O Papa Francisco e a pobreza

05-02-2014 15:34

O Papa Francisco e a pobreza

Todos nos lembramos do motivo da adoção do nome Francisco por Bergoglio no conclave que o elegeu para Bispo de Roma, o pedido do cardeal que lhe estava mais próximo a clamar que não se esquecesse dos pobres. De facto, Francisco de Assis é o protótipo daquele que, não sendo Deus, mas tendo nascido na condição de rico e socialmente bem colocado, abraçou a pobreza para, de mão dada com esta excelente dama, empreender a renovação da Igreja.

A princípio, recolhido em oração na degradada ermida de São Pedro Damião, ao escutar a voz do céu apelante “Francisco, reconstrói a minha Igreja”, o próximo futuro fundador de uma das duas ordens mendicantes, pensava tratar-se da reconstrução física daquele minúsculo edifício onde de vez em quando se reunira a “Igreja Peregrina de Deus”. Porém, depressa se lhe abriram os olhos da fé apostólica e com um grupo de companheiros ousou encetar a caminhada irreversível de, à semelhança do Cristo pobre em absoluto, inteiramente casto e “obediente até à morte e morte de Cruz (Fl2,8), reformar a Igreja Católica. A sua metodologia, mais do que nas palavras, consistia na atitude de abraçar o mundo, o envolver com o olhar do Evangelho e, em mudo sermão, lembrar à estrutura eclesiástica que, mais do que a Cruzada ou o poder, era necessário apostar no serviço e colocar em proveito dos pobres os recursos, que todos sabemos serem, em última análise, património de todos. Para tanto, era necessária a transmutação das mentalidades, dos corações e das atitudes cristãs – remontar às origens do cristianismo – o que não se afigurava nada fácil.

Porém, tal como o status ecclesiasticus de quando em quando se cola aos poderes até se guindar à posição hegemónica, também os companheiros de sucessão franciscana foram transformando a pobreza em riqueza a ponto de no século de seiscentos estarem mais vocacionados para o ensino dos filhos de gente mais rica, ficando o cuidado dos pobres disponível para a recém-constituída sociedade jesuítica, que votava a obediência ao Papa, em adição aos conselhos evangélicos.

A História, que muitos dizem que não se repete, dá muitas voltas e os membros das diversas agremiações de vida consagrada e apostólica, que fazem gala de seguir a pureza evangélica cada uma a professá-la alegadamente de modo mais eminente, entrecruzam-se surpreendentemente na assunção de carismas. E o conclave de 13 de março do ano da graça de 2013, apresentou ao mundo um Sumo Pontífice jesuíta, agarrado à singeleza da túnica dominicana e com nome e postura tão franciscana que alguns (agora extaticamente arrebatados pelo discurso papal e seu novo estilo) se questionaram sobre a profundidade da sua formulação teológica.

E que pretende este papa? Que a Igreja, mesmo com o risco de ficar acidentada, não se amolde à comodidade do centro, mas vá a todas “as periferias”, é claro sem perder de vista e de coração o centro donde irradia a força do Espírito. Enfim, quer que os pastores o sejam, mas com o odor das ovelhas!

E este papa dos pobres (cujo universo os governos de muitos estados do nosso mundo não se importam de engrossar cada vez mais), a par do anúncio da esperança por que vale a pena os homens comprometerem-se na transformação deste mundo cão, denuncia a economia que mata, pisando tudo e espezinhando todos, captando para uns o lucro desmesurado, imediato e fácil, e faz o apelo ao regresso às malhas da ética de matriz antropológica.

E, enquanto batem palmas às invectivas papais, os poderes políticos, em obediência ao neocapital sem rosto, mas com músculo e, de vez em quando, com mansas falinhas de incentivo à perdulariedade crediária a pagar dramaticamente em futuro próximo, progridem com a sua cruzada de disfarce da realidade, fazendo uma leitura mascaradora dos números e, perante o incómodo do presente, entretêm o povo com a promessa da comodidade do progresso futuro.

