Natal pro populo
Natal pro populo
A primeira ideia que me surgiu ao tentar esta reflexão foi a de a intitular como natal popular, natal laico, ou natal católico, natal holístico ou natal universal. Porém, dei-me conta de que tais expressões, por si só, dadas as conotações que foram adquirido, se prestavam desnecessariamente a equívocos ora dispensáveis.
Natal popular é, entre nós, aquele que passa pelo povo e que o toca sem o atingir em profundidade perdido, que ele anda nas tarefas de venda / compra, na troca de presentes, nas viagens, nas manifestações folclóricas dos cantares e coreografias facilitadas pela luminotécnica e pela sonoplastia, pelos concertos de natal e, ainda bem, em tantos casos, pela maior atenção aos pobres, novos ou antigos. Mas o Natal, não podendo ser populista, é radicalmente popular como veremos, sobretudo, se iluminar, alimentar e consolidar o destino que o povo tem de ter em suas mãos, sem o alienar ou hipotecar. “Salus reipublicae (populi) lex suprma esto” – era o lema dos romanos.
Chamar-lhe laico pareceria chamar-lhe arreligioso, o que de todo não quero, antes pelo contrário, mas a modernidade induziria a esse entendimento ou a reduzir o Natal à mera esfera privada, perante a encomiástica indiferença de todos, sobretudo os estratos do Estado. E, se o Natal tem de abanar a fundo as consciências, não pode confinar-se às paredes bafientas das sacristias ou dos majestosos templos, tantos deles carregados de inefável museologia e a apontar pelo vazio de que se revestiram o caminho do inferno. Mas, se laico ou leigo é aquele que se sente membro do povo (laós, no grego), de facto e de pleno direito, então o Natal é visceralmente laico ou laical, porque o Natal é a festa do povo no melhor dos sentidos, mormente o da esperança operativa.
Dizer católico do Natal, que o é efetivamente, porque estendido a todo o mundo, poderia fazer crer, embora involuntariamente, que seria “presa” monopolizada dos católicos, sem que os crentes de outras religiões, mesmo das cristãs, ou os não crentes tivessem acesso à festa – o que seria totalmente antievangélico. Mas, como vimos, o Natal é e fortemente católico, pois, “Deus não faz aceção de pessoas, mas, em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça, é-Lhe agradável”, diz Pedro (Act 10, 34-35)! Não tendo os cristãos o direito de o imporem, também será desajustado que alguém lhe queira fechar a porta ou tenha a veleidade de inventar milhentas maneiras de tudo fazer para que o Natal seja passado de forma que não se pareça em nada com o Natal, numa perspetiva indiferentista ou mesmo antiteísta.
Entendê-lo como holístico seria colocá-lo artificiosamente em contraposição com outras realidades consideradas como partes (merónimos), correspondendo o Natal ao todo enquanto soma de várias parcelas. E a economia da salvação não pode considerar, Deus, o mundo ou o homem como parcela do que quer que seja, antes, individualidades em pleno. Mas o Natal é um todo a proclamar Urbi et Orbi a paz e a liberdade que o Príncipe da Paz oferece a todos os de boa vontade. – “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” (Jo14,27) – garante-nos o Cristo; “Cristo libertou-nos para que sejamos verdadeiramente livres (…) “Irmãos fostes chamados à liberdade” (Gl 5,1.13) – ensina Paulo.
E o Natal é universal? Sim, mesmo no sentido da filosofia escolástica enquanto se aplica a todos e a cada um. Porém, não basta que seja aplicável. Importa que se aplique e que seja plenamente abraçado, vivido e missionado por todos e por cada um, salgando as vidas das pessoas e dos povos com a força do Evangelho, fermentando-lhes as ações e iluminando-lhes os caminhos. O Natal é verdadeiramente universal!
Temos, várias vezes, acentuado o caráter do Natal como festa dignidade do homem, festa da condescendência divina, momento propício à reunião da família. Chegámos a sublinhar o Natal como ósculo de Deus ao homem que é necessário salvar ou o primeiro passo de Deus na Terra para a redenção da Humanidade a culminar na árvore da cruz. Porém, não podemos olvidar a dimensão popular do Natal, pois ele é a realização da profecia de Isaías: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz” (Is 9,2) e o desígnio revelado por Paulo na carta a Tito: “Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens” (Tito, 2,11).
Não é sem razão que Francisco, o novo apóstolo das Gentes, afirma com toda a clareza que “Natal é o encontro de Deus com seu povo” (…) “Para mim, o Natal sempre teve a ver com isso: contemplar a visita de Deus a seu povo” (Apud Andrea Tornielli).
Por isso, o Natal é popular, laical, católico, holístico e universal – porque é divino, pessoal, familiar, santo, apostólico e missionário. E daí as suas consequências terão de ser também as seguintes:
“Ergue os teus olhos, a luz surgiu. Hoje nasceu o nosso Deus.
Dias de paz amanheceram. Hoje nasceu o nosso Deus.
1. A terra foi dividida com justiça e cada mão recebeu o pão igual. Eis o sinal do nosso Deus.
2. Hoje caíram as grades das prisões e não ouvimos o grito das torturas. Eis o sinal do nosso Deus.
3. A voz do povo foi livre na cidade e cada homem o homem encontrou. Eis o sinal do nosso Deus.
(Cf Ferreira dos Santos, in “Cantemos todos”)