O mugido da mudez

11-02-2014 21:02

O mugido da mudez

Passa hoje o primeiro ano sobre o anúncio da renúncia de Bento XVI ao sumo pontificado e não sobre a renúncia em si, como propala a comunicação social, que essa só se efetivou no dia 28. Parece que alguma da opinião pública, quiçá por se sentir aliviada com a atitude do alemão pastor, pretenderá agora fazer render psicologicamente o tempo que transcorreu sobre o evento.

Sem enaltecer em excesso o gesto ou sem querer subvalorizá-lo, pois, a sua relevância não carece da nossa opinião pessoal, gostava de o situar na data simbólica do dia 11 de fevereiro. É o dia da memória litúrgica de Nossa Senhora de Lurdes, aparecida em Lourdes, França, na gruta de Massabielle, na margem esquerda do Gave, no ano de 1858, a Bernardette Soubirous, humilde e adoentada pastorinha. Quer pelas palavras da mensagem quer pelos fenómenos miraculosos relatados, percebe-se que o núcleo fundamental da visitação consiste na santidade de vida, forjada na inocência do coração (“Eu sou a Imaculada Conceição” – é assim que se identifica a visitante), alimentada pela oração (anote-se a simplicidade do desfio do rosário) e que redunde na ação dedicada aos pobres e doentes, os destinatários privilegiados do cristianismo. Na sequência dos fenómenos do Gave (é bom não confundir com aquela entidade que tem dado à luz provas de aferição, exames nacionais e a abortada prova de avaliação de capacidades e conhecimentos dos alegadamente pré-docentes), o magistério eclesiástico proclamou o dogma da Imaculada Conceição, patrocinou as peregrinações à gruta e ao santuário que se erigiu na sua adjacência e instituiu o dia mundial do enfermo (nas últimas décadas, ocasião de eloquentes mensagens pontifícias sobre o valor do sofrimento e o sentido da limitação humana).

Ora, foi exatamente neste dia do enfermo e do doente que Bento XVI leu aos cardeais a sua DECLARATIO em que anuncia a sua intenção inabalável de renunciar ao exercício do ministério petrino, aprazado para o dia 28 do mesmo mês. Apesar de o seu auditório não ter sido muito numeroso (constituído pelos cardeais convocados e pelos jornalistas acreditados permanentemente no Vaticano), a alocução constitui um ato solene, já que foi redigida e proferida em latim, a língua oficial da Igreja Católica Latina. Recordo o episódio da jornalista que, por ter conhecimentos de latinidade, topou quase de imediato o teor das palavras que Bento pronunciara, pelo que, ainda em lágrimas de comoção, não deixou de questionar o porta-voz da sala de imprensa e de informar quanto antes a redação do seu periódico. Depois, há que reparar que o texto, embora datado da véspera, é pronunciado a 11, aduzindo realisticamente a falta das forças físicas e do espírito para prosseguir com a eficiência conveniente o múnus que fora confiado ao papa, ou, seja, o seu redator e proferente assume-se como doente, como marcado pela limitação humana. Por isso, renuncia ao ofício, que não ao dever, dado que se remete ao silêncio e ao firme propósito de não mais interferir (“E entre vós, entre o Colégio Cardinalício, está também o futuro Papa ao qual já hoje prometo a minha reverência e obediência incondicionadas” – 28/02, da saudação aos cardeais). Porém, não abdica do dever de zelo pelo bem da Igreja: “Mas quero ainda, com o meu coração, com o meu amor, com a minha oração, com a minha reflexão, com todas as minhas forças interiores, trabalhar para o bem comum, o bem da Igreja e da humanidade” – 28/02, da saudação aos fiéis de Albano. Já na aludida declaratio se propõe “ Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”.

E, não obstante a lúcida consciência das suas limitações, não deixa de assinalar a inteira liberdade com que toma formalmente a sua grave decisão: “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus […], bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005”.

Quase um ano depois, após um intervalo de quase esquecimento e até detração da sua obra e personalidade, que não da parte de Francisco, está já em curso um esforço de avaliação deste denominado pontificado de silêncio, esperando nós que se recuperem os conteúdos das mensagens de Bento XVI, o alcance das suas iniciativas e a exemplaridade do seu perfil teológico e pastoral (o pontificado da palavra). Penso que, para enaltecer a personalidade e a obra de alguém, não se requer o aviltamento ou o olvido de e outrem.