Entretanto, Francisco escreveu a sua primeira mensagem quaresmal para 2104, a 26 de dezembro do ano transato. Não posso deixar de destacar a relevância simbólica deste dia. É o dia do martírio do diácono Estêvão, o designado como protomártir.

Ora, nos primeiros tempos do cristianismo, a principal função diaconal era o serviço das mesas (para que os apóstolos se aplicassem inteiramente à oração e ao ministério da Palavra – Act 6,4). Nesse serviço das mesas, as tarefas prioritárias eram a distribuição equitativa e a especial atenção aos pobres. Ainda hoje quando se quer acentuar a dimensão de serviço da Igreja se fala da “diaconia”. E consta que, ao tomarem contacto com a propalada riqueza da Comunidade Cristã de Roma, as autoridades imperiais interrogaram o diácono Lourenço sobre o património da Igreja, tendo este respondido com a apresentação de um largo conjunto de pobres. Em resultado desse franco atrevimento, pagou com o martírio. Mas, se buscarmos o sentido originário da palavra “mártir”, encontraremos o significado de testemunha (aquele que viu e ouviu; por isso, fala com desassombro).

Então, o ensino e a morte de Estêvão constituíram um eloquente e exemplar testemunho. E são essas dimensões de serviço e testemunho, aliadas às da santificação e do ministério da palavra que estruturam o ser e a missão da Igreja quer na vida diária quer no trânsito para a eternidade.

Todavia, não posso passar ao lado do tema enunciado nas primeiras linhas deste exercício de reflexão Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma de 2014, cujo lema é Fez-Se pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf 2 Cor 8, 9).

O Papa, começando por citar aquelas palavras da segunda carta de Paulo aos Coríntios, questiona os cristãos sobre o que lhes diz hoje aquele enunciado do apóstolo, ou seja, “o convite à pobreza, a uma vida pobre em sentido evangélico”. Evidentemente que Francisco não está a alinhar com a política do empobrecimento, mas também não esquece a capitalidade pecaminosa da avareza, que faz acumular tesouros sobre tesouros, à custa da exploração e da miséria de outrem. E é aí que bate martelo papal:

A finalidade de Jesus Se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas –  como diz São Paulo  – “para vos enriquecer com a sua pobreza.  Não se trata dum jogo de palavras, duma frase sensacional. Pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica.

E Francisco, que bem conhece os pecados que bradam ao céu – opressão dos pobres, especialmente órfãos e viúvas, e o não pagamento do salário condigno a quem trabalha – ensina:

À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar. A miséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança.

E, a par da miséria moral (“que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado”) e da miséria espiritual (“que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor”), o papa dos pobres foca a miséria material:

É a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiénicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural.

E, consequentemente, é gizado o programa de vida cristã em sintonia com a espiritualidade quaresmal, para combater a tipificada tríplice miséria.

Para obviar à miséria material, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha:

a Igreja oferece o seu serviço, a sua diakonia, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas.

Contra a miséria moral, que pode tornar-se em “suicídio incipiente”, é necessário debelar as situações que a evidenciam e erradicar as suas causas e tornarmo-nos próximos das pessoas. Cita como situações: a vivência familiar na angústia, porque alguém se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia; e a perda do sentido da vida e de perspetivas de futuro, a perda da esperança. E o papa aponta causas: “quantas pessoas se vêem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde”. E assegura que estas são causa da ruína económica.  

Como antídoto da miséria espiritual, “o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna”.

E temos um programa quaresmal e de vida cristã, com a reformulação da trilogia tradicional – oração, jejum e esmola. A oração liga-nos necessariamente ao ser e ao operar de Cristo pobre para salvar o mundo com a riqueza da sua pobreza, e não por meios exclusivamente humanos; o jejum, que não consista na penúria da comida ou da bebida, leva-nos a ultrapassar todas as formas de egoísmo e de individualismo e satisfazer as necessidades de justiça no sentido pleno e diverso do termo, fazendo-o com inspiração na vida e doutrina de Cristo e dispondo-nos a avançar com a dádiva eventual em situação de emergência e enquanto não se refazem as estruturas sociais de justiça, radicando nestes últimos pontos o real sentido do cristão esmoler.