Os gestos e as palavras do papa Francisco ou a dialética da tradição/inovação

04-12-2013 17:04

Os gestos e as palavras do papa Francisco ou a dialética da tradição/inovação

Ainda bem que o papa Francisco tem uma imprensa amiga, que lhe faz ressaltar os gestos e as palavras.

Quanto aos gestos, todos recordamos, por exemplo, a vénia notoriamente sincera perante o povo reunido em São Pedro para que por ele rezasse enquanto aguardava a primeira bênção papal, o lava-pés a reclusos e reclusas, inclusive de outras religiões em Quinta-feira Santa, a prostração na solene ação litúrgica da tarde em Sexta-feira Santa, o beijo a deficientes, o desprendimento da mozzetta papal, da púrpura cardinalícia e de outros adereços considerados de luxo não plausível ou o transporte pessoal da sua maleta de viagem, assim como os esforços de renovação da cúria romana através do movimento incipiente de medidas.

No atinente à palavra, há que destacar a prestação informal quase diária em Santa Marta com aqueles constantes e multímodos apelos ao seguimento de Jesus Cristo na simplicidade exigente ou com aquela proposta de Igreja autenticamente pobre e serva. Tais dados informais atravessam o discurso mais solene e formal dos grandes momentos do pontífice. E é a profundidade de vida e de visão que dita a acutilância vertida em peças homiléticas de grande valor teológico ou nos documentos de enorme impacto socioeconómico ou psicopolítico discursivo em prol dos oprimidos ou denunciador do capitalismo selvagem despido de qualquer postulado ético e gerador da crise global, fautora de empobrecimento indignificante.

Porém, parece-me hipócrita, desatento e mesmo iníquo olvidar-se, em face desta figura eloquentemente simples, todo um precedente de gesto e palavra acumulado ao longo dos últimos tempos.

É de injustiça palmatorial não ter lido; uma encíclica “Caritas in Veritate” (2009), de Bento XVI, bem como as suas mensagens de dia mundial da paz (ainda foram oito!); as encíclicas “Laborem Exercens” (1981), “Sollicitudo Rei Socialis (1987) e “Centesimus Annus” (1991), de João Paulo II; a radiomensagem “Urbi et Orbi” (1978), de João Paulo I;  e as encíclicas “Ecclesiam Suam” (1964) e “Populorum Progressio” (1967) e a carta apostólica “Octogesima Adveniens” (1971), de Paulo VI. São documentos em que se espelham tiradas sistematizadas de diálogo com os problemas e aspirações do mundo ou fórmulas de análise das sociedades e proposta de nova ordem económica internacional à escala planetária, mas que induza a mudança desejada em cada local onde campeie o sofrimento ou a falta de paz. Isto para não falar do Concílio Vaticano II, nos sínodos dos bispos ou no pontificado de João XXIII. Aliás, o ensinamento dos papas é contínuo, cíclico e progressivo. Cada um se estriba na citação dos predecessores!

Quanto a gestos, refiro, a título de exemplo: a eliminação da tiara, da sede gestatória e de três corpos de guardas vaticanas por Paulo VI e as suas viagens pelo mundo; a simplicidade de João Paulo I, a eliminação da cerimónia de coroação e o uso do pronome na primeira pessoa do singular enquanto bispo de Roma; o pedido de João Paulo II ao povo para correção na língua italiana sempre que ele errasse, a abolição em definitivo do uso do plural majestático discursivo, a multiplicação das viagens apostólicas e o dialogo permanente com todos, em especial os jovens.

E não se pode deixar de salientar a timidez de Bento XVI, a sua paciência em explicar as diversas peças de uso pontifício, as celebrações públicas com grupos pouco numerosos de fiéis, a sua atenção à delicadeza de pormenores, a referência explícita no Palácio de Belém ao centenário da implantação da República, a sua atitude de escrever livros (três volumes) na sua qualidade de investigador sem a pretensão de os colar ao magistério eclesiástico ou a sua renúncia ao pontificado por dificuldades do corpo e do espírito.