Sobre este juramento e prática de mudez silenciosa (vemos esporadicamente o papa emérito, mas não o ouvimos), lembro-me daquilo que tradicionalmente se afirma que Alberto Magno terá comentado acerca do seu discípulo Tomás de Aquino, a quem os companheiros apelidavam de “boi mudo”, dada a sua intrigante discrição, habitual silêncio e avantajada corpulência: “Este, a quem chamamos de boi mudo, mugirá tão forte que será ouvido no mundo inteiro”. E verdade é que o magistério eclesiástico não deixa de o citar recorrentemente e assumir as suas formulações teológicas e a filosofia aristotélico-tomista (estruturante do pensamento e intérprete do mundo e do homem) continua a ser objeto de estudo, sobretudo em países menos acomodados intelectualmente. Lembro-me de que, por ocasião da revolução abrilina, alguns comentadores utilizavam a expressão “aqui e agora”, que não passa da tradução literal de uma expressão recorrente na filosofia escolástica “hic et nunc”.

De Bento XVI gosto de dizer que se espera que o silêncio a que se votou nos últimos tempos se converta em proclamação em alta voz do produto da sua investigação e formulação teológica e, mau grado alguns controversos contornos de personagem, a exibição apostólica de seu perfil sirva de iluminação complementar da caminhada da Igreja peregrina e uma significativa batelada de pedradas no charco da calamidade ética que perpassa o mundo por culpa dos homens que, chamados a servir, fazem questão em se servirem de quem obrigam a servir.

Há não muitos dias referi o testemunho da diretora do Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil e Vocacional de Aveiro, Ondina Matos, que fez, em poucas palavras, uma boa resenha sobre o pontificado de Bento XVI – o que ainda não vi da parte de especialistas, que parecem, salvo honrosas exceções, exclusivamente focados no perfil insinuante, no discurso menos formal e no estilo galvanizador do papa argentino. Hoje recordo o que vi em https://reparatoris.com, sobre Megan Hodder, que do novo ateísmo esclarecido passa convictamente ao catolicismo, depois de ter lido Bento XVI, nomeadamente o famoso discurso em Ratisbona e o livrinho Sobre a consciência:

Há cerca de dois ou três anos ninguém poderia prever isto, porque Megan não recebeu absolutamente nenhuma educação cristã e lia com assiduidade e gosto autores de divulgação do “novo ateísmo”: Dawkins, Harris, Hitchens… Mas tudo mudou quando decidiu que para poder zombar da Igreja Católica, grande símbolo da irracionalidade, devia ler diretamente Bento XVI. E aí foi onde começou uma conversão marcada pela lógica, razão e pensamento.

Ela própria confessa:

“Esperava e desejava mostrar sua irracionalidade e preconceitos, para justificar meu ateísmo. Mas, em contrapartida, um Deus que era o Lógos Se me apresentou a mim; não como um ditador sobrenatural que esmaga a razão humana; mas a fonte de bondade e verdade objetivas, que Se expressa a Si mesmo, para a qual se oriente a nossa razão, e onde alcança sua plenitude; uma entidade que não controla a nossa moral de uma maneira robótica, mas que é a fonte da nossa perceção moral…”.

E que nos diz sobre Tomás de Aquino o papa da relação entre a fé e a razão? Eis um excerto da sua catequese de 2 de junho de 2010, na Praça de São Pedro:

Em última análise, Tomás de Aquino mostrou que entre fé cristã e razão subsiste uma harmonia natural. E foi esta a grande obra de Tomás, que naquele momento de desencontro entre duas culturas – naquele momento em que parecia que a fé devia render-se perante a razão – demonstrou que elas caminham pari passu, que, quanto parecia ser razão não compatível com a fé não era razão; e aquilo que parecia ser fé não era tal, enquanto se opunha à verdadeira racionalidade; deste modo, ele criou uma nova síntese, que veio a formar a cultura dos séculos seguintes.

E o mugido da mudez dos grandes homens irromperá qual argênteo discurso do silêncio, que é de ouro!