O Natal na literatura dos portugueses

27-11-2013 00:07

 

    Já por toda a lusa medievalidade, como o comprovam os cancioneiros da época e outros registos de textos coevos, passando por Gil Vicente, Camões e Bocage, bem como por outros grandes escritores dos séculos do nosso classicismo e do inefável século XIX, para ganhar fulgor singular em Régio e Torga, o Natal foi um dos temas maiores da literatura portuguesa – modulando muita da poesia lírica, enformando muito do teatro produzido e logrando lugar relevante na variegada ficção narrativa, em que sobressaem as modalidades do conto e da novela.

    A produção literária atinente ao Natal ou à Natividade, como vem mencionado nalguns espécimes, configura formulações diversas, a partir da piedade originária alimentada pelo texto bíblico, pela liturgia e pela religiosidade popular, num misto de expressão de fé e mistério, compenetração e espetáculo. Testemunha esta asserção quer a literatura culta e de autor, quer a de realização anónima e popular. E, mesmo quando o tema não é tratado ex professo, frequentemente serve de motivo para alusões e evocações.

   A literatura contemporânea de modo nenhum abandonou a perspetiva deste quadro de referência. Ao contrário da Páscoa, cuja importância ficou reforçada no discurso teológico, salientando o seu alcance salvífico e escatológico e afirmando a sua centralidade no âmbito do mistério cristão, mas confinando-se quase somente à literatura religiosa, o Natal continua a marcar presença anímica na poesia e no conto, na crónica memorialista e impressionista, no teatro e na música. Todavia, o arquétipo do discurso literário natalino nem sempre aparece ligado à religiosidade confessada ou mesmo ao dinamismo do sagrado, compaginando a propiciação de energias, manifestações e efusões de realização meramente humana, de índole filantrópica e folclórica.

    No entanto, não se verifica sistematicamente a recorrência dessa desvinculação do espiritual. A literatura dita de afetos, ora instrumental ora próxima da condição humana, alia-se aos ditames do conforto psicossomático, da preservação e incremento das tradições, da restituição do moral, do diálogo com os homens, da opção pelos pobres, doentes e marginados. Mas, não raras vezes, ela vive e revive a crença explícita na criancinha de Belém como o protagonista do primeiro passo humano de Deus no mundo para a redenção do homem, espelhando a singeleza e complexidade da alma pós-moderna a clamar pelo direito de Deus, realizável quando for cumprido o direito do homem, no ganho tridimensional da espiritualidade: pessoa, mundo e Deus.

  O vigor da temática do Nascimento de Jesus e das exigências da consoada familiar solidária com os deserdados da sorte antecedeu, saudou e acompanhou a rutura revolucionária dos anos 70 do pretérito século XX. Mesmo institutos públicos e instituições privadas de projeção pública promoveram a publicação de várias antologias de textos para e sobre o momento natalício. E a panóplia de poetas e contistas é abundante e variada. Nela figuram nomes de referência, como A. J. Vieira de Freitas, Agustina Bessa Luís, Alçada Baptista, Alfredo Vieira de Freitas, Almeida Faria, Ana Hatherly, António Aragão, Cabral Nascimento, Carlos Nogueira Fino, Carvalho Jordão, David Mourão-Ferreira, Dalila Teles Veras, Fernando Assis Pacheco, Florival de Passos, Herberto Hélder, Irene Lucília, João Carlos Abreu, José Agostinho Baptista, José Cardoso Pires, José Régio, José Tolentino Mendonça, Mário Cláudio, Miguel Torga, Nuno Bragança, Sophia de Mello Breyner Andresen e Vergílio Ferreira e muitos outros.                                                               

    Surgem livros consagrados, no todo ou em parte, a esta temática por autores singulares, como longa noite novo dia, de António Sousa Freitas, contos de Natal, de Domingos Monteiro, Natal, de João Araújo Correia, o cancioneiro de Natal, de David Mourão-Ferreira, retábulo para um íntimo Natal, de A. M. Couto Viana, até à infância do que nasci, de Natércia Freire, cancioneiro, de Cabral Nascimento.  

   Com típica especificação religiosa, o Natal inspira deliciosos poemas e narrativas, entre outros, a Tomaz Kim e Jorge Barbosa, a Daniel Filipe e a Merícia de Lemos, a Miguel Trigueiros e Vasco Miranda, a António Gedeão e Sophia Andresen, a Urbano Tavares Rodrigues e Natália Nunes, a Amândio César e Manuel Boaventura.

    Em maré finissecular, pululam antologias globalizantes sobre o Natal: na novelística portuguesa, de que é bom exemplar a coletânea publicada pela Ed. Arcádia em 1978, com estórias de Afonso Botelho e Agustina, de Álvaro Manuel Machado e A. Alçada Baptista, de David Mourão-Ferreira e Domingos Monteiro, de Fausto Lopo de Carvalho e Fernanda Botelho, de João de Araújo Correia e João Maia, de José Martins Garcia e Luís Cajão, de Mário Braga e Miguel Torga; e na poesia portuguesa, de que é merecedor de destaque a compilação de Luís Forjaz Trigueiros, em 1987. É certo que muitos escrevem na perspetiva da laicidade e descomprometimento religioso, sentindo a genuína pulsação das gentes, e outros o fazem numa perspetiva irónica e crítica, ao serviço da denúncia das incoerências e injustiças sociais e da onda de exploração larvada pela hipocrisia do epifenómeno religioso. Mas não deixa de refletir o desafio vicentino Se viras o cachopinho / tam fermoso e sesudinho / filho de Nossa Senhora, aquele rosto de esperança perante um mundo em conflito e desvario, e contribuir para o retorno dos crentes à pureza e implicância social da verdadeira religião, conforme a formula o apóstolo São Tiago.

    E, no dealbar do século XXI, surge discreta e abrangente, lúcida e serena, a Antologia de Vasco da Graça Moura subordinada ao título Natal… Natais, oito séculos de poesia sobre o Natal, que, iniciada com Afonso X, o Sábio, inclui 202 textos de 130 poetas, numa linha de continuidade integradora da cultura portuguesa, terminando com Rui Lage e Pedro Sena-Lima, que iniciaram publicação em livro entre os anos de 2002 e 2005. Por ela deambula e perpassa o Natal inocente e extasiante, o da experiência íntima e interpessoal, o da eloquente representação histórica ao estilo do franciscanismo, o da comunhão com a natureza, o da solidariedade com os menos bafejados pela sorte, o do compromisso com a vida.