Recalibragem

03-01-2014 19:44

Recalibragem

O Tribunal Constitucional, na sequência do pedido de fiscalização preventiva oportunamente apresentado pelo Presidente da República (CRP, art.º 278.º/1), concluiu, por unanimidade, pela inconstitucionalidade do decreto n.º 187/XII, da Assembleia da República, que supostamente seria transformado em lei da convergência das pensões do setor público com as do privado. Mais tecnicamente o seu objeto vinha descrito na portada do diploma parlamentar como segue:

“Estabelece mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, e à alteração do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e revogando normas que estabelecem acréscimos de tempo de serviço para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações”.

O mesmo órgão de soberania, de jurisdição constitucional, longe de considerar como inconstitucional qualquer forma de redução de pensões em pagamento, chega ao ponto de declarar, pela voz do seu presidente, que tal redução poderia ser aceitável como conforme com a Constituição, desde que inserta num contexto de reforma da Segurança Social e de implicação universal.

A isto, as vozes da maioria parlamentar asseguram que respeitarão escrupulosamente as decisões do Tribunal Constitucional. Era o que faltava virem a terreiro declarar a desobediência institucional, quando, segundo a mesma Constituição, as decisões os tribunais prevalecem sobre as de quaisquer outros órgãos de soberania (CRP, art.º 205.º/2)!

O Primeiro-ministro vem, por seu turno, declarar que o governo vai estudar o acórdão com muita atenção e agir em conformidade para encontrar uma solução adequada.

Ora, o Conselho de Ministros veio ontem, dia 2 de janeiro, oferecer aos pensionistas uma boa prenda de ano novo, a recalibragem do sistema de segurança social, consubstanciada em duas coisas: alargamento da base da contribuição extraordinária de solidariedade (CES); e o aumento de comparticipação dos atuais beneficiários para a ADSE. O JN, de hoje, reconhecendo que o governo foi omisso nos termos concretos das anunciadas medidas, citando fontes próximas do governo, aponta como estando na mesa da discussão a incidência da CES a partir da pensão bruta de mil euros e o desconto de 3% para a ADSE por parte dos atuais subscritores/beneficiários. Note-se, a este respeito, que os atuais funcionários do Estado já pagam muito para a sua segurança social (11% para a CGA e atualmente 2,5% para a ADSE).

Alegadamente, o governo quer que a ADSE se torne sustentável por si própria. Como, se os funcionários do Estado que entraram ao serviço a partir de 1 de janeiro de 2006 já não são seus subscritores, aliás como em relação à Caixa Geral de Aposentações? Recalibrar é obrigar um organismo em vias de extinção a autossustentar-se? Será possível o governo não encontrar alternativas para um corte de cerca de 400 milhões de euros somente através da insistência nas medidas anuladas por quem de direito, ora recalibradas? Quererá o governo reencaminhar da ADSE para um presumível seguro de saúde funcionários em fim de carreira ou já aposentados, no pressuposto que as seguradoras estarão de braços abertos a acolher novas inscrições com um horizonte contributivo curto e a troco de um prémio regular adequado à bolsa dos funcionários públicos (recheada de capital humano em vez de dinheiro) e dos pensionistas da CGA (a maior parte com cortes já avultados)? Ou desejam os governantes congestionar ainda mais o sistema nacional de saúde?

Perante a imposição da surpresa o governo não sabe fazer outra coisa, a não ser baralhar e dar na mesma, isto é, atingir sempre os mesmos como alvos a eliminar ou a minorar – funcionários públicos e pensionistas – uns porque, segundo algumas vozes, parece que trabalham de menos e ganham de mais, outros porque constituem um crónico estorvo social. E é este um governo humanista! Ora se o não fosse…

Enfim, se o governo não consegue governar de outra guisa, ao menos que não tente embalar-nos até 2015, (“o ano imediatamente consecutivo ao de 2014”, disse Gaspar) com novas entradas lexicais, como: reforma do Estado, TSU, CES, convergência e, agora, recalibragem!