O "sermão" do Senhor Joaquim

16-01-2014 23:43

O "sermão" do Senhor Joaquim

 (Era o Sr. Joaquim um empregado do Seminário Maior, muito engraçado, mas com falha mental acentuada e notória. Nos tempos livres convivia com os alunos e divertia-os com as suas histórias interessantes, pelos comentários que nelas intercalava. O presente discurso, de 1971, foi proferido, de cima de uma pedra a servir de púlpito, num momento em que os seminaristas esperavam o autocarro que a Associação do Coração de Jesus (ou Centro do Apostolado da Oração) da freguesia da Sé da cidade episcopal fretara para os transportar a uma cerimónia na Sé Catedral respetiva. Ele revela a coincidência que alguns estabeleceram, quem sabe se com razão, entre a adúltera e Maria Madalena; e na sua “amência” denota uma perspicácia que escapa frequentemente aos ditos inteligentes da ordem social.

Eu transcrevo “ipsis verbis”, naquela linguagem beiraduriense, de acordo com os registos patentes num velho caderno já coçado do tempo. Limito-me a colocar a pontuação que julgo pertinente e a aspar as palavras de significado dúbio a nível regional.)

Eis o texto:

Caríssimos irmãos, piedosos cristãos!

O Evangelho tem coisas maravilhosas. E então o de São João é de se lhe tirar o chapéu, que é o que eu faço sempre, porque eu não sou como os outros, os que não têm religião ou que não lhe ligam.

Vou falar-vos da adúltera Madalena. Como sabeis, o adultério vai contra todas as leis divinas e humanas, é um pecado muito grande, tão grande que nem cabe na terra nem no céu nem no próprio inferno. Eu, meus irmãos, garanto-vos que, para bem da minha alma, antes queria mil vezes ter relações com quinze raparigas solteiras uma vez em cada mês, que uma só vez em dez anos com uma mulher casada.

Mas vamos ao ponto do nosso sermão:

Um dia, uma vez, estava Nosso Senhor a ensinar no templo de Jerusalém. As pessoas estavam “apalermadas” a ouvi-lo. Ele falava muito bem, muito melhor que os senhores padres de agora: alguns até nem sabem o que estão a dizer. E pregava de graça, ninguém tinha que lhe pagar.

Ele estava a ensinar. De repente, ouviu-se um barulho muito grande. O caso não era para tanto. Os sacerdotes traziam de rastos uma mulher apanhada em fragrante adultério. O que é que os padres andariam a fazer para a apanharem em fragrante! E o outro, o homem? Que eu saiba a mulher, para fazer adultério, não estava sozinha, tinha que estar com um homem! Já sei. Deixaram-no fugir por camaradagem: “Raspa-te, antes que seja tarde”!

Pois aqueles homens, que mal “ofegavam” por causa da pressa, por apanharem Jesus ainda a falar (para lhe pregarem uma valente partida) e do cansaço, porque a mulher era pesada e resistia, berraram:

– Divino Mestre, nós apanhámos esta mulher em fragrante adultério. Segundo a Lei de Moisés, ela deve morrer. Temos que lhe “arrumar” com pedras. Tu que dizes?! Se ela não fosse apanhada, não tinha mal, mas foi apanhada...

Nosso Senhor olhou bem para ela e para eles. E disse:

– Aquele que estiver sem pecado, “arrume-lhe” a primeira pedra!

E agachou-se e pôs-se a escrever com o dedo na areia. O que ele escrevia não sei. Eu não vi. E, se visse, não me valia de nada: eu não sei ler, sou “alfabético”.

Depois, ele estava a escrever na areia dentro do templo. Aquilo era como a cabeça de muitos homens de agora: cheia de areia.

Os homens olhavam, espreitavam e iam saindo um de cada vez, quem sabe se a pensar nas malandrices que tinham feito e que o Mestre estava a escrever no chão... e depois, apagou tudo. Por isso, mais ninguém ficou a saber o que lá estava a escrever.

Jesus ergueu-se e viu que Madalena estava sozinha. Virou-se para ela e perguntou:

– Então, Madalena, ninguém te “arrumou”?

– Não, Senhor! – Respondeu Madalena – Ninguém me “arrumou”!

Então Jesus acabou:

– Pois não, Madalena, ninguém te “arrumou”: o único que te podia “arrumar” era eu. Mas, já que ninguém te “arrumou”, eu também não te “arrumo”. Madalena, vai em paz. Vai à tua vida e não tornes a pecar! Ganha juízo.

E ela foi-se embora e Nosso Senhor não lhe “arrumou”. Não lhe “arrumou” pedras, é claro!...