Nossa Senhora do “O”, da Expectação ou do Advento

17-12-2013 23:19

Em tempos idos, no segundo milénio, um exímio professor de História em escola secundária estranhava o facto de o também licenciado em História pároco da freguesia onde o docente residia com a família, alinhar com o povo na designação de Nossa Senhora da Conceição, com santuário próprio servido por duas capelas e parque circundante lá no Cabeço da freguesia, quando na douta opinião do estudioso de História se tratava da Senhora do Ó. Ao seu afiançamento com base nos motivos escultóricos da imagem exposta ao culto público eu opunha a não rara mistura de motivos iconográficos, fruto da inicial leitura catequética da imagem e da contaminação artística, bem como o facto de se tratar da mesma entidade – a Virgem Maria – com vários títulos e, por consequência, várias imagens, a ponto de, por vezes, os populares se perderem na discussão sobre qual a mais santa, se a Senhora da Lapa, se a Senhora de Fátima, se a Senhora do Rosário, se a Senhora das Necessidades, etc. Eu até argumentava que o dito professor, sendo o mesmo, era passível de várias denominações, todas sérias: colega, para os professores; stor, para os alunos; freguês, na loja de comércio; pai, para os filhos; marido, para a esposa; filho, para os pais; munícipe para o presidente da câmara; paroquiano, para o pároco; e assim por diante.

Quanto à designação de Senhora do Ó, em tempos, os guias do museu de Grão Vasco apontavam duas explicações: a forma arredondada do seio da senhora grávida bem perto do momento de dar à luz; e a teológica afirmação da virgindade de Maria antes, durante e depois do parto, a assimilar à letra “O” o processo de, por obra do Espírito Santo, o Cristo ter entrado no ventre materno e  dele ter saído por divina graça tal como o sol pela vidraça.

Ora, a origem da denominação de Nossa Senhora do O é muito mais histórica, litúrgica e teológica do que o sustentado acima, como, a seguir, discriminamos.

Nossa Senhora do O é uma devoção mariana surgida em Toledo, na Espanha, remontando à época do X Concílio, convocado pelo rei Recesvinto no ano de 656 e presidido pelo arcebispo Santo Eugénio, quando se estipulou que a festa da Anunciação fosse transferida para o dia 18 de dezembro. Sucessor seu no cargo, seu sobrinho, Santo Ildefonso, determinou, por sua vez, que a festa se celebrasse no referido dia, mas com o título de Expectação do Parto da Beatíssima Virgem Maria. Pelo facto de, no ofício de vésperas dos dias 17 a 23, se proferirem as antífonas maiores (hoje, antes do cântico neotestamentário do Magnificat da Virgem Maria), iniciadas pela exclamação (ou suspiro) “Oh!”, o povo teria passado a denominar essa solenidade como Nossa Senhora do Ó, enquanto a Liturgia se lhe referia abreviadamente como festa da Expectação. E a missa, em que se lia o evangelho da Anunciação, escrito nos livros medievais a letras douradas, dizia-se missa áurea. Hoje, no missal romano, renovado segundo os ditames do Concílio Vaticano II, a missa cujos textos mais se aproximam da missa áurea, celebra-se a 20 de dezembro.

Em Portugal, o culto à Expectação do Parto ou a Nossa Senhora do Ó, ter-se-ia iniciado em Torres Novas, onde a imagem da Senhora era venerada na capela-mor da Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo. Esta imagem era conhecida à época de D. Afonso Henriques por Nossa Senhora de Almonda  (devido à proximidade do rio Almonda), à época de D. Sancho I por Nossa Senhora da Alcáçova  (c. 1187) ou, a partir de 1212, quando se lhe edificou (ou reedificou) a igreja, por Nossa Senhora do Ó. Frei Agostinho de Santa Maria descreve a imagem nos seguintes termos:

É esta santa imagem de pedra, mas de singular perfeição. Tem de comprimento seis palmos. No avultado do ventre sagrado se reconhecem as esperanças do parto. Está com a mão esquerda sobre o peito e a direita tem-na estendida. Está cingida com uma correia preta lavrada na mesma pedra e na forma de que usam os filhos de meu padre Santo Agostinho.

Sob este título, é a padroeira de 23 freguesias portuguesas. Na Madeira, as comunidades continuam a promover as tradicionais ‘missas do parto’, em regime de novena preparatória do Natal, que decorrem habitualmente ao início da manhã. As ‘missas do parto’ são uma tradição particular do arquipélago, um momento oportuno para cantar versos populares em honra da Virgem Maria e do Menino Jesus, alguns dos quais remontam aos primeiros povoadores. Acresce dizer que a estrutura da novena contém a invocação ao Espírito Santo, o canto da ladainha, o retrato da Senhora e a missa, onde também são entoadas loas à Virgem, ao seu parto e à alegria do nascimento de Jesus.

A imagem da Senhora do Ó apresenta sempre a mão esquerda espalmada sobre o ventre avantajado, em fase final de gravidez. A mão direita pode também aparecer em simetria com a outra ou levantada. Encontram-se espécimes com esta mão segurando um livro aberto ou também uma fonte, ambos significando a fonte da vida.

No começo do século XIX, o culto mariano começou a estimular o caminho para a definição dogmática da Imaculada Conceição, o que não combinava com aquela figura em estado de adiantada gravidez, estimada pelas mulheres à espera da hora do parto. Assim, muitas imagens foram trocadas pela de Nossa Senhora do Bom Parto ou Nossa Senhora do Bom Despacho, vestida de freira, com o ventre disfarçado pela roupa, ou mesmo pela imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, mais congruente com os ventos moralistas de então. Por outro lado, não dava esculpir uma imagem da imaculada conceição (stricto sensu), um ícone que realisticamente teria de ser microscópico (não exponível ao culto), e muito menos a da ação marital de Joaquim e Ana, ainda menos decorosa para o culto de “dulia. Havia que tirar partido dos elementos da economia da salvação: imagem de donzela na força da bela juventude, a “cheia de graça”, como a denominou o anjo Gabriel no momento da saudação à anunciada; mulher com o pé a esmagar a cabeça envenenada do dragão enganador, conforme a previsão do protoevangelho (cf Gn, 3,15); a senhora da conceição virginal de Jesus, espelhada na gravidez, em que se revê por analogia o momento da imaculada conceição; ou a senhora com o menino ao colo, pois, segundo Duns Scoto, era sumamente conveniente que Deus preservasse Maria do pecado original, pois a Santíssima Virgem era destinada a ser mãe do Seu Filho.

Somente em finais do século XX se voltou a falar e pesquisar sobre a temática da Senhora do O, da Expectação e do Advento, tendo-se encontrado imagens antigas enterradas sob o altar de igrejas. É Senhora do SIM (do Ok) àquele que é o Princípio e Fim, A (alpha) e Ω (ómega), a senhora profetizada no Génesis como a figura associada à descendência da mulher e a mulher do retorno (a volta em O) à preternaturalidade no fim do tempo descrita no Apocalipse (cf Apoc 12,1-2 e13-14).

A Encarnação é também o mistério da colaboração responsável de Maria na salvação recebida como dom. Revela-nos que Deus, para salvar-nos, escolheu essa pedagogia, a de passar através do homem: "... e o Verbo se fez carne e veio habitar no meio de nós... e nós vimos a sua glória" (Jo 1, 14).