Falando de palavras

27-01-2014 21:04

Falando de palavras

 A colega Urtélia Silva teve a gentileza, que penhoradamente agradeço, de me enviar um artigo Com respeito às palavras, de Hélia Correia, publicado no jornal Público de 17 de janeiro onde se dá conta do sentido adulterado de algumas palavras com que nos mimoseiam em tempo de crise para larvar o verdadeiro sentido do que nos vai acontecendo por imposição humana dos políticos escorados à retaguarda pelos grandes detentores do capital. E são referidos exemplos como austeridade e indignação. Eu estou totalmente de acordo, mas não resisto a uma reflexão, que alguém poderá ter como útil.

O emprego eufemístico de uma palavra ou expressão mais suave por outra considerada mais asquerosa é frequente mesmo fora dos tempos de crise pandémica como aquela por que estamos a passar. E há casos de grande gravidade. Registo, por exemplo: “interrupção voluntária da gravidez”, por aborto; “pedofilia” (amizade à criança), por abuso sexual de criança em tenra idade (convencionalmente antes dos 12 anos); “vida fácil”, por prostituição; “capital de relação”, por cunha; “competente”, por detentor de cartão partidário; “democrata”, por opositor a um regime ou mesmo guerrilheiro; e “hiperativo”, por mal-educado ou insurreto. Já a Bíblia empregava a expressão “conhecer a esposa”, por ter relações sexuais com ela; e “jurar sobre a coxa de Jacob”, por jurar sobre o órgão masculino então considerado origem da vida. Muitos dos nossos amigos faleceram ou se tornaram defuntos, quando todos sabemos que morreram. E, se nos passearmos pelo mundo do calão, os eufemismos abundam e superabundam até mais não querermos.

Se bem me lembro (Ó belo tempo de Vitorino Nemésio!) foi o Dr Mário Soares, quando exercia o múnus presidencial que proclamou em seu discurso, numa das aberturas de ano judicial, a legitimidade do direito à indignação. Na ocasião, apesar do “meu latinório”, não atinei que “indignado” é aquele que alguém tornou indigno, como explica, e bem, a aludida articulista. Só que vou acrescentar que, se algum malandro pretende criar-me condições para me fazer indigno, eu resisto, praguejo e disponho-me a dar-lhe o respetivo troco, porque “a minha dignidade ninguém a belisca”. Pela rejeição da situação em que me queiram envolver de indignado eu poderei reforçar a minha condição de ser digno em razão e consequência da minha “humanitas”. Porém, lamentável será o caso de eu próprio vir cavar a minha própria indignidade. Aí, não será fácil o meu levantamento do chão.

Podem os moralistas virem a apontar o dedo porque estaria a pagar os resultados de pecado em que eu ou os meus antepassados incorrêramos, à boa maneira veterotestamentária (se não foi ele quem pecou, foram os pais) ou à laia do que o lobo dizia ao cordeiro: se não foste tu quem conspurcou a água foi o teu pai. Não digo que não tenham razão nalgum ponto do moralismo, no caso de me atribuírem, e só a mim, a responsabilidade dos meus atos, mas somente dos meus. Porém, eu posso ingressar no regime de indignidade se acusar em demasia os outros por tudo quanto acontece de mal, sem me interrogar até que ponto eu também terei o meu quinhão de responsabilidade pelas situações de injustiça, iniquidade e obscurantismo. E posso entrar no fosso da autoindignidade se me calo a tudo, se aceito tudo de forma acrítica, em nome da inevitabilidade: os cortes de salário e pensão; a subida calamitosa de preços; a onda de indisposição intergeracional; o ambiente de delação; a ameaça de desconforto, precariedade ou perda de emprego em compensação pela ousadia de erguer a voz contra os desmandos económicos, financeiros e políticos; a usura e agiotagem do capital sem rosto e ameaçador; a observância da disciplina partidária em questões de consciência; a subserviência política, laboral ou empresarial para obter ou manter o lugar vistoso (ainda que inútil) na pantalha da decisão. E pior ainda se, para lá da sujeição acrítica e interesseira, me disponho à desfaçatez da propaganda do sistema do empobrecimento generalizado e crescente, alegadamente porque o país gastara mais do que devia e podia e os credores têm direito ao ressarcimento de quanto generosamente emprestaram à perdulária República, que, pelos vistos, de tudo se deixou esbulhar alegremente e agora se sente orientada para o paraíso perdido do mar – sem marinha mercante, pesqueira e de guerra – na floresta que todos os anos arde ou no ar de quem venderam a ANA e querem vender a TAP!

É óbvio que, neste ambiente de degradação global, a austeridade deixa de ser a marca da gravidade ou da frugalidade para passar piedeticamente a caraterizar o empobrecimento até à miséria final, enquanto uns poucos se regalam à mesa do orçamento – tudo em nome do futuro de progresso, mas com um presente onde somente se percepciona o incómodo sem qualquer alívio.

Perante esta situação não vale a política do embalamento, do registo das inverdades por mentiras, dos cortes por roubos, dos regimes transitórios por regimes de espera sem fim.

Neste contexto, há que agitar a malta, há que animar a malta, cultivar a esperança e desencadear o processo de mudança, mobilizando tudo e todos!

Pro dignitate.