Francisco, “o guardião”?

18-02-2014 19:30

Francisco, “o guardião”?

Recaiu-me na mesa da reflexão o livro de Rómulo Cândido de Souza Palavra, parábola (da editora “Santuário”, Brasil: 1990), que li e reli nos finais do passado milénio; e o refrescamento da leitura do capítulo 41 levou-me à releitura da homilia do papa Francisco na celebração eucarística da inauguração solene do seu exercício do ministério petrino, a 19 de março de 2013. É verdade que o pontífice apresenta o pretexto circunstancial da celebração do homónimo de Ratzinger, o seu predecessor imediato, coincidente com a solenidade de São José. Todavia, parece não ter sido inopinada a escolha do dia, já que a opinião pública tinha sido advertida pelos competentes serviços do Vaticano de que a celebração não teria de ocorrer num domingo, sendo que o mais próximo do dia da eleição permitiria uma suficiente preparação do evento. Parece efetivamente que Francisco pretenderia deixar ao mundo uma mensagem petrina ligada à função de José, o “esposo da Virgem Maria e patrono da Igreja universal” (sic), que desvenda uma outra faceta da epígrafe evangélico-vaticana “Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam; et portae inferi non praevalebunt adversum eam (Mt 16,18).

Depois, de comentar a missão de José como o custos, guardião e protetor de Jesus e de Maria, o papa declara “mas vemos também qual é o centro da vocação cristã: Cristo. Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros, para guardar a criação”! E, mais adiante, esclarece: “a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Génesis e nos mostrou São Francisco de Assis”. E, quase no final, exclama: “Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados”. Estará então o papa consciente desta dimensão do serviço petrino, mas que não pode ser cumprido senão com e em cooperação solidária de todos.

Ora o predito livro explica o sentido do designativo que do hebreu passou ao grego e se diz Kéfas (petrus e petra, em latim), atribuído por Cristo a Simão Pedro. Estávamos atidos à fortaleza da rocha contra a qual não prevalecerão as forças do inferno (non praevalebunt), mas contra a qual poderão também estatelar-se os incautos, quiçá os mais frágeis. Que diz o livro, de acordo com as palavras do Dr Samuel, um hebreu russo e interlocutor de Rómulo? Responderei seguindo o autor, mas com as convenientes adaptações discursivas e de síntese.

A palavra kéfas, em aramaico, além de “pedra” ou “rochedo”, tem sobretudo o significado de “gruta formada na rocha” ou “rochedo escavado ou abobadado”. Eram abundantes na Palestina essas grutas rochosas, tendo o monte Carmelo mais de mil. Sem invalidar o texto evangélico da necessidade de construir a casa sobre a rocha firme e não sobre a areia movediça (cf Mt 7,24-27; Lc 6,48-49), há que esclarecer que as tais grutas rochosas (umas pequenas, onde mal cabia uma pessoa; outras bastantes grandes, podendo medir 14 metros de comprimento por 8 de largura e 6 de altura) serviam “para proteger os pastores e suas ovelhas, bem como viajantes e peregrinos, surpreendidos pela noite, pelo frio ou tempestades”. Mas também serviam (Para longe vá o agouro, em termos da Igreja Católica, a menos que se trate de refugiados e perseguidos pelas forças da iniquidade!), “para esconder, em todos os tempos, ladrões, bandidos, ou simples fugitivos em época de invasões, guerras perseguições”. Consta que Elias e Eliseu, numa dessas grandes cavernas, tinham uma escola de profetas.

O antigo testamento tem a palavra kéfas recenseada apenas duas vezes: no livro de Job, por ocasião das suas provações – “banidos da sociedade dos homens, são vaiados como se fossem ladrões, moram nas falésias dos barrancos, nas cavernas da terra e dos rochedos” (Jb 30,5-6); e no de Jeremias, na invasão dos caldeus a Jerusalém – “ao grito dos cavaleiros e archeiros, todo o país ficou em fuga; penetraram na selva, galgaram os rochedos, todas as cidades foram abandonadas e não ficou ninguém” (Jr 4,29). A versão grega, dos LXX, mostra que os tradutores anciãos conheciam bem o original hebraico: traduzem o kéfas de Job por trôglai petrôn – “cavidades das rochas” ou “cavernas”; e o de Jeremias, por spélaia – “grutas” ou “cavernas”. Tais palavras gregas persistem na língua portuguesa, em “troglodita” (habitante das cavernas – de “trogle”, caverna); e em espelunca (cavidade à maneira de caverna), onde o marginalizado não mora, mas se esconde, se refugia ou se abriga.

