“Outros caminhos”

11-01-2014 00:33

“Outros caminhos”

É o tema da intervenção que D. Jorge Ortiga, Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana e arcebispo primaz de Braga, debitou à Comunicação Social à margem das Primeiras Jornadas Nacionais da Pastoral do Turismo, promovidas pela Igreja Católica, onde esteve presente.

Aos ecos do comunicado do Conselho de Ministros, de 9 de janeiro, que dá conta da aprovação da proposta de Orçamento Retificativo para 2014 que altera o mecanismo da Contribuição Extraordinária de Solidariedade, determinando que esta taxa se aplique às pensões de aposentação e reforma a partir dos 1000 euros, o metropolita bracarense produz comentários de forte pertinência crítica.

 Reconhecer que viver em Portugal é «cada vez mais difícil» por causa dos cortes nos ordenados e pensões é efetivamente perceber o dramatismo vivencial de quem passa os dias na oscilação entre o trabalho árduo e a necessidade apertada de fazer contas e mais contas para obviar ao sustento cada vez mais difícil da família e da casa ou de quem se arrepela nervosamente por se sentir esbulhado de um pecúlio com que contava, mesmo que às pinguinhas, para encarar de rosto erguido e peito oferecido às balas os lanços desta etapa de vida a compensar um longo período de trabalho profissional e larga carreira contributiva. Agora os ministros da governança e seus acólitos apregoam a insustentabilidade dos sistemas de segurança social (seja a CGA, Caixa Geral de Aposentações; seja o CNP, Centro Nacional de Pensões; seja a ADSE, Direção Geral de Proteção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública, ou similares), depois de haverem procedido, parece que inutilmente, a sucessivas reformas. Para mais, sabemos que se determinou o encerramento de inscrições na CGA e na ADSE e que o Estado, que não tem cumprido as suas obrigações como entidade patronal, ao mesmo tempo quer absurdamente que aqueles subsistemas, agora em vias de extinção ou estrangulados na fonte, se autossustentem taumaturgicamente. Por outro lado, quer ou permite que o Instituto de Segurança Social, através dos adequados fundos, compre dívida pública e que as dívidas fiscais e/ou contributivas prescrevam. Pensarão os caros estadistas que resolvem o problema que o mesmo Estado levantou, obrigando as pessoas a trabalhar durante mais tempo e exigindo 3,5% a cada contribuinte/beneficiário para a ADSE (ou ainda mais?) ou querem que, no outono da vida, os servidores do Estado recorram a seguros de saúde, confiados na generosidade caritativa das Seguradoras, ou se confiem à augusta prestação de um serviço nacional de saúde de si já altamente congestionado e cada vez mais constrangido?

É certo que o arcebispo de Braga, uma das vozes mais críticas da hierarquia católica portuguesa às medidas governativas de política social, ao afirmar que há “outros caminhos” de combate à crise para lá dos cortes de “ordenados e pensões”, por parte do Governo, parece não se ter munido de estudo solidamente elaborado para sustentar as suas afirmações, mesmo que se apoie nas declarações do presidente da Cáritas Nacional ou dos responsáveis das IPSSS. Será pena se ele se firma somente na sua intuição – o que já não seria pouco, mas assaz insuficiente – quando opina: "Estamos a enveredar só por um caminho de cortes de ordenados e de pensões, não sei se é o único. Estou convencido de que não será, que há outros caminhos”. Tais afirmações, ainda que meramente conjeturais, deveriam provocar maior atenção dos poderes públicos.

No entanto, alguma peremptoriedade revela ao discorrer que “viver em Portugal torna-se cada vez mais difícil e por muitas razões que os nossos políticos encontrem para estas medidas, interrogo-me se não será possível fazer as coisas doutra maneira”. E é mais explícito ao concluir que é necessário encontrar “outros modos onde se possa descobrir aquilo que faz falta para cumprir as obrigações” que o Estado português tem.

Por seu turno, D. António Vitalino, bispo de Beja e vogal da referida comissão episcopal declarou à Agência ECCLESIA que as pessoas estão “esgotadas” e “os mais pobres já não têm nada para poder sobreviver”. E advertiu que “o Governo não consegue, realmente, reformular o Estado e os nossos impostos não chegam para pagar as estruturas que criamos”, acrescentando que “o dinheiro tem se buscar a quem o tem, mas espero que comecem a cortar por cima e não por baixo”.

