Duvidando educativamente…

09-02-2014 20:48

Duvidando educativamente…

Vêm ao caso umas dúvidas suaves que me ficaram depois de ter ouvido mui recentemente um esclarecido membro do governo da área da educação a perorar sobre o tema.

Após o enaltecimento da aposta na educação para a realização da cidadania e para a qualificação das pessoas no rumo do desenvolvimento, Sua Excelência referiu que o governo tem desenvolvido um enorme trabalho de reformas que, como sempre, uns aceitam e outros têm dificuldade em incorporar. Alegam que o governo não explica. Mas explicar o governo bem explica, só que os recetores de tal explicação é que não querem ter em conta todos os dados a ela concernentes. Foi por estas ou equivalentes palavras que se exprimiu. E eu fiquei a pensar se os preditos recetores, quiçá eu também, não entendem ou são mauzitos ou não querem que o governo governe e gostam supinamente da política de menosprezo pelo trabalho de outrem.

Também o governante, ao referir as alterações em curso no sistema educativo, explicitou que estava o governo a intervir na arquitetura do sistema sem mexer na estrutura. E disse que estava ultrapassada a distinção entre cursos do ensino regular e os do outro, pois ambos eram regulares já que obedeciam a regras estabelecidas, como referiu que iriam ser criados cursos de curta duração em estabelecimentos do ensino superior, sem atribuição de grau, mas para melhoria da qualificação. Francamente, dei de barato o caso da ultrapassagem da sobredita distinção, porque mais não revelava que uma simplificação nada feliz de linguagem, já que resulta da corruptela da designação de CSPOPE (cursos do ensino secundário predominantemente orientados para o prosseguimento de estudos) e CSPVA (cursos do ensino secundário predominantemente orientados para a vida ativa – os cursos profissionais e os cursos tecnológicos), da reforma de Roberto Carneiro, e rememora-me a velha distinção entre o clero regular, que obedecia a uma “regra” específica escrita por um fundador e o clero secular, que tinha outras regras, as emanadas do seu bispo, mas que vivia no mundo ou século. Por outro lado, já em 1977, o governo criou os cursos superiores de curta duração (com a atribuição do grau de bacharelato, em universidades e institutos superiores) e os de longa duração (com a atribuição do grau de licenciatura, em universidades). Mais tarde, criaram-se os cursos de estudos superiores especializados (CESE) equivalentes a licenciatura, em escolas superiores de educação, e as licenciaturas bietápicas, em institutos superiores politécnicos (depois, passaram todos a licenciar e hoje todos mestram!), bem como os cursos de especialização tecnológica, em algumas escolas profissionais, que celebrassem protocolos com instituições de ensino superior. Porém, se já não percebia muito de arquitetura, pior fiquei, porque o conceito de arquitetura tão complexo, por aquilo que me é dado perceber, implica a interligação com as estruturas. E fui verificar algumas definições.

Assim, recordo que, na obra vitruviana, se determinam os quatro elementos fundamentais da arquitetura: a firmitas, referente à estabilidade, ao caráter construtivo da arquitetura, à solidez e resistência; a utilitas, originariamente relacionada com a comodidade e, ao longo da história, associada à funcionalidade e ao utilitarismo; a venustas, ligada à beleza e à apreciação estética; e o decorum, vinculado à dignidade da arquitetura e à necessidade de rejeição dos elementos supérfluos – recordam-se do inutilia truncat setecentista português? – e ao respeito pelas tradições ou ordens arquitetónicas. Deste ponto de vista, uma construção passa a ser chamada de arquitetura quando, além de ser firme e bem estruturada (firmitas), possui uma função específica (utilitas), respeita as ordem clássicas (decorum) e, principalmente, se for bela  (venustas). E, se a estes predicados for adicionado o da antiguidade (vetustas), a construção torna-se monumento. Modernamente e segundo Lúcio Costa, "arquitetura é, antes de mais nada, construção, mas, construção concebida com o propósito primordial de ordenar e organizar o espaço para determinada finalidade e visando a determinada intenção”. A teorização da arquitetura moderna, que não ilegitima quaisquer outras manifestações históricas, mas recusa liminarmente a transferência servil de outros momentos históricos para a contemporaneidade, engloba, no entanto, também toda a arquitetura produzida dantes, dado que manifesta claramente que a arquitetura resulta sempre de um programa multidisciplinar, que integra as variáveis sociais, culturais, económicas e artísticas do momento histórico.

Ora, voltando ao raciocínio do aludido governante, fico a matutar se efetivamente o que o governo quer é mexer na decoração do sistema. Então é simples: promove aposentação antecipada de docentes ou suas rescisões amigáveis e sobrecarrega os resistentes e/ou vincula outros; acaba CNO e cria CQEP e/ou coloca a formação de adultos sob outras dependências institucionais, passando o MEC a gastar bastante menos com ela; tira professores e coloca formadores; arreda professores contratados e atribui novas missões a professores dos quadros; reduz o desenho curricular, mas obriga os professores a guardar nos quartéis escolares os alunos durante mais tempo (a disposição atual dos recintos escolares não faz lembrar o convento, a prisão ou, na melhor das hipóteses, o quartel militar?); retira dos programas competências e recoloca objetivos e conteúdos; anula metas de aprendizagem e define metas curriculares; revoga programas disciplinares e estatuto do aluno e cria novos programas e elabora novo estatuto do aluno, a que junta “ética escolar”; enfim, muda tanta coisa para que tudo fique quase na mesma, alterando o fardamento. É operação de cosmética ou alteração epidérmico-epigráfica de estilo.

Vai o governo intervir no painel de exigências para acesso à formação inicial de professores. Não quer dizer que os atuais professores não tenham qualidade, mas temos de estabelecer o patamar da excelência. Este belo propósito (Já sabia que vai ser exigido aos novéis candidatos a professor da educação básica o exame de Matemática. E porque não aos outros?) permite-me uns pontos de reflexão:

E a formação inicial de professores e dirigentes escolares, nas outras áreas, não precisará de melhorias e de outras exigências, para que não se afaste de vez o fantasma da necessidade da prova de avaliação de capacidades e conhecimentos para ingresso na carreira docente? Só a título de exemplo, os professores de Português não deviam possuir conhecimentos no âmbito da língua e literatura gregas e no da língua e literatura latinas? Por outro lado, só o acesso à formação inicial de professores é que precisa de intervenção? Que é dos outros? Vai o MEC continuar a fazer incidir o recrutamento dos alunos do ensino superior somente na classificação académica? E os critérios de perfil humano, de cidadão, de solidariedade, etc. – aferidos, por exemplo, através de testes psicotécnicos ou similares? Porque não a valorização (com média final) da Educação Física para todos os cursos (Qual foi o lóbi que se sobrepôs para tal desistência? – é de questionar.)? Não será ela útil na medicina, na engenharia civil ou na de minas, nos estudos de veterinária, de agricultura e silvicultura, de pecuária, etc.? Ou ela consiste somente na ginástica? Porque não incluir uma disciplina de ética e cidadania em alternativa à EMRC, de modo que todos os alunos pudessem ostentar uma classificação académica no ingresso no ensino superior ou no lançamento na vida ativa? Mais: todos os docentes e seus gestores deveriam ter no currículo académico formativo uma cadeira de ética e deontologia, pois, não?! E, se é preciso estabelecer o patamar da excelência, porque limitar a atribuição da menção de “excelente” a 5% de cada universo de docentes a avaliar no quadro da avaliação de desempenho?

Finalmente, uma referência ao putativo direito de o jovem dever ou poder estudar ou fazer aquilo de que gosta. Entendo como perfeitamente legítimo e razoável que jovem e seus pais desejem essa hipótese para o educando. Já duvido de que a mensagem possa razoavelmente provir de governantes. E a escola democrática e com o sentido da realidade deve efetivamente preparar os jovens para se desempenharem excelentemente naquilo de que gostam. Porém, a vida é o que é, e muito dificilmente oferece ao jovem, futuro trabalhador e/ou empresário somente ou principalmente aquilo de que ele gosta. Por isso, a escola tem a obrigação, sob pena de trair expectativas, de preparar o jovem para lidar com aquilo de que gosta menos ou até com aquilo de que não gosta. E terão todos os jovens a possibilidade de fazer só aquilo de que gostam. Se sim, quem fará o resto; se não, como escolher os que podem dar azo à sua aspiração e como ter a certeza de que se acerta? E poderão fazer tudo aquilo de que gostam, mesmo que infernizar os professores? Aliás, se o governo acredita tanto na política do que se gosta, porque é que limita tanto a oferta educativa e formativa nas escolas em relação às pretensões dos jovens e encarregados de educação (as ofertas formativas são bem crivadas na rede escolar e na de formação e exigem um mínimo de 20 de formandos para concretização de cada uma!). Depois, pergunto-me se, por exemplo, os militares gostam das guerras para onde os enviam, os bombeiros dos fogos florestais, os profissionais dos transportes para o paraíso dos funerais ou se meus colegas e eu gostávamos tanto de trabalhar por conta de uma multinacional de limpeza em Estrasburgo no verão de 1973. E será que só os jovens terão o direito de fazer aquilo de que gostam? E os professores não terão o direito de serem menos perturbados no seu desempenho (por alunos, dirigentes e políticas educativas abstrusas…) e na fruição de salário condigno, sem cortes escandalosos? O mesmo se diga dos outros trabalhadores no ativo, dos aposentados e reformados e dos desempregados!

Portanto, para que os marotos dos portugueses não fiquem com tantas dúvidas depois de escutarem os governantes, aqui do cantinho da minha soberba humildade peço maior temperança discursiva e sobretudo que nunca entrem preguiçosamente na tentação da demagogia. Ab omni tentaione, libera nos, Domine!