E o sábio continua a ensinar que a língua hebraica (habitualmente considerada pobre!) tem outros vocábulos para “rochedo”, como tsur e sêla, que significam “pedra maciça” ou “bloco compacto de rocha” e são utilizados sobretudo nos Salmos como símbolo da segurança que Deus oferece aos seus diletos. Mas kéfas não é tsur nem sêla, “rochedo maciço”, mas “rochedo escavado” ou “caverna”, “gruta”.

Então concluiremos que é necessário pôr em causa o entendimento comum de kéfas, se for tido como exclusivo. Assim, se a Igreja for um sobretudo um edifício construído sobre “esta pedra”, ou seja, em cima do rochedo, a tradução clássica tem sentido, mas é demasiado metafórica; se a lógica indicar que não se constrói nada em cima de uma gruta, mas que algo se guarda dentro de uma gruta, faz mais sentido a tradução sugerida pelo sábio. Efetivamente, Cristo nasceu dentro (e não em cima) da gruta de Belém, transformada em estábulo, emprestado por animais, mas sinalizada pelos anjos e pela estrela, visitada pelos pastores e aberta aos magos; foi sepultado numa gruta escavada na rocha, cedida por um amigo, visitada por mulheres e apóstolos; e a Igreja, na conceção bíblica não é um edifício (a não ser no sentido espiritual), mas a comunidade (de pessoas), o povo – que teve de viver em catacumbas. E as pessoas abrigam-se dentro da gruta e não em cima dela, que necessariamente, para servir de proteção, tem de – digo eu – ser forte, inabalável, mas sobretudo espaçosa, acolhedora, referenciada. É natural – penso – que, para “avisar” os outros de que a gruta está disponível e para os encaminhar para ela, é preciso sair dela e estar muito tempo fora dela, mas sem alguma vez a perder de vista!

Como complemento do seu raciocínio, o sábio assegura a índole poliglota de Cristo ou, pelo menos, que Ele “possuía uma intenção maravilhosa das palavras”, dado que a palavra de kéfas “tem rastros etimológicos em todas as línguas do mundo, desde o Egito antigo até às línguas modernas”. Em frente de uma estante com dicionários em egípcio, hebreu, árabe, grego, latim, assírio-babilónio, sânscrito, sírio, português, alemão, inglês, etc., o Dr Samuel queria mostrar toda a força da palavra kéfas através do paralelismo etimológico-fonético de diversas línguas. Deste modo, esta “palavra origina-se de um som clássico universal, que vem desde os egípcios e babilónicos até às línguas modernas”: kef, kep, keb, kev; guef, guep, gueb, guev; hef, hep, heb, hev. E “o sentido básico destes sons é: cercar, guardar, proteger, defender, envolver” – tais são as funções da gruta – tendo o hebraico combinado os fonemas k, g, f, h, b e v, aliados às vogais conhecidas, na escrita, como carateres massoréticos, de que resultaram múltiplas palavras cujo sentido passa por: palma da mão, cobertura, encobrimento, perdão, vaso, resina, betume, cola, ramo, palmeira, asa, curva, cerco, proteção, defesa, esconderijo, seio, ninho, cova, poço, abrigo, refúgio…

Ora, o kéfas de Mateus não é uma rocha maciça, onde se constrói por cima um edifício, mas uma gruta protetora, escavada no rochedo, que cobre, protege, defende, como a palma da mão de Deus, os ramos da palmeira, as asas da ave sobre os filhinhos e sobre o ninho ou como o betume da arca de Noé.

Sendo assim e retomando o sentido do ser e da missão da Igreja, voltemos às palavras de Francisco no ato inaugural do seu pontificado:

Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito económico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos «guardiões» da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo! Mas, para «guardar», devemos também cuidar de nós mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida […]. Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura.

E especificando o sentido da função de guardião (lembram-se os lamecenses do título dado ao superior da comunidades dos franciscanos na cidade, o guardião – que não o guarda-livros, guarda-redes, guarda-fios, guarda-rios ou guarda-freios?), o papa afirma:

[…] hoje, perante tantos pedaços de céu cinzento, há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança. Guardar a criação, cada homem e cada mulher, com um olhar de ternura e amor, é abrir o horizonte da esperança, é abrir um rasgo de luz no meio de tantas nuvens, é levar o calor da esperança! 

Não teremos aqui material de reflexão sobre uma notável vertente da teologia sobre a Igreja (provavelmente mais mater que magistra) e sobre o papa (provavelmente mais papá que sumo pontífice), aceitável por todos os cristãos e que Francisco parece querer agarrar, mesmo quando manda que se parta para as periferias sejam elas quais forem, deixando o conforto do centro, que não a sua espiritualidade?