O Papa Francisco e a Vida Religiosa

03-02-2014 19:27

O Papa Francisco e a Vida Religiosa

Quando li na Agência Ecclesia de ontem, dia 2 de fevereiro, as palavras de Francisco ao Angelus sobre a vida religiosa, não atinei logo na profundidade das palavras. E o sentido epidérmico das mesmas transportou-me à formulação garrettiana, no Capítulo XL de Viagens na Minha Terra. Não resisto a transcrevê-la pelo que tem de atualidade, mesmo que somente no campo sociopolítico.

Diz o romântico romancista: “Entremos nesse convento das pobres Claras, tão aflitas e desconsoladas, agora que as ameaçam de dissolução como aos frades”. Não podemos esquecer que o ano corrente era o de 1834, o da extinção das ordens religiosas. Almeida Garrett, na sua evolução liberal ideológica e pragmática, que pretendia extensiva aos outros liberais, embora mantivesse um ódio visceral aos frades – talvez pelos desmandos, riqueza e poder de influência – apiedava-se das freiras, porque pobres e necessárias. Vejamos mais adiante: “aquelas instituições não metem medo aos verdadeiros liberais, e os outros lá têm o espólio dos frades para devorar”. Mas o escritor liberal e político sentencia, pela positiva:

Quando houver em Portugal um governo que saiba ser governo, há de regular e consolidar a existência das freiras, há de aproveitá-la para as piedosas instituições do ensino da mocidade, da cura dos enfermos, e do amparo dos inválidos”.

E anatematiza os barões e o governo:  “Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos bens que lhes restam às pobres freiras. Mal do governo que deixar comer mais aos barões!”.

Isto porque os tempos mudaram; e o doutrinador prático fundamenta o seu ponto de vista: “os liberais já conhecem que devem ser tolerantes, e que precisam de ser religiosos”.

Podem questionar-me: Mas afinal onde está a semelhança com o discurso de Francisco? É que eu li: “Pensemos um pouco: o que aconteceria se não houvesse irmãs, as irmãs nos hospitais, nas missões, nas escolas? Pensai numa Igreja sem irmãs? Não se pode, não se pode pensar”. E aí vi uma semelhança entre os dois discursos e pensei que hoje os políticos nem práticos conseguem ser. Se entenderem que lhes fazem sombra ou lhes pisam os calos, tentam silenciar da maneira mais eficaz ou mais rápida. Por isso, continuam as perseguições – por ideologia e por falta de pragmatismo!

Porque é que também o Papa faz uma referência especial às “irmãs”? Encontro duas ordens de razões: a primeira diz respeito à relevância e especificidade do papel do “feminino” em muitos dos setores onde se joga a sorte de uma vida humana mais condigna, porque mais fragilizada; a outra terá a ver com o facto de os religiosos em institutos de vida consagrada serem, numa imensa maioria (os políticos diriam “esmagadora maioria”), abrangidos pela teologia e espiritualidade da consagração presbiteral. Relativamente poucos serão os irmãos leigos, apesar de desempenharem um papel peculiar sob a orientação do seu instituto. E, embora alguns o façam por opção de vida, outros ficam-se pela verificação de algumas limitações.

Porém, não posso ficar-me na dimensão do discurso prático do pontífice. Ele diz coisas simples, mas fabulosas em consonância com a doutrina conciliar:

As pessoas consagradas são um sinal de Deus nos vários ambientes da vida. Os consagrados são fermento para o crescimento de uma sociedade mais justa e fraterna, são profecia de partilha com os pequenos e pobres. Toda a pessoa consagrada é um dom de Deus, um dom de Deus à Igreja, um dom de Deus ao seu povo.

Se a afirmação se parece a uma formulação meramente teórica, o Papa explicita o lado prático:

Há tanta necessidade dessas presenças que fortalecem e renovam o compromisso da difusão do Evangelho, da educação cristã, da caridade para com os necessitados e da oração contemplativa. O compromisso da formação humana e espiritual dos jovens, das famílias; o compromisso com a justiça e a paz na família humana.

Por outro lado, não será de olvidar a coexistência do dia da vida consagrada com o 38.º dia dedicado pela Conferência Episcopal Italiana à vida sob o tema "Gerar o futuro". Ora, se a promoção da geração da vida e seu amparo passa pelos casais, as formas de vida e do apoio à mesma (sobretudo na saúde, na segurança e na educação) são extensivas a muitos tipos de pessoas. Lembremos, a título de exemplo: os bombeiros e todos os que integram a proteção civil; as forças armadas e as forças de segurança; os médicos e todos os profissionais de saúde e das ciências da vida; os educadores e professores; os agricultores e os pastores. Quantos não dão a vida pelos outros, ou de forma repentina e cruenta ou em repartição em pedacinhos por vários territórios e tempos! E não esqueceremos, por certo, os religiosos e religiosas, que vivem de forma mais intensa, em união com Cristo pobre, casto e obediente, a radicalidade do Evangelho, que os pastores são chamados a exprimir no modo de liderança profética, santificadora e caritativa, e os leigos, com as mesmas dimensões, no empenho em eivar do espírito de Cristo os diversos mundos da economia, da política, da educação, do desporto, da cultura e do trabalho.

