Braga de Macedo e o Tribunal Constitucional

18-12-2013 23:00

 

 

Este que foi ministro das finanças no terceiro governo, de democracia consolidada, presidido por Cavaco Silva profere verdadeiros disparates contra o tribunal constitucional, um órgão de soberania criado pela lei constitucional n.º 1/82, resultante da primeira revisão da constituição fruto de pacto entre o PS e o PSD e que teve os votos favoráveis do CDS. Tal revisão foi o primeiro beliscão no desígnio constitucional de projeto socialista irreversível para o país saído da revolução abrilina. Se em 1978 Mário Soares metera o socialismo na gaveta para salvar a democracia, agora o poder civil político arrebata em definitivo a soberania ao poder militar político. Por outras palavras, o regime libertou-se da tutela do Conselho da Revolução, que legislava em matéria militar, e procedia à fiscalização da constitucionalidade das leis com a ajuda técnica da comissão constitucional.

Ora, afirmar com Braga de Macedo que “os 13 juízes do Tribunal Constitucional não são ajuizados, querem preservar a sociedade sem classes e a economia nacionalizada prescritas pela Constituição aprovada em 1976, têm uma visão demasiado legalista da sua função e que deviam dar mais importância ao memorando assinado com a troika que à lei fundamental” constituem todo o trabalho de reconfiguração constitucional elaborado em 1982 e repetido e ampliado em revisões sucessivas de que a única réstia socialista irreversível é o preâmbulo, que os especialistas justificam com a memória do contexto histórico-revolucionário em que se planteou o regime democrático, mandando às urtigas o facto de os juízes emanarem do parlamento por eleição por maioria qualificada de 10 deles e por cooptação dos restantes ou de todos terem de ostentar sólida formação jurídica e experiência política e a maior parte dever estar integrada nas carreiras da magistratura.

Mas o sábio economista constitucionalista vai ao ponto de zurzir conta o atual Presidente da República, quando perora que “a maioria das decisões do TC sobre medidas austeritárias surgem na sequência de pedidos de declaração de inconstitucionalidade feitos pelo Presidente da República, e em alguns casos (em relação à contribuição extraordinária de solidariedade, por exemplo), contrariam esses pedidos do PR”. E infere que o PR suplanta os juízes no anacronismo e na falta de sapiência e juízo que lhes atribui quando afirma “estes 13 juízes não são homens ajuizados, porque também há mulheres e também talvez por outras razões”.

À mistura com o machismo confesso, delicia os auditórios a que tem acesso com afirmações verdadeiramente lapidares que são congruentes com o desmiolo daquele governante que em debate orçamental para 1994 ri a bandeiras despregadas das intervenções dos deputados da maioria e da oposição, porque todos seriam ignorantes e ele o único esperto, pois era assessorado pelo agora inefável Vítor Gaspar. Das tais afirmações de antologia, registam-se as seguintes expressões: "a ilógica do sistema constitucional português" (1982); "a má constituição fiscal" (2003); e “o atraso singular da ‘mãe de todas as revisões constitucionais’" em 1989”. Parece levar a mal que o TC tenha uma vertente política. Que hipocrisia! Por vezes, ouve-se dizer que a culpa é dos políticos, porque a justiça até funciona. Discordo. Os tribunais não são espaço de querela político-partidária, mas são órgãos do poder, órgãos de soberania (poder político ao mais alto nível). É que a fonte de legitimidade não é somente a eleição; a nomeação, se condicente com as regras ditadas pelo poder emergente do povo, também o é. Os juízes não podem mandar, mas os economistas da grande praça podem?

Já não nos bastava a ditadura das finanças desde 1928. Teríamos de suportar a ditadura dos mercados, do juízo das agências de rating, do luteranismo punitivo de Merkel, do massajamento dos números e do gozo dos percentis.

E é o que temos na lógica de que é preciso silenciar a constituição calando os seus intérpretes legítimos para que se imponha a ditadura da finança, hoje sob a capa do memorando de entendimento, amanhã provavelmente com a exaltação da pobreza como caminho altruísta para a salvação eterna dos mais ricos. E, de futuro, em vez da “salus reipublicae lex suprema esto”, gritar-se-á “salus divitiarum suprema lex esto”.

Por isso, à luz de outra narrativa, contra os glutões, marchar, marchar!