Dia Mundial da Paz

31-12-2013 22:33

Dia Mundial da Paz

O primeiro dia de janeiro marca a entrada do novo ano civil. E falar de ano civil já não seria pouco, se pensarmos na importância de que se devem revestir as relações entre os cidadãos e entre estes e os poderes, quer se trate de poderes políticos quer se trate de outros podres como o económico, o financeiro, o profissional, o escolar, o empresarial ou o laboral. E porque não se apelidarem também estes de poder político, já que planeiam, regulam, controlam e potenciam as relações que os homens e mulheres desenvolvem entre si em torno do bem-estar de cada um e do chamado bem comum?

Mas o primeiro dia do ano foi escolhido pelos corifeus do iluminismo para promover e festejar a fraternidade universal e a ONU - Organização das Nações Unidas designou-o como o dia da confraternização universal. Para todos os povos, o início de novo é assumido como tempo de recomeçar, reconstruir, repensar, refazer, restabelecer, etc. A chegada de um ano desperta sempre a justa expectativa da abertura de um novo ciclo, cheio de transformações que se querem positivas e desafiantes. Simpatias, presenças, gestos simbólicos e tradições reforçam ainda mais este dinamismo em torno da festa: o réveillon, comer as passas, rebentar a garrafa de champanhe ou bebida igualmente esfusiante, e brindar ao recomeço é à boa sorte!

 Na sequência do concílio Vaticano II, de forte repensar da doutrina da Igreja e da sua posição perante o mundo, Paulo VI – é bom não o esquecer pela inauguração de gestos de grande profetismo – entendeu promover um mecanismo de oração pela paz interna da Igreja e pelo restabelecimento, reforço e consolidação da paz no mundo inteiro. Na sua homilia a 13 de maio de 1967, em Fátima, afirmava:

“A primeira intenção é a Igreja: a Igreja una, santa, católica e apostólica. Queremos rezar, como dissemos, pela sua paz interior. (…) E, assim, passamos à segunda intenção deste Nosso peregrinar, intenção que enche a Nossa alma: o mundo, a paz do mundo. (…) … verificais que o mundo ,não é feliz nem está tranquilo. A primeira causa desta sua inquietação é a dificuldade que encontra em estabelecer a concórdia, em conseguir a paz. Tudo parece impelir o mundo para a fraternidade, para a unidade; no entanto, no seio da humanidade, descobrimos ainda tremendos e contínuos conflitos.”.

E, assim, a liturgia coloca a inauguração do novo ano sob a égide de Santa Maria Mãe de Deus (DS 251), o primeiro título consolidado atribuído à mãe de Jesus na História da Igreja, sobretudo depois do Concílio de Éfeso (ano de 431). Todos os textos litúrgicos do dia respiram paz, bênção e felicidade. Será por ela ser a mãe do Príncipe da Paz, referido por Isaías, ou a Rainha da Paz, invocada na ladainha lauretana?

E, em 8 de dezembro de 1967, dia da Imaculada Conceição, o mesmo pontífice, através de mensagem adequada, decidiu-se pela instituição do dia primeiro do ano como Dia Mundial da Paz, ocorrendo o primeiro em 1 de janeiro de 1968, e suscitando a “adesão de todos os verdadeiros amigos da Paz, como se se tratasse de uma iniciativa sua própria; que ela se exprimisse livremente, por todos aqueles modos que mais estivessem a carácter e mais de acordo com a índole particular de quantos avaliam bem, como é bela e importante ao mesmo tempo, a consonância de todas as vozes do mundo, consonância na harmonia, feita da variedade da humanidade moderna, no exaltar deste bem primário que é a Paz”.

Os sucessores do papa Montini não deixaram interromper esta cadeia anual de dias mundiais da paz e, como aquele, para cada comemoração desta bela efeméride indicaram temas que desenvolviam aspetos fortemente atinentes àquele tema nuclear. Assim é que se afirma que o nome da paz é desenvolvimento, que ela depende de cada um, que resulta do esforço de cada dia ou que o mundo carece de educação para ela e assim por diante.

Portanto, o Dia da Paz Mundial é um dia a ser celebrado pelos "verdadeiros amigos da Paz", independente do credo, etnia, posição social ou económica, que cada um assuma. Ainda que desde 1981 o Dia Internacional da Paz (uma ligeira alteração de denominação) seja comemorado em 21 de setembro, a data de 1 de janeiro é reconhecida, sem desmerecer da iniciativa de Paulo VI e sucessores, pela ONU como o Dia da Confraternização Universal, ou seja, do diálogo e da paz entre os povos – temas bem do coração de Montini.

E que nos diz de novo o papa Francisco aos costumes? Leiamos um pouquito:

… no coração de cada homem e mulher, habita o anseio duma vida plena que contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar”.

E, sendo a fraternidade uma dimensão essencial do homem, por ser ele um ser relacional, “a consciência viva desta dimensão relacional leva-nos a ver e tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro irmão” e, por consequência, à “construção duma sociedade justa, duma paz firme e duradoura”. Ao assumir as diferenças de género e ao reconhecer que “a fraternidade se começa a aprender habitualmente no seio da família, graças sobretudo às funções responsáveis e complementares de todos os seus membros”, Francisco vai ao ponto de fazer a afirmação epistemológica e pedagógica de que “a família é a fonte de toda a fraternidade, sendo por isso mesmo também o fundamento e o caminho primário para a paz, já que, por vocação, deveria contagiar o mundo com o seu amor”.

É a confissão clara de que a fraternidade, componente essencial do homem, será o fundamento da paz e  seu fundamento reside na família, caminho primordial da paz.

No entanto, o papa adverte claramente que, se “o número sempre crescente de ligações e comunicações que envolvem o nosso planeta torna mais palpável a consciência da unidade e partilha dum destino”, nem por isso, deixa de ser grave que esta vocação seja “muitas vezes contrastada e negada nos factos, num mundo caraterizado pela 'globalização da indiferença' que lentamente nos faz 'habituar' ao sofrimento alheio, fechando-nos em nós mesmos”. E denuncia, com o vigor de seu estilo e sua voz, que “em muitas partes do mundo, parece não conhecer tréguas a grave lesão dos direitos humanos fundamentais, sobretudo dos direitos à vida e à liberdade de religião”, sendo disso exemplo preocupante “o dramático fenómeno do tráfico de seres humanos, sobre cuja vida e desespero especulam pessoas sem escrúpulos”. E ainda: “Às guerras feitas de confrontos armados juntam-se guerras menos visíveis, mas não menos cruéis, que se combatem nos campos económico e financeiro com meios igualmente demolidores de vidas, de famílias, de empresas”.

Serão estes os principais obstáculos à fraternidade e à paz explicáveis pela razão de a globalização, que nos torna vizinhos, não nos fazer irmãos, como já dizia Bento XVI. Por outro lado, as “novas ideologias, caraterizadas por generalizado individualismo, egocentrismo e consumismo materialista, debilitam os laços sociais, alimentando aquela mentalidade do 'descartável' que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados ‘inúteis’", fazendo com que a convivência humana se assemelhe “sempre mais a um mero do ut des pragmático e egoísta”. Enfim, “resulta claramente que as próprias éticas contemporâneas se mostram incapazes de produzir autênticos vínculos de fraternidade, porque uma fraternidade privada da referência a um Pai comum como seu fundamento último não consegue subsistir”, uma vez que uma “verdadeira fraternidade entre os homens supõe e exige uma paternidade transcendente” cujo reconhecimento levará à consolidação da “fraternidade entre os homens, ou seja, aquele fazer-se 'próximo' para cuidar do outro".

É a ilação de que a fraternidade universal pressupõe e postula uma paternidade transcendente comum – Pater Noster qui es in caelis – que os homens teimam em não reconhecer.

Por isso, no dia da fraternidade universal ou no dia mundial da paz, os crentes que rezam à Senhora da Paz não podem deixar de olhar para e pelo próximo e invocar, em atitude de compromisso ético-antropológico, o inefável e transcendente Paterfamilias.