Coisas do arco-da-velha

08-02-2014 01:01

Coisas do arco-da-velha

No passado dia 6, no chamado Bairro Vermelho, em Amesterdão, na Holanda, foi inaugurado o primeiro museu da prostituição, que abre do meio-dia à meia-noite e cuja entrada, facultada até às crianças (será em nome dos superiores interesses da criança?!), custa 7,50 euros.

Tal facto aberrante é notícia se considerado em si mesmo, mas também pelos comentários vindos a público da parte dos seus promotores, bem como pelas iniciativas conexas com o putativo espaço museológico. E a imprensa salienta a novidade – pasme-se! – de os visitantes poderem “entrar num bordel sem terem de se despir”. E eu fico a pensar se, quando visito um museu tradicional de outras valências, a contrario sou obrigado a munir-me de ferramentas e adereços de escultura, peças epigráficas, ícones, pintura, cerâmica, metais, paramentaria, material elétrico ou telefónico, numismática, medalhística, esfragística, etc. Ou, em vez de um museu, estes industriais e comerciantes de corpos humanos, não estarão a criar antes uma oficina de caraterísticas bem peculiares? Talvez os mentores de tal iniciativa holandesa queiram, sim, introduzir os visitantes no submundo que, de outro modo, eles teriam dificuldade em penetrar, fosse por falta de dinheiro, de interesse ou de idade adequada.

Porém, o que mais brada aos costumes não será a apologia da prostituição (que o é efetivamente!), mas os epítetos com que este modo de ocupação, legalizado na Holanda desde o ano 2000, é referenciado a propósito da efeméride – negócio, comércio, indústria, atividade, trabalho…

Querem os iluminados convencer os incautos de que o Red Light Secrets, revelador dos segredos da prostituição, sito nas instalações de antigo bordel no famoso Red Light District, conseguirá «eliminar alguns preconceitos» em relação à mais antiga profissão do mundo. Mas que preconceitos? Não sabe já toda a gente que esta atividade calcorreou um pouco os mais diversos lugares espaciais e temporais de que há memória, quer sendo objeto de crítica e condenação moral e social (e eventualmente criminalizada), quer sendo tolerada ou mesmo legalizada? Não é verdade que a veterotestamentária prostituta Raab é uma das muito poucas mulheres que integram a linha genealógica de Cristo (cf Mt 1,5)? E não são famosos os desmandos sexuais e pantagruélicos dos romanos, sobretudo nos períodos da decadência?

Os curiosos – também denominados visitantes, turistas e clientes especiais – encontrarão diversas atrações, como um quarto dedicado ao sadomasoquismo e uma divisão onde se podem sentar em frente à janela, à vista dos potenciais clientes, para saberem como se sentem as «meninas» quando estão a “trabalhar”. Meninas, trabalho, profissão, clientela – tudo eufemismos para caraterizar um vício moral e social que em nada contribui para a dignificação da mulher (ou alternativo masculino) nem para a do dito cliente, e que constituem um meio de evasão para a falta de condições económicas ou familiares, uma falaciosa forma de compensação caprichosa da irrealização conjugal ou do gasto perdulário de dinheiro. Acrescente-se a isto a criação e engorda de redes de interesses a custo da escravização viciosa dos afetos e da degradação corporal. Ou não é verdade que Melcher de Wind argumenta que as crianças, sobretudo as raparigas, poderão ficar a conhecer melhor alguns «truques» que os homens usam para as trazer para a prostituição?

E Ilonka Stakelborough, fundadora da “Fundação Geisha” que se ocupa dos direitos e liberdades do setor, não declarou à agência EFE que o museu daquele bairro turístico holandês onde trabalham 900 prostitutas, muitas delas em montras de estabelecimentos comerciais, quer dar uma visão do mercado sexual, sem “romantismo”? Até acrescentou que o empreendimento, que partiu de uma iniciativa privada para a “normalização” da profissão, não esquece a denúncia do trabalho forçado por proxenetas e redes, sobretudo “provenientes dos Balcãs”!

Penso que também se torna imperioso reparar nesta hipócrita sugestão de resposta a uma farisaica postura perante o falso e cómodo pudor moral e social: “Segundo Melcher de Wind, da organização do museu, a iniciativa é para aqueles que querem saber mais sobre como funciona este negócio, sem terem que travar contacto com uma profissional do sexo”. É-lhes ainda facultado o conhecimento da moda ligada à prostituição ao longo das décadas, bem como o das réplicas das famosas montras onde as mulheres se exibem, uma prática que, no Bairro Vermelho, começou em finais do século XIX.

As prostitutas do mencionado departamento topográfico, segundo as fontes do próprio museu, ligado à Fundação Geisha, que aborda também as questões da integração e da autodefesa das prostitutas, são mulheres entre os 21 e os 55 anos, jovens que não conseguem pagar os estudos ou mães solteiras, mas cerca de 70 por cento têm uma relação estável. Trabalham em média durante cinco anos, mas muitas acabam por não se retirar porque se acostumam a um nível de vida com rendimentos superiores. Porém, muitas raparigas e mulheres – estudantes, por exemplo – não querem inscrever-se como profissionais naquele mercado de trabalho porque fica registado no seu currículo, pelo que trabalham em mister semelhante nas próprias casas (na Holanda de Maastricht, da União Europeia!).

E podem vir dizer-nos que é uma generosa oportunidade de criação de postos de emprego direto e fomento do emprego indireto, pois, de acordo com o jornal Sidney Morning Herald, o museu-oficina exibe um curto vídeo que menciona muitas das pessoas que também trabalham no ramo, incluindo funcionários de limpeza, de manutenção do espaço, de lavagem de roupa, entre outros.

A imprensa faz, a este propósito, uma retrospetiva da prostituição na Holanda, recordando que ela se tornou legal na Holanda em 2000 e, recentemente, a idade mínima para as mulheres trabalharem neste negócio passou dos 18 para os 21 anos. Contudo, desde o século XVI que as autoridades «fechavam os olhos» aos marinheiros que vinham a terra à procura de diversão noturna, numa altura de grande prosperidade da cidade com o comércio de especiarias e outros bens. Mais tarde, na altura das guerras Napoleónicas, as prostitutas da cidade começaram a fazer exames médicos regulares obrigatórios, para combater a propagação de doenças entre os militares.

Se passarmos os olhos pelo mundo da antiguidade, registaremos informações curiosas. Na Antiguidade Oriental, fala-se da prática da prostituição com fins rituais. O geógrafo grego Strabo, por exemplo, relatou que os assírios ofereciam as suas filhas ainda muito jovens, com aproximadamente 12 anos de idade, para a prostituição ritual ou prostituição sagrada. Heródoto, considerado o pai da História, descreveu de forma repugnante a prostituição babilónica realizada no interior do templo da deusa Ishtar. Na antiga Grécia, a prática da prostituição era tida como uma componente da vida quotidiana. Nas suas cidades mais importantes, nomeadamente nas portuárias, esta atividade económica de relevo, não clandestina, empregava uma parte não negligenciável da população: mulheres de todas as idades (que detinham entre si uma hierarquia, mas que possuíam dotes artísticos ou circulavam livremente entre a elite) e jovens do sexo masculino prostituíam-se para uma clientela maioritariamente masculina. Em Atenas,  era atribuída a Sólon a criação de bordéis estatais com preços regulados.

Na Roma antiga, a atividade era reconhecida e regulamentada. As prostitutas, as chamadas lobas, eram registadas, pagando mesmo impostos sobre os seus ganhos. Em geral, usavam cabelo loiro ou vermelho, vestiam-se com tecidos floridos ou transparentes, não podendo, por lei, usar nem estola nem a cor violeta, adereços reservados às mulheres livres. O local mais comum de trabalho era sob os arcos arquitetónicos (a palavra “fornicação” e outras da mesma família gramatical vêm do latim fornix, fornicis, que significa arco, abóbada, ponte/viaduto). Fornix era o arco da porta sob a qual as prostitutas romanas se exibiam. As meretrizes ficavam por lá porque, além de ligar o lugar ao sexo, a mulher romana devia, a não ser que não tivesse nem pai, nem marido, nem filhos do sexo masculino, sempre obediência a um homem. As mulheres deveriam ficar sempre dentro dos limites da casa/prédio do seu dono ou protetor – por isso, não podiam passar do arco (ultra fornicem). E deviam proceder às convencionais medidas higiénicas, as ablutiones.

A Idade Média criminalizou e perseguiu a prostituição, tal como outras práticas sexuais hetrodoxas – não se quer dizer que a sua prática se tivesse eclipsado – até que o século das luzes e os momentos seguintes a toleraram e, em muitos casos, a legalizaram.

Ora bem, depois deste arrazoado, há que chegar a conclusões, que passo a formular.

Ninguém que se preze arrisca, sob pena de negar a essência da pessoa humana, entrar numa via de degradação ou destruição da dignidade pessoal e da cidadania em nome de uma religião, que se fez para felicidade do homem e glória de Deus (Hoje já não se faz por Deus a guerra ou a imolação humana; embora Ele seja invocado para tal, os verdadeiros motivos são outros, exceto para uns tantos fanáticos). Não é pelo facto de as autoridades criminalizarem um ato ou uma atividade e até perseguir os recetivos infratores que ela deixa de se praticar, como não é por ela perpassar civilizações, espaços e tempos que fica ratificada. E não pode ser que as tentações ou as circunstâncias (como tempo de guerra ou o embarcamento) que motivem a prostituição levem a que ela se torne aceitável nem mesmo tolerável.

Pelo que há que denunciar uma sociedade hipócrita que passa a condenar as violações, os abusos sexuais, o tráfico de órgãos, a exploração do trabalho e o tráfico de pessoas, enquanto tolera, frequenta e fomenta o negócio do corpo humano. Mais: faz deste negócio explorador um meio de presumível promoção turística e cultural, para o que mobiliza as estratégias da sedução, da desinibição, da simulação e do sadomasoquismo.

Também nesta matéria é salutar ouvir o apóstolo: “Foi para a liberdade que fostes chamados. Só que não deveis deixar que essa liberdade se torne numa ocasião para os apetites carnais” (…). “Ora, se vos mordeis uns aos outros, cuidado, não sejais devorados uns pelos outros.” (cf Gl 5,13.15).

Basta de desmandos legitimados, minha gente! Combate à exploração do homem pelo homem e ao despautério dos vis interesses!