Contra a consideração do “inútil”

02-02-2014 23:46

Contra a consideração do “inútil”

O objeto desta reflexão inscreve-se na temática da utilidade da gramática e surgiu da leitura de uma local da Agência Ecclesia em que se lê “O Papa, jesuíta, falou da vida consagrada como um ‘encontro com Cristo’, partindo da passagem dos Evangelhos que relata a apresentação de Jesus no Templo por São José e a Virgem Maria”. Sem deixar de aceitar por formação e convicção a autenticidade e o valor da asserção, a ficar para ulterior ocasião, vou deter-me na questão de distinguirmos gramaticalmente entre os segmentos “o papa, jesuíta, falou da vida consagrada…” e “o papa jesuíta falou da vida consagrada…”, ou “o papa dos jesuítas falou da vida consagrada…” e, ainda, “o papa, proveniente dos jesuítas, falou da vida consagrada…” ou “o papa, que proveio dos jesuítas, falou da vida consagrada…”.

Dêmos de barato que grafar “O” com maiúscula decorre da sua posição em início de frase e “Papa”, por, apesar de ser nome comum, ser um axiónimo, sendo facultativo o uso da maiúscula ou da minúscula, para nos focarmos no segmento “jesuíta” ou os outros do mesmo eixo paradigmático.

Tradicionalmente, a gramática classificava sintaticamente “jesuíta”, do primeiro segmento, como aposto ou continuado (para alguns somente apositivo) e, do segundo, como atributo ou acessório. No primeiro caso, em termos de classificação morfológica, “jesuíta” tanto poderia ser classificado como substantivo ou nome (antigamente, nome substantivo) quanto como adjetivo (antigamente, nome adjetivo). Já o segmento “dos jesuítas” exercia indubitavelmente as funções de complemento determinativo, enquanto o segmento “proveniente dos jesuítas” era classificado sintaticamente como aposto ou como atributo, conforme viesse ou não ensanduichado nas vírgulas, e o segmento “que proveio dos jesuítas” era (e ainda é) a oração subordinada relativa adjetiva (restritiva, se vier sem as vírgulas, e explicativa, se vier entre vírgulas – o que, na oralidade, se distingue pela ausência ou existência de pausas e pela entoação). Não me digam que estes exercícios de observação visual e auditiva, correspondentes ao exercício de escrita e pronúncia – tudo sancionado pela gramática (que passou pelos designativos da moda: funcionamento da língua e conhecimento explícito da língua) – não eram de inquestionável utilidade discursiva, quer no atinente à compreensão quer no concernente à produção de enunciado!

Mais tarde, as inferências da gramática generativa, plasmadas na mera sintagmática, quiseram estabelecer que aqueles segmentos acima referenciados constituíam, em qualquer dos casos, o modificador do nome (aqui, “papa”), que com ele e com o correspondente determinante anteposto (o) formariam o sintagma nominal (aqui, sintagma nominal um, por vir à esquerda do sintagma verbal “falou da vida consagrada” e, nestes termos, exercer a função de sujeito). À luz de uma gramática demasiado pegada à sintaxe (muito embora, sempre que se arrumassem os sintagmas nas respetivas fórmulas de reescrita da frase, nas árvores ou nas caixas, se evocassem impertinentemente as regras fonológicas, morfológicas e semânticas), todos aqueles segmentos acima referenciados (repito a formulação) se equivaliam, pois eram modificadores do nome. Sendo assim, tanto valia escrever/dizer “um homem bracarense”, “um homem de Braga” ou “um homem que veio de Braga” – o que todos acordamos não ser a mesma coisa, a não ser que reduzamos a gramática à sintaxe, o que a arredaria da maior parte das riquezas da realização linguística, cultural e literária.

Hoje, o Dicionário Terminológico, que todos, negando o óbvio, referem não constituir uma nova gramática – talvez para não arreliar os linguistas, tornados tão suscetíveis nas últimas décadas – distingue as coisas de outro modo: a frase é constituída por grupo nominal, grupo verbal, grupo adjetival, grupo adverbial e grupo preposicional. E estes grupos ora emparceiram justapostamente uns com os outros ora uns se subordinam a outros, assim como as funções sintáticas desempenhadas por cada um.

No caso vertente, “o papa, jesuíta” é um grupo nominal (o seu núcleo é um nome “papa”), que exerce a função de sujeito simples; “falou da vida consagrada como um ‘encontro com Cristo’” é o grupo verbal (o seu núcleo é uma forma verbal “falou”) que exerce a função de predicado; “da vida consagrada” é um grupo preposicional (o seu núcleo é uma preposição “de” contraída com o determinante artigo definido “a”) que exerce a função de complemento oblíquo, integrando, por conseguinte, o predicado verbal; “como um encontro com Cristo” é uma oração subordinada adverbial comparativa, com a elisão do verbo, introduzida pela respetiva conjunção subordinativa “como”, que exerce a função de modificador do grupo verbal, porque não é necessário para que a frase faça sentido, mas, já que dela faz parte, integra o predicado verbal. É claro que novos estudiosos dos meandros da língua podem considerar aquele “como” a ter um papel de preposição (como o fazem para consoante, conforme, etc.) e o segmento que ele introduz (sem constituir oração) desempenharia também a função de modificador do grupo verbal, pela razão aduzida. Está visto que os grupos que integram o predicado são grupos que estão como que encaixados no grupo verbal, como também um grupo preposicional como “de+a vida consagrada” abrange um grupo nominal (no caso, a vida consagrada). Quanto à possibilidade de assumir “como” tratando-se de preposição, apresento o exemplo da formulação popular de enunciado “eu não sou tão rico coma ti” (“como a” ti – locução prepositiva), em alternativa a “eu não sou tão rico como tu” (“como” tu és – oração subordinada comparativa adverbial introduzida pela conjunção subordinativa comparativa “como”).

