Sobre o novo programa de Português para o ensino secundário

24-11-2013 21:35

Nota prévia

Conquanto seja de saudar o advento de novo programa para a disciplina de Português do ensino secundário na perspetiva da resposta programática ao ditame político-legal da extensão do ensino obrigatório, universal e gratuito até ao 12.º ano de escolaridade e/ou até aos 18 anos de idade, é de registar a não apresentação de uma peça de avaliação crítica dos programas anteriores e da sua gestão ao longo dos poucos anos da sua aplicação – prática que, a manter-se, não augura nada de bom à sobrevivência do programa ora posto à discussão pública.

Os programas anteriores (refiro-o no plural, uma vez que a sua produção e homologação surgiu em dois momentos diferentes) respondiam à necessidade de obviar à atomização dos programas elaborados, com vista à disponibilidade de uma multiplicidade de opções programáticas de escola e turma a gerir localmente, sob a égide do DL n.º 286/89, de 29 de agosto, simplificada em 1996 para facultar a submissão dos alunos a um mínimo comum para a subsequente sujeição a exames nacionais, originando uma significativa redução da anterior panóplia de hipóteses. Contudo, restavam ainda margens significativas de escolha local que possibilitavam formas diferentes de desenvolvimento das capacidades de expressão oral e escrita e de compreensão do oral e do escrito, de leitura e de abordagem do texto literário, mantendo-se, embora a custo, o essencial do cânone literário escolar. Os programas elaborados sob a égide do DL n.º 74/2004, de 26 de março, na floresta de competências, domínios, conteúdos processuais e conteúdos declarativos, coarctava em muito as opções locais e, se não fora, a intervenção de vários autores de manuais, até se poderia perceber que o texto literário seria passível de abordagem fora do contexto literário e sociocultural da sua produção, no pressuposto de que, tal como a pedra saída da mão prossegue um rumo jamais controlado pelo atirador, também a obra saída da pena do escritor passa a ser domínio caprichoso do leitor. Com um rol de ambições tão polifacetado, muito do material do cânone literário ficou em conserva nas arcas da memória. Por outro lado, ao longo do 10.º ano nem um único exemplar de texto dramático era obrigatoriamente abordado. E, no âmbito do modo literário narrativo, desde os primeiros anos de escolaridade até ao fim do 10.º ano atulhavam-se os alunos com o conto ou alguma pequena novela e, depois, no 11.º ano, era um romance de longo fôlego de Eça de Queirós, habitualmente “Os Maias” (cf Seixas et al, 2002).

Não obstante, partiu-se para outra jornada programática quase de surpresa e, como já ficou dito, sem o conveniente ato avaliativo crítico.

Apreciação

No geral, concorda-se com a justificação derramada na introdução e com as opções a nível dos fundamentos e dos domínios e mesmo com a opção pelo designativo “gramática” em vez dos tímidos “funcionamento da língua” e “conhecimento explícito da língua” – resultantes ou do medo de ensinar gramática a adolescentes e jovens ou de um conceito redutor da mesma, querendo dar a entender que o estudo das estruturas da língua se moveria por outros caminhos menos ínvios. O texto faz jus à insofismável e reconhecida competência do elenco de autores do programa – Helena C. Buescu, Luís C. Maia, Maria Graciete Silva, Maria Regina Rocha – que, ao invés dos anteriores programas, pretendem emprestar ao projeto, na linha da clássica “humanitas”, um saudável equilíbrio entre as diversas vertentes do ensino da língua – a cultural, a literária e a linguística (cf Bescu et al, 2013). E abordar o texto literário no quadro dos contextos literários e socioculturais da sua produção, longe de impedir a liberdade de interpretação, fruição e até manipulação ao sabor do ambiente hodierno, permitirá uma leitura mais certeira, aprofundada e sustentada do próprio texto e, sobretudo, levará o aluno a apoderar-se progressivamente da memória cultural deste povo com que nos identificamos no concerto das nações e a avaliar da riqueza do património imaterial que imortaliza a alma desta pátria humanística – o que fica favorecido com a recuperação de mais numerosos espécimes do cânone literário, até agora em lamentável hibernação.

No entanto, parece oportuno fazer alguns pequenos reparos:

a)      Há que prever alguma cautela quanto à abordagem do texto demasiado complexo, sobretudo nos dois primeiros anos do ensino secundário. Uma abordagem precoce de textos demasiado complexos como uma decisão de qualquer um dos tribunais superiores ou “um tratado de ética” pode, à partida, estrangular o apetite para o gozo interpretativo deste tipo de texto (cf Bescu et al, 2013).

b)      Por outro lado, o “Projeto de Leitura, que acrescenta às aprendizagens do domínio da Educação Literária o contacto direto com outras literaturas de língua portuguesa e também com textos relevantes de outras geografias literárias em tradução portuguesa” (id et ib), deveria incluir, em alternativa, alguma obra do cânone literário português, já que o programa, embora ofereça muitas hipóteses de leitura literária, nalguns casos apresenta um número muito escasso de amostras. E não seriam criadas especiais dificuldades no âmbito da avaliação externa das aprendizagens se fosse adotada a postura em prática na disciplina de Literatura Portuguesa: à análise de texto são obrigados todos os alunos independentemente do conhecimento que tenham da obra ou do autor; à explanação de elementos de obra e de autor seriam os alunos a pronunciarem-se sobre material lecionado na sua escola, obviamente sem a identificarem (cf Coelho, Serôdio et al, 2001; GAVE, 2012).

c)      Também, sobretudo no 11.º ano e no 12.º, as hipóteses de leitura de obra integral poderiam ser mais diversificadas, porquanto subsistem autores na obnubilação das páginas do esquecimento que nunca dela serão arredados e que poderiam ajudar a diversificar o enriquecimento do saber literário e cultural dos jovens. A título de exemplo, recordo Rodrigues Lobo e Dom Francisco Manuel de Melo, no século XVII; a poesia de Almeida Garrett e a narrativa de Júlio Dinis, no século XIX; e Afonso Lopes Vieira, Aquilino Ribeiro, Carlos Oliveira, Ferreira de Castro e Vergílio Ferreira, entre outros, no século XX. E porque não indicar algum já predominantemente do século XXI, Deana Barroqueiro, por exemplo?

d)     Será desejável que no 10.º ano (ano de adaptação a um novo ciclo de estudos e aprendizagem) se preveja a ocupação de algumas aulas com a articulação com as aprendizagens de anos anteriores – o que aconselharia à inclusão de mais um tempo letivo no horário semanal da disciplina, implicando um retoque do desenho curricular (cf DL n.º 139/2012).

e)      A introdução do novo programa postula uma agenda de formação dos professores (mesmo que não seja burocraticamente acreditada) e de editores, pois não se compadece da simples espera pela boa vontade de livreiros e pelo espírito de sobrevivência profissional dos docentes oriundos de tão diversificada forma de formação inicial.

f)       A referência do programa à avaliação das aprendizagens espalha-se na pobreza da genérica referência ao DL n.º 139/2012, de 5 de julho, o que é de lamentar por nada se acrescentar ao texto dos programas de Português do ensino básico, que remete para as competências do então GAVE (cf Reis, Dias et al, 2009). Ora, em nosso entender, a avaliação na disciplina de Português deverá corresponder ao desempenho à luz dos domínios estabelecidos e dos objetivos definidos, afinara processos e almejar resultados. E, se não fica ao critério das virtualidades da autonomia da profissão docente a elaboração de qualquer programa disciplinar, também será temerário deixar àquelas virtualidades o ónus dos parâmetros da avaliação na disciplina ou mesmo à sabedoria dos democráticos conselhos pedagógicos. Fernandes (2005) assegura que “a avaliação não pode ser considerada como um processo desligado do desenvolvimento do currículo e do desenvolvimento das aprendizagens” e que ela “só realmente fará sentido se fizer parte integrante do ensino e da aprendizagem”. O próprio IGAVE, IP produz informações de avaliação externa de para cada disciplina sujeita a exame nacional (cf GAVE, 2012). Sendo assim e dada a complexidade da avaliação interna, o programa não deveria abrir as principais opções paramétricas em termos de avaliação das aprendizagens, que até serviriam de inspiração para as da avaliação externa? Ou aceita-se de bom grado que as escolas, como se fossem similares das escolas de condução, gastem a maior parte das suas energias com a preparação para o exame nacional (aqueles 120 minutos!)

g)      Fazendo parte integrante de um projeto o capítulo de avaliação do próprio projeto e sendo o programa um projeto pedagógico-científico, deveria ficar prevista a periodicidade e a forma de avaliação das diversas fases dos contextos e processos de aplicação do programa, dos resultados e das medidas de melhoria a introduzir – à luz da metodologia do trabalho de projeto. A avaliação do projeto educativo visa a sua própria consolidação seguindo linhas orientadoras que constituem elementos de análise, reflexão e promoção de boas práticas pedagógicas em torno dos resultados dos alunos, dos processos pedagógicos, dos materiais didáticos e da atividade da escola em geral (cf ANESPO, 2011).

     Concluindo

            Muito nos agradaria que esta reflexão pudesse servir de contributo à melhoria de programa já de si equilibrado e apto a responder aos objetivos da boa aprendizagem na disciplina de Português no quadro do prolongamento da escolaridade obrigatória. Porém, não podemos esquecer as profundas assimetrias subsistentes e mesmo agravadas na prestação do serviço público de educação – assimetrias geográficas, económicas, sociais e culturais. E não pode deixar de atentar com o devido relevo na dinâmica da avaliação das aprendizagens e na formação dos docentes, mais muito mais do que andar a apostar freneticamente em provas de avaliação de conhecimentos e capacidade de raciocínio de professores ou em esquemas e mais esquemas de avaliação de desempenho!