Delito de opinião ou cerceamento da liberdade de ensinar?

22-01-2014 16:40

Delito de opinião ou cerceamento da liberdade de ensinar?

Acabei de ler há dias o livro O Antigo Regime e a Revolução, do professor Freitas do Amaral, que ele considera de memórias políticas, mas cuja narrativa, elaborada a partir do seu nascimento e antecedentes familiares, termina com uma pequena reflexão pessoal sobre os dias subsequentes ao 25 de Novembro. Como dá umas pinceladas sobre o regime salazarista-caetanista com base no conhecimento pessoal que teve dos seus dois altos governantes e na obra de Franco Nogueira sobre Salazar, em 6 volumes, achei curioso pegar num episódio que, segundo o memorialista, configura o chamado crime de opinião.

Refere o autor que o Professor Barbosa de Magalhães fora demitido da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa “apenas por afirmar nas aulas, com base numa interpretação pessoal imaginativa, que, apesar da Concordata, os casados catolicamente continuavam a poder pedir o divórcio nos tribunais comuns” (cf op cit pg 48). Ora, ninguém me viu nas ditas aulas, por uma boa dúzia de razões, a primeira das quais é a de ainda não ter nascido. Porém, a curiosidade, como se nada mais tivesse que fazer, levou-me à leitura da documentação atinente à matéria, pelo que me permito discorrer sem outras pretensões que não as da reflexão.

Assim, sem negar a razão do entendimento da decisão governativa de penalização pelo designado como “crime de opinião”, prefiro enquadrá-lo no âmbito da obstrução dos direitos, liberdades e garantias. Pode objetar-se que esta formulação é a da atual Constituição da República Portuguesa (CRP) elaborada e promulgada na sequência da revolução abrilina. Efetivamente este documento fundamental consagra indefetivelmente a liberdade de expressão, sem impedimento ou limitação de qualquer tipo ou forma de censura (art.º 37.º), e a liberdade de aprender e ensinar (art.º 43.º).

Mas também a Constituição de 1933, já na sua versão originária de 11 de abril, consagrava no quadro das “garantias fundamentais”, a “igualdade dos cidadãos perante a lei”, que envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou os serviços prestados…” (art.º 5.º); a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma (art.º 8.º, n.º 4.º); e a liberdade de ensino (art.º 8.º, n.º 5.º). Ninguém duvidará de que a liberdade de ensino compreende igualmente o direito de aprender e o direito de ensinar.

É certo que, no seu artigo 4.º, reconhece como limites, na ordem internacional, “os que derivem de convenções e tratados livremente celebrados”.

É este o caso da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de maio de1940, cujo artigo XXIV, até ao protocolo adicional de 15 de fevereiro de 1975, tinha seguinte redação:

“Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos”.

Assim sendo, poderia colocar-se a hipótese de, em determinado momento, os cônjuges unidos pelo matrimónio católico poderem vir a declarar em tribunal o seu abandono confessional da religião católica e, consequentemente, não aceitando as propriedades essenciais do ato de casamento a que estavam supostamente vinculados, solicitar o divórcio. Poderiam os tribunais do Estado deixar de apreciar judicialmente esse pedido? Era legítima a coarctação da liberdade de ensinar ao Professor de Direito? Ninguém solicitou à Assembleia Nacional (que era o órgão competente para tal segundo o artigo 122.º, § 1.º) a reflexão da constitucionalidade daquela disposição?

Se bem que o §2.º do n.º 20.º do artigo 8.º esclareça que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão, de ensino…”, nem por isso a regulamentação se pode sobrepor à substância da coisa, nem pode ser postergado o n.º 3.º do mesmo artigo, que inquestionavelmente consagra “a liberdade e a inviolabilidade de crenças e práticas religiosas, não podendo ninguém por causa delas ser perseguido, privado de um direito, ou isento de qualquer obrigação ou dever cívico”. Não é lícito ao Estado, por mais que isso custe às Igrejas, impedir qualquer manifestação da vontade dos crentes nem deixar de os atender em nome da lei.

E, quando o artigo 45.º estabelece que “é livre o culto público ou particular de todas as religiões, podendo elas organizar-se livremente, de harmonia com as normas da sua hierarquia e disciplina”, pressupõe-se legitimamente que, não podendo interferir no campo das crenças e práticas, não queira nem deva condicionar a adesão ou a permanência dos cidadãos numa determinada religião, até porque o artigo 46.º professa o regime de “separação em relação à Igreja Católica e a qualquer outra religião ou culto praticado dentro do território português”.

Pelo que, num regime político constitucional, devidamente escrutinado pelos poderes e pela opinião pública, em que a prática correspondesse (o que todos sabemos que não acontecia! E hoje?) ao estipulado pela lei fundamental e pelas leis ordinárias, no que estas não contrariassem aquela, o professor nunca seria excluído da docência ou, tendo-o sido, deveriam os tribunais assumir a ministração da justiça e não termos nós de nos ficar a lamentar pelo severo castigo de um delito de opinião.

Mais pedagógico, só a carecer de formação e consciencialização a cargo das comunidades, se revela o estipulado no mesmo artigo XXIV da Concordata pela redação que lhe deu o protocolo de 1975, transcrito ipsis verbis para o artigo 15.º da Concordata de 2004, alterando unicamente a expressão casamento católico para casamento canónico e distribuindo o artigo por dois números):

(1) «Celebrando o casamento católico (na versão atual, casamento canónico), os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais.

(2) «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio».

Eis a maneira diplomática de ambas as partes manterem as suas convicções e responsabilidades específicas: a Igreja Católica, com o dever de recordar a doutrina e de apostar na formação; e o Estado, com  a disposição de tratar os cidadãos em conformidade com as leis da República.

E hoje estarão os direitos, liberdades e garantias dos portugueses a ser escrupulosamente salvaguardados e respeitados nas leis ordinárias e na prática diária ou permanecem unicamente como letra morta, embora dourada, na Constituição?