Integrando o grupo nominal “o papa, jesuíta”, o termo “jesuíta” corporiza um grupo justaposto a “o papa”, que aqui tenho dificuldade (só os professores de Português é que têm dificuldades desta ordem; os outros não as sentem) em arrumar no compartimento do grupo adjetival, que o é de origem, derivado de “Jesus”, ou no do grupo nominal, uma vez que, como tantos adjetivos, sofre a nominalização, dantes designada por (ou como, veja-se a hipótese enunciada para “como” no parágrafo anterior) substantivação. O certo é que este grupo desempenha a função de modificador apositivo do nome (note-se o ensanduichamento por vírgulas!). Porém, em “o papa jesuíta” (sem a vírgula) teríamos um grupo adjetival formado somente pelo adjetivo, que teria a função de modificador restritivo do nome (não faz lá falta, mas acrescenta-lhe uma informação que não acrescenta a mais nenhum nome neste contexto).

Já, em “o papa dos jesuítas”, “dos jesuítas” configura um grupo preposicional (cuja base é a preposição “de”), encaixado no grupo nominal, que funciona como complemento do nome “papa”. O segmento “proveniente dos jesuítas” seria um grupo adjetival que funcionaria como modificador apositivo do nome “papa”; e “dos jesuítas”, um grupo preposicional (de+os jesuítas), que integra um grupo nominal e que funcionaria como complemento do adjetivo “proveniente”. Por seu turno, o segmento “que proveio dos jesuítas” é a oração relativa adjetiva explicativa, introduzida pelo pronome relativo “que”, cujo antecedente é o nome “papa” e funcionaria como modificador apositivo do nome “papa”, mas o segmento “dos jesuítas”, configurando um grupo preposicional (de+os jesuítas) que abrange um grupo nominal (aqui, é de certeza: houve a nominalização) e funciona como complemento oblíquo regido pela forma verbal “proveio”, ao passo que o sujeito simples seria “que” (grupo nominal constituído somente pelo pronome “que”, que representa o nome) referido a “o papa” e o predicado verbal seria “proveio dos jesuítas” (constituído pelo verbo e grupo preposicional).

Já agora uma informação, que poderá ser tida como inútil: quando falamos de morfologia, hoje não nos referimos às classes de palavras e suas subclasses. Morfologia tem a ver, agora, com o processo de formação das palavras e respetiva classificação (palavra simples, palavra base, palavra composta, palavra derivada, sigla, acrónimo, truncação, empréstimo, amálgama…), a sua constituição (radical, vogal temática, terminação, desinência) e a sua flexão (em género e número, grau – e voz, conjugação, modo tempo e pessoa) com a respetiva arrumação. A este respeito, podemos lembrar os nomes sobrecomuns, os nomes epicenos, os nomes comuns-de-dois e os nomes heterónimos.

Aqui deixo uma exposição pretexto para ilustrar como o ensino da gramática, ministrado como eu o fiz agora, pode constituir uma valente seca (de siccus, a um – seco, no latim), se a informação gramatical for dada sem doseamento e progressividade ou sem que se parta de texto ajustado à aprendizagem. Lembram-se os sexagenários de como era lecionada a epopeia camoniana? Poderia, em determinados casos, ficar-se com alergia irreversível a Os Lusíadas e à gramática. Porém, não é lícito concluir como que pela inutilidade da gramática ou pelo seu caráter de seca, como o entenderam alguns agentes de ensino da área do Português (que não professores de Português), que nunca aprenderam a ensinar cabalmente as práticas de receção da língua nem as da sua produção linguística, cultural e literária – também por falta de conhecimentos de Latim e de Grego.

Recordo-me de que, não há muito tempo, numa das primeiras aulas perante uma turma do 12.º ano, a quem iria lecionar pela primeira vez, um dos inocentes me questiona: “Ó professor, as suas aulas serão assim muito secantes? E eu atalhei, de imediato: “Não, não costumo vir para a aula com nenhuma faca nem com qualquer outro objeto cortante”! Perante a surpresa dos meus novos e queridos discípulos, expliquei que secante vem do verbo latino secare (cortar), donde temos em Português a palavra segar e outras de sua família como sega, segada, segadoiro, segador, segão, segadura, segão, segote, segotar e seca-vidas – tudo semanticamente relacionado com “corte” ou “cortar”. E veio a propósito mencionar as circunferências secantes (que se cortam mutuamente) e as paralelas atravessadas por uma secante (que as corta) e o segmento de reta ou o segmento circular e o setor circular (que envolvem cortes no círculo). Claro que não usei estes termos todos na mesma aula nem deixei de falar nas securas dos solos ou das peles secas, porque desidratadas, e nas homofonias com cego e cegar.

Enfim, depois de tudo isto, apresento esta mensagem gramatical a quem tiver a paciência de Job para a sua leitura, mas que aconselho sobretudo a quem tenha mais de cinquenta anos para fortalecer o cérebro e com o lembrete de que “o saber não ocupa lugar”, mesmo que levante questões irritantes ou suscite controvérsia. Cá estaremos para as curvas gramaticais, querendo Deus, o autor da gramática do Universo!