sério as instituições de referência para o cidadão?

Dispenso-me de confessar que acompanho Humberto Oliveira nas críticas que profere em torno das quebras de protocolo na aludida cerimónia em Belém, de que se destacam as que incidem sobre: o vestuário da assessora de desporto e juventude, idóneo para uma festa social, que não para um ato protocolar; a alteração da sequência dos atos da cerimónia (que deveria ter sido: primeiro, a leitura do auto; a seguir, a assinatura; e, somente depois, os discursos); a solicitação gestual da primeira-dama, durante a cerimónia, a que o condecorado tivesse uma pequena atenção para com os ilustres netinhos; a entrada na sala do condecorando a par do condecorante (Viva a igualdade! O indivíduo, por maior que seja o mérito que lhe assiste, nunca é igualável ao povo representado e simbolizado pelo Presidente.); e o facto de o chefe da Casa Civil vir buscar ao exterior o homenageado, postura que nem em relação a chefes de Estado se assume.

Também passo em silêncio as belas tiradas do Presidente sobre as hipotéticas escutas a Belém eventualmente ordenadas por São Bento; os públicos trenos derramados sobre a penúria das suas pensões de reforma e aposentação, bem como as da consorte; o braço de ferro com o governo socrático de apoio parlamentar maioritário sobre o estatuto autonómico dos Açores; o discurso de posse presidencial a 9 de março de 2011; e a tergiversação entre o respeito pelo nervosismo dos mercados e o girafismo ante a Europa e a economia mundial, a espiral recessiva e o horizonte luminoso do período pós-troika, ou a demarcação frente à governança e a sua colagem à maioria.

Em abono da minha congruência de pensamento com o desígnio da Administração Pública, apraz-me referir que sempre vociferei contra o facto de, nas primeiras sessões do Parlamento dos Jovens, os rapazes e as raparigas ocuparem o lugar dos deputados no hemiciclo. Achava eu que esses esquemas de discussão, tão positivos que eram e são, não necessitavam dessa forma artificiosa de expressão. É óbvio que concordei quando essas sessões passaram a decorrer na Sala do Senado ou noutro espaço condigno que não o simbólico, o do Plenário.

Mas a crítica ao desprestígio institucional não se fica por Presidente, Parlamento ou Governo. Os operadores da Justiça não se ficam atrás. Exemplifico somente com umas tantas coisas: para o conserto da rede de fuga do segredo de justiça cada vez mais esburacada, o remédio consistente da busca nas redações dos jornais; ou para a justiça-espetáculo que se pratica morosa, praticamente sem efeitos, em torno de casos ditos mediáticos – vg Casa Pia, Apito Dourado, Free Port, Face Oculta, BPN – a adaptação da Justiça aos novos tempos; e ainda, para a moralização da vida pública a desjudicialização, o encerramento de tribunais, as reformas dos códigos, etc. (E, se quisermos ocupar o nosso tempo em coisas úteis, ficaremos verdadeiramente edificados com a leitura de suficientes comentários bizarros em alguns acórdãos de tribunais)

Enfim, se o país precisa, como de pão para a boca e de ar para os pulmões, de produtividade e competitividade, as instituições, maxime as do Estado e seus titulares têm imperiosamente de conquistar a credibilidade, inspirar confiança e tornar apetecível o zelo pela res publica.