Resta saber se, como pretende Guilherme d’ Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura, o governo é capaz de promover uma economia “criadora, solidária” e com “responsabilidade social”. Não preferirá, enquanto o país se entretém a memorar a vida de Eusébio e a discutir questões atinentes ao Panteão Nacional, prosseguir a determinação de mais sacrifícios para a classe média portuguesa, já efetivamente “ordenhada” e exaurida, e a assobiar para o lado à medida que uns poucos enriquecem cada vez mais. Não se cansará o Tribunal Constitucional de remar contra a maré ou de ver que seus acórdãos, em vez de contribuírem para o equilíbrio entre o cansaço do povo e as opções “troikanas”, talvez redundem, pela “recalibragem” governativa, em maior peso para os mesmos, nomeadamente os pensionistas que nem greve podem fazer, não que seja crime, mas por se tornar instrumento inútil?

Aliás, o aproveitamento dos grandes eventos que despistam a atenção do povo português não é inédito. Recordo que, em 2010, enquanto Bento XVI, na Igreja da Santíssima Trindade, em Fátima, abordava grandes temáticas da doutrina social da Igreja, Sócrates e Passos Coelho, num momento de pico de transumância do poder, “dançavam o tango” do PEC 2. Foi necessário Marco António avisar Pedro de que poderia sujeitar-se a eleições partidárias e Cavaco, no discurso de posse, apelar ao sobressalto cívico que levasse à rua os jovens para que Pedro Passos Coelho desistisse do “tango” e, rejeitando o PEC 4, cavalgasse a trote para eleições legislativas, não o incomodando governar em parceria com o FMI.

Rezava o papa então que “cientes, como Igreja, de não poderdes dar soluções práticas a todos os problemas concretos, mas despojados de qualquer tipo de poder, determinados ao serviço do bem comum, estais prontos a ajudar e a oferecer os meios de salvação a todos”. E, mais adiante verificava que “o cenário atual da história é de crise socioeconómica, cultural e espiritual, pondo em evidência a oportunidade de um discernimento orientado pela proposta criativa da mensagem social da Igreja” e ensinava que “o estudo da sua doutrina social, que assume como principal força e princípio a caridade, permitirá marcar um processo de desenvolvimento humano integral que adquira profundidade de coração e alcance maior humanização da sociedade”.

Parece que até estava a recordar deveres do poder político ao rubricar a asserção de que “na sua dimensão social e política, esta ‘diaconia’ (serviço) da caridade (sublinho o sentido que em tempos dei a este vocábulo) é própria dos leigos, chamados a promover organicamente o bem comum, a justiça e a configurar retamente a vida social”. Isto não é missão do poder político conforme o consagram as constituições democráticas, quando as normas fundamentais se balizam pelos princípios da igualdade, da equidade, da confiança, da universalidade e da solidariedade?

E o papa de então, hoje emérito, advertia para o perigo proveniente da “pressão exercida pela cultura dominante, que apresenta com insistência um estilo de vida fundado sobre a lei do mais forte, sobre o lucro fácil e fascinante” a condicionar “o nosso modo de pensar, os nossos projetos e as perspetivas do nosso serviço, com o risco de esvaziá-los da motivação da fé e da esperança cristã que os tinha suscitado”. Por seu turno, tentadoramente “os pedidos numerosos e prementes de ajuda e amparo que nos dirigem os pobres e marginalizados da sociedade impelem-nos a buscar soluções que estejam na lógica da eficácia, do efeito visível e da publicidade”, quando as verdadeiras motivações devem ser as da eficácia, mesmo que discreta e não notória.

Pois é, “outros caminhos” é o clamor dos hierarcas mais atentos; “outros caminhos” é o pedido lancinante do povo que sofre; “outros caminhos” é aquilo que o governo parece não saber trilhar; “outros caminhos” é a expressão de que os bem servidos ou os oportunistas não querem ouvir falar ou até badalam hipocritamente…

 E “outros caminhos” – e não falta quem nos ensine – é o pregão que a doutrina católica, na sequência da economia veterotestamentária, há mais de dois mil anos, brada aos quatro ventos, sob pena de os homens do Planeta incorrerem em um dos grandes pecados que bradam aos céus “não pagar o salário a quem trabalha” – erro que importa evitar ou contrariar a todo o transe.

“Ai de vós, os que agora estais fartos, porque haveis de ter fome” (Lc 6,25). E “felizes de vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados” (Lc 6,20). Mas era tão bom que a saciedade do futuro se tornasse já presente, já que Ele veio “para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).