São Gonçalo de Amarante

12-01-2014 20:14

São Gonçalo de Amarante

O Beato Gonçalo de Amarante, OP, conhecido como São Gonçalo de Amarante, goza de grande devoção popular. Existem, em sua honra, as Festas de São Gonçalo, é invocado contra verrugas e cravos, celebram-no como casamenteiro de velhas e adotam-no para males da vida matrimonial. Vivem alguns da superstição de que quem tocar com a mão a sua imagem casará durante o ano em curso – superstição que hei por bem desmentir naquilo que me diz respeito.

Nasceu Gonçalo, aí pelo ano 1200, nos alvores da nacionalidade, da família dos Pereiras, no lugar de Arriconha, onde, desde tempos remotos, existe capela a si dedicada, na freguesia de Tagilde, próxima de Vizela, ora sede de concelho. Os pais, de nobre e piedosa linhagem, deram ao filho esmerada educação cristã, sob a égide do mosteiro beneditino de Pombeiro, não só pela palavra como, sobretudo, pelo exemplo da vivência das virtudes cristãs. E, logo que o menino atingiu o uso da razão, confiaram-no a douto e virtuoso sacerdote sob cuja direção prosseguiu os estudos. Passou a distinguir-se pela modéstia, candura, esforço de aperfeiçoamento na prática da vida cristã e progressos notáveis no domínio dos estudos. Foram estes, entre outros, os motivos que moveram o Arcebispo de Braga Dom Estêvão Soares da Silva a admiti-lo, como seu familiar e aluno na escola arquiepiscopal, tendo, sob os auspícios daquele prelado, cursado as diversas disciplinas eclesiásticas, após o que foi ordenado sacerdote e, não obstante a sua extrema juventude, nomeado pároco da freguesia de São Paio (ou são Pelágio) de Riba Vizela, junto à terra natal, mau grado a sua humilde resistência.

No desempenho do múnus pastoral, além das costumeiras virtudes, destacavam-se o zelo apostólico, a castidade e a prática das obras de misericórdia corporais e espirituais, gastando a mor parte dos rendimentos da paróquia na minoração das necessidades materiais da grei, sem que as necessidades espirituais fossem passadas para segundo plano, a todos prodigalizando amor e consolação.

Anelando ardentemente a visita aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, considerados como as colunas da fé, e os lugares santos da Palestina, a fim de melhor viver os mistérios da vida de Cristo, obtida a licença episcopal, deixou os paroquianos à cura dum sobrinho sacerdote e peregrinou durante catorze anos: primeiro, a Roma, depois a Jerusalém e demais terras da Palestina, onde se demorou catorze anos e se inflamou do zelo apostólico.

Entretanto, um certo remorso por tão longo abandono da paróquia, as saudades da pátria e de seus filhos espirituais e o pressentimento dos males espirituais de que padeceriam, talvez devido à falta de zelo de seu sobrinho, motivaram-no ao regresso, apesar dos inumeráveis incómodos e perigos que a viagem pressupunha.

O sobrinho, além de o não reconhecer como verdadeiro e legítimo pároco, escorraçou-o de casa e logrou, mediante documentação falsa, provar ao arcebispo Dom Silvestre Godinho que Gonçalo morrera, pelo que se alcandorou a pároco da freguesia.

Gonçalo, resignado com semelhante atitude, deixou São Paio de Riba Vizela e foi-se a pregar o Evangelho por aquelas terras até à margem do Rio Tâmega, onde encontrou o lugar onde hoje se exibe a cidade de Amarante, sítio então inculto e quase despovoado, mas apto para a vida eremítica. Ali construiu a pequena ermida de Nossa Senhora da Assunção, onde se recolheu, saindo, de vez em quando, a pregar nas redondezas e consagrando o tempo sobejante à oração e à penitência.

No entanto, sentindo a necessidade de encontrar uma via mais segura em ordem a alcançar a felicidade eterna, jejuou uma quaresma inteira a pão e água e suplicou fervorosamente a Nossa Senhora lhe alcançasse do Senhor esta graça. Diz-se que a Virgem Maria lhe aparecera e lhe dissera procurasse a ordem em que iniciavam o seu Ofício com a Saudação angélica, isto é, a Ave-Maria. Essa era a Ordem dos Pregadores  (OP) ou Dominicanos.

Abraçada a vida dominicana, encaminhou-se para o Convento de Guimarães, recentemente fundado por São Pedro González Telmo, grande apóstolo da região de Entre Douro e Minho, o qual lhe impôs o hábito e, após o noviciado useiro, o admitiu à profissão religiosa. Segundo Gaspar Estaço, terá sido feito cónego da Colegiada de Guimarães. Seja como for, passado relativamente pouco tempo, conseguiu licença para, com um outro religioso, voltar para o seu eremitério de Amarante, continuando a sua vida evangélica e caritativa.

