O que se deve por justiça…

30-12-2013 19:58

 

 

Quando ouço ou leio o aforismo, com o qual evidentemente que concordo, “não se dê por caridade aquilo que é devido por justiça”, fico seriamente a interrogar-me se o conceito de justiça presente é o mais adequado ou se a noção de caridade subjacente é mesmo evangélica. A razão de ser de tal interrogação apoia-se na vigorosa enunciação paulina do “ainda que reparta por inteiro os meus haveres e entregue o um corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita” (1Cor 13,3). Por outro lado, a profecia de Isaías assegura que “um rei reinará segundo a justiça e os príncipes governarão segundo o direito” (Is 32,1) e, aqui há uns dias, José Adelino Maltez esclarece Mário Crespo de que acima dos governantes está a lei, acima da lei, o direito e acima do direito, a justiça.

Sendo assim, o tema merece alguma reflexão, sem que se consiga colocar definitivamente as ideias na melhor arrumação. No entanto, é de repelir a atitude daqueles que vão “brincar à caridadezinha”, como é propósito irónico dos autores e executantes da conhecida canção ou a daquela poderosa, beata e rica senhora que rogava a Deus que lhe desse sempre pobres para que ela tivesse sempre a oportunidade de praticar generosamente a caridade e, no fim de seus dias, pudesse adormecer na paz da luz perpétua, interpretando à letra o dito do Cristo “pobres sempre os tereis” (Jo 12,8).

Precisando conceitos, há que recordar que a Igreja Católica tem elencado, tanto a nível tradicional como hodierno, a virtude da justiça (CIC 1805.1807) no tetracórdio das virtudes cardeais (em torno das quais giram todas as boas ações humanas), ao passo que a caridade é a maior das três virtudes teologais (cf 1 Cor 13,13), as quais aferem da boa relação do homem com o seu Deus e gizam a espiritualidade das atitudes para com o próximo.

Então, teremos de acertar em que a justiça, embora o pressuponha e o postule, não pode reduzir-se ao mero reconhecimento do direito que cada um tem a usufruir daquilo que é seu, ou porque já o possuía – ou porque o adquiriu por processos justos como a compra, a sucessão, o trabalho, etc. – ou porque teve de lhe ser restituído em virtude de roubo, empréstimo ou desvio involuntário. Esta será a índole comutativa da justiça, necessária, mas pobre. Seria caso para perguntar qual a sorte das crianças e dos pobres (que nada têm ou deixaram de ter), dos doentes ou inválidos e dos idosos, que já não podem nada mais adquirir pela força do trabalho. Será aqui que entra à vista a obrigatoriedade da marca distributiva da justiça a garantir, em termos equitativos, a cada um o mínimo para poder viver com aquela dignidade que permita que se ande no mundo sem receio de encarar os outros, embora não olvide a vantagem de premiar o mérito de quem mais trabalha ou mais contribui para o bem comum da sociedade. E isto consegue-se, em tempo de calamidade, com o contributo voluntário em massa dos que mais tenham, sobretudo enquanto os poderes instituídos não conseguem, em razão do peso da burocracia, acorrer às situações a que estão obrigados pela força do poder encarado como serviço. No entanto, os poderes políticos, se o são de verdade, têm de sentir a obrigação de, através de medidas de índole teleológica e reguladora, levar a melhor distribuição da riqueza, com a promoção de emprego, da ministração de bens indispensáveis – como a educação, a saúde, a segurança social – e o reforço das acorrência às situações de emergência. Para este exercício da justiça social, os poderes têm ao seu dispor o mecanismo dos impostos, a taxação de serviços prestados, a vigilância das instituições financeiras, a motivação dos agentes económicos, a otimização da gestão dos recursos e a solidariedade do concerto das nações com base na mutualidade. Para tanto, têm os poderes a necessidade de renunciar à escavação da austeridade sobre a austeridade, à promoção de equipamentos de natureza faraónica e à pregação da inevitabilidade.

E a que propósito vem a caridade? De certeza que não é por caridade ou por filantropia que se acorre ao próximo em situações de pobreza, emergência ou calamidade. Aí, sim, é caso para exigir que não se dê alegadamente por caridade aquilo que é devido por justiça. O primeiro postulado da caridade é a plena satisfação da justiça. Caridade é aquela benevolência que galvaniza o crente, divinamente inspirado, e o leva a praticar todas aquelas ações de justiça (podendo dispor não só do que lhe sobra, mas até de algo que lhe possa fazer falta) com o sentido da solidariedade e alegria, como se de ações praticadas por Cristo se tratasse, afastando de si qualquer tentação de despachar o pobre ou de querer que ele permaneça pobre e dependente.

Quero afirmar, ainda, que o não crente pode na prática revelar-se mais generoso até do que o crente. Nesse caso, sê-lo-á por filantropia ou benemerência (falta-lhe somente a dimensão teológica da caridade, uma vez que não se reconhece nesse campo).

Todavia, não se pode ser complacente com determinadas práticas, tais como: o embargo, por parte dos poderes ou intermediários, da chegada de frutos de campanhas humanitárias ao seu destino; o aproveitamento lucrativo das recolhas humanitárias de bens e serviços por parte de empresas, cadeias de distribuição e autoridades tributárias; o encerramento de empresas, com a subsequente extinção de postos de trabalho, e a abertura de outras pelos mesmos subscritores ou familiares; as falsas declarações de rendimentos e os consequentes aproveitamentos indevidos de candidaturas a ação social escolar, bolsas de estudo e isenção de impostos e taxas; a perceção de salários ou pensões obscenamente chorudos; e o avanço daquela economia globalizada, que mata, sem ética e sem lei.

E, sobretudo, não podem os cidadãos nem os Estados furtar ao próprio Estado, aos pobres, aos trabalhadores, às empresas, às igrejas, a outras coletividades para generosamente redistribuir à sua maneira.

Há muitos modos de fazer justiça (e caridade) pelas próprias mãos e ficar bem na fotografia!