Se atentarmos no que nos ensina a Lumen Gentium, a Constituição Dogmática sobre a Igreja, sobretudo no seu n.º 44, talvez fiquemos mais esclarecidos:

O estado religioso, a que são chamados os sacerdotes e os leigos, “tornando os seus seguidores mais livres das preocupações terrenas, manifesta também mais claramente a todos os fiéis os bens celestes, já presentes neste mundo; é assim testemunha da vida nova que é eterna, adquirida com a redenção de Cristo, e preanuncia a ressurreição futura e a glória do reino celeste”. Esta é de nominada dimensão escatológica da vida religiosa.

Mas, prosseguindo:

“O mesmo estado imita mais de perto e perpetuamente representa na Igreja aquela forma de vida que o Filho de Deus assumiu ao entrar no mundo para cumprir a vontade do Pai, e por Ele foi proposta aos discípulos que O seguiam”. É a linha de maior configuração com Cristo numa linha de aliança mística e proximidade.

“Finalmente” – avança o documento – “o estado religioso patenteia de modo especial a elevação do reino de Deus sobre tudo o que é terreno e as suas relações transcendentes; e revela aos homens a grandeza do poder de Cristo Rei e a potência infinita com que o Espírito Santo maravilhosamente atua na Igreja”. É a relativização dos bens deste mundo frente ao absoluto dos valores espirituais.

Depois, o decreto conciliar Perfectae Caritatis, sobre a renovação da vida religiosa estabelece os princípios e as formas de renovação deste estado de vida.

Mais tarde, em 1971, Paulo VI, na sua exortação apostólica Evangelica Testificatio, salienta a índole de dom de Deus do celibato religioso, afirmando:

Trata-se, na verdade, de um dom precioso, que o Pai concede a alguns. Frágil e vulnerável, por causa da fraqueza humana, ele permanece exposto às contradições da simples razão e em parte incompreensível para aqueles a quem a luz do Verbo Encarnado não tenha revelado de que maneira "aquele que perdeu a sua vida", por Ele, "a encontrará". (cf n.º 15).

E relaciona este dom com o clamor dos pobres, questionando:

Mais premente do que nunca, vós ouvis elevar-se o "clamor dos pobres", da sua indigência pessoal e da sua miséria coletiva. Não é, porventura, para responder também ao seu apelo de criaturas privilegiadas de Deus, que Cristo veio, chegando inclusivamente a identificar-se com eles? Num mundo em pleno desenvolvimento, esta permanência de massas e indivíduos miseráveis constitui uma chamada insistente, para "uma conversão das mentalidades e dos comportamentos" particularmente para vós, que seguis "mais de perto" a Cristo na sua condição terrena de aniquilamento. (cf n.º 17).

 E, em 1996, a exortação apostólica Vita Consecrata, de João Paulo II, retomando a doutrina dos anteriores documentos e passando em análise os diversos tipos de institutos, inclusive os mistos, refere no seu n.º 109:

Os cristãos, imersos nas lides e preocupações deste mundo, mas chamados eles também à santidade, têm necessidade de encontrar em vós corações puros que, na fé, «veem» a Deus, pessoas dóceis à ação do Espírito Santo que caminham diligentes na fidelidade ao carisma da sua vocação e missão.

Quer isto dizer que a vida religiosa, em que se entra por um ato de consagração especial, radica no patamar da consagração batismal e crismal de todos os membros do Povo de Deus. Não é um escalão da hierarquia, pelo que não colide nem coincide com a consagração presbiteral e episcopal, embora possa com elas ser concomitante. E, se alguém afirmava não constituir uma necessidade primária da Igreja (mas uma sua bela floração, presente desde o início nas virgens e viúvas, a que davam especial atenção os diáconos), constitui um modo intenso e específico de viver o mais plenamente possível neste mundo a santidade de Cristo e da Igreja. E esta dimensão santificante espelha-se nos diversos modos de vida religiosa, seja no monaquismo eremita ou no monaquismo cenobita, seja numa vida de inteira ou de meia clausura, seja numa vida ativa, no mundo do trabalho ou no mundo missionário.

É sempre vida por vida!