No seu ministério, o religioso operou muitas conversões e prestou eficaz assistência nas doenças, o povo entregou-se decididamente à prática duma autêntica vida cristã e a promoção social cresceu a olhos vistos. Sobressai, durante a sua permanência em Amarante, a edificação da ponte em granito sobre o rio Tâmega, angariando pessoalmente donativos em terras circunvizinhas e levando os moradores mais abastados a darem ajuda vultosa para assim se pagar aos operários.

Concluída a ponte, durante cujas obras se terão operado numerosos milagres, mesmo de ordem material, Gonçalo passou ainda alguns anos dedicado à pregação e à vida de oração, robustecendo-se em virtudes e merecimentos. Conta-se que Nossa Senhora lhe revelara o dia da sua santa morte para a qual se preparou com a receção dos sacramentos da reconciliação, da santa unção e da eucaristia ministrada sob forma de viático.

Segundo o historiador seiscentista da obra dominicana, Frei Luís de Sousa, o homem de Deus descansou santamente no Senhor, a 10 de janeiro de 1262, o seu dies natalis (para a Igreja, o dia do nascimento para o Céu), que passou a ser também o dia da sua celebração hagiológica. O seu venerado corpo, após a celebração das exéquias solenes em sufrágio por sua alma, foi sepultado na referida ermida, continuando a efetuar-se muitos milagres, atribuídos à sua poderosa intercessão.

Ampliada mais tarde em igreja a ermida primitiva construída por São Gonçalo, o piedoso Dom João III mandou erguer sobre esta, em 1540, o sumptuoso templo e convento que ainda hoje existem e que são monumento histórico da cidade de Amarante, de que São Gonçalo pode muito bem ser considerado o segundo fundador e de que se tornou o santo padroeiro e protetor. É igualmente o padroeiro das cidades de São Gonçalo de Amarante nos estados brasileiros do Rio Grande do Norte e do Ceará. Depois, o corpo do Beato Gonçalo passou a repousar na capela-mor da igreja, do lado do Evangelho, ou seja, à esquerda de quem se volte para o altar-mor.

Três processos canónicos se efetuaram rumo à beatificação e canonização do servo de Deus, o último dos quais foi levado a cabo por Dom Rodrigo Pinheiro, Bispo do Porto, por comissão do Papa Pio IV, em 1561. A instâncias de Dom João III e Rei Dom Sebastião, do Arcebispo de Braga Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, da Ordem dos Pregadores, do Cardeal Dom Henrique e da população amarantina, a sentença de beatificação foi promulgada a 16 de setembro de 1561, já depois da morte do rei piedoso, pelo representante de Pio IV e da  Sé Apostólica, confirmando-se a concessão de lhe tributar culto público, já permitido pelo Papa Júlio III, dez anos antes.

Mais tarde, o Papa Clemente X, em 10 de julho de 1671, estendeu a toda a Ordem Dominicana e a todo o reino de Portugal a concessão de honrarem este glorioso santo, um dos mais populares de norte a sul do país, especialmente no Norte, com missa e ofício litúrgicos próprios. O seu culto espalhou-se pelas colónias portuguesas, chegando à Índia e ao Brasil, como o confirma o longo e engenhoso sermão de São Gonçalo, do Padre António Vieira, de cuja peça de oratória sacra se transcrevem, pela sua relevância exemplar, alguns segmentos:

“Orava continuamente; mas, porque, de ordinário, para remediar os trabalhos humanos, não bastam as mãos ociosas, posto que levantadas a Deus… resolveu-se ao que nunca se atreveram os braços poderosos dos reis, que foi meter debaixo dos pés a braveza e fúria do Tâmega, que a tantos tinha tragado”.

E, já quase no fim:

“A ele encomendam os pastores os gados, os lavradores as sementeiras; a ele pedem o sol, a ele a chuva, e o santo, pelo império que tem sobre os elementos, a seu tempo e fora de tempo, os alegra com o despacho das suas petições”.

A sua popularidade, além das preces, romagens, festas, folias e doçarias que mobiliza, espelha-se ainda nos ditos brejeiros transpostos para conhecidas quadras populares. O povo, por mais que acredite que a Deus muitas graças, mas com Deus poucas, não dispensa o santo da sua visita ao campo das graçolas revestidas de indizível ironia zombeteira. Mas não há só ironia e brejeirice. O povo empresta-lhe abundante dose de apreço e carinho e, em contrapartida, celebra-o com devoção e folguedo. Assim, os moradores do Bairro da Beira Mar, na freguesia de Vera Cruz, em Aveiro, tratam-no carinhosamente por São Gonçalinho, e a capela aí existente em sua honra é conhecida como Capela de São Gonçalinho. Em Ibituruna, a sua festa celebra-se no último fim de semana de janeiro, com a tradicional Congada e Folia de São Gonçalo. E várias cidades brasileiras, como São Gonçalo, no Rio de Janeiro, Itapissuma, em Pernambuco, Cajari, Matinha e Viana, no Maranhão, e Cuiabá, em Mato Grosso, prestam culto festivo a São Gonçalo de Amarante, em ambiente de forte devoção e com uma dança folclórica, denominada por Baile de São Gonçalo.