Sobre o papel das ciências sociais e humanas

08-01-2014 12:12

Sobre o papel das ciências sociais e humanas

O caderno “Atual” do semanário Expresso, de 28 de dezembro de 2013, na secção “ideias e debates” corporiza uma entrevista de Maria José Roxo, coordenadora do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a Luciana Leiderfab, que, do meu ponto de vista, valerá a pena ler ou reler.

Segundo a entrevistadora, os conteúdos essenciais da conversa giram em torno do “papel escrutinador das ciências humanas, na importância de os investigadores saírem dos gabinetes e agirem sobre a sociedade e no fim anunciado de um modelo de vida que era insustentável”. E, citando a entrevistada, infere que “os próprios cientistas sociais já perceberam que têm de ser peças de intervenção e de mudança”.

Sem nos determos na diferença entre ciências sociais e ciências humanas, dissecação que aqui não vem ao caso e que as escolas parecem querer evitar ao as acoplarem numa mesma epígrafe designativa, vamos tentar pôr à tona algumas das ideias que nos parecem mais relevantes naquele texto conversacional.

Começando por negar que as ciências sociais tenham começado a cair em desuso no país, reconhece, no entanto, a entrevistada que terão ficado para segundo plano a partir do momento em que “determinadas políticas, em termos de investigação científica e de educação se voltaram muitíssimo para a questão da tecnologia”. É óbvio que a investigadora acaba por registar em entrevista o claro estado atual da nossa sociedade, já que quem for considerado “infoanalfabeto” ou atingido de capitis diminutio na matéria parece não ter direito a existir no campo da atividade atual. Foi assim que os dois últimos governos socialistas lançaram o plano tecnológico, na sequência do choque tecnológico; os professores passaram a ter, por força de disposição legal estabelecida por portaria, como plataforma básica de competência a manipulação dos meios das novas tecnologias; e programas específicos – e-escola, e-professor, e-formação e os “Magalhães” – enxamearam o país inteiro e aumentaram a quota nacional de exportações. Praticamente todos os concursos, candidaturas, compras, prestação de contas, transações bancárias, declarações contributivas, Diário da República e Diário das Sessões da Assembleia da República, etc. passou tudo a ser feito por via eletrónica. Mais: um aluno passou a poder não ter dinheiro para almoço ou para material escolar essencial, mas tem de possuir telemóvel, i-pad (e outros que tais), tablet e playstation para poder sobreviver num ambiente cada vez mais competitivo e até hostil.

Todavia, em resposta à entrevistadora, a professora catedrática afirma ter de haver lugar para a componente tecnológica e para a componente social e humana, sob pena de se pretender avançar tecnologicamente sem a compreensão “daquilo que se está a passar do ponto de vista social e comportamental”. Ora, como se corria o risco de um progresso vazio – a meu ver – e porque “os valores tinham sido deixados num limbo”, agora, “com a crise que estamos a atravessar, que é sobretudo uma crise de valores”, há que saber recolocá-los e, conclui a entrevistada, “o humano ressurge agora”. É claro que se fala mais das coisas boas quando elas estão a fazer mais falta!

Entretanto, a distinta académica vai ainda mais ao fundo da questão, ao reconhecer que as próprias ciências sociais têm também a sua quota-parte de responsabilidade na sua própria secundarização, quando os académicos poderão ter ficado demasiado longe da participação cívica. E explicita: “há uma diferença entre o que é o mundo académico e o que nós pensamos que este deva ser”. Aí estamos totalmente de acordo, uma vez que os professores do ensino superior e os investigadores estarão a ser avaliados de forma menos adequada, sobretudo se ela se centra na “quantidade de artigos científicos publicados”, quando deveria ser escrutinada sobretudo a qualidade e a implicação no desenvolvimento da ciência e a sua perceção pela sociedade, o que implica o dispêndio excessivo de tempo naquela atividade. Por outro lado, a linguagem utilizada – e que são solicitados a utilizar – é demasiado inacessível e é preciso reconhecer que a investigação “só faz sentido se os resultados passarem para a sociedade”. Tornava-se quase imperativo que o professor universitário e o investigador falassem quase exclusivamente apara a denominada comunidade científica. E talvez seja oportuno referir que, por vezes os trabalhos académicos se deixam empecer por questões formais de nem sempre clara utilidade, como a forma de citação imposta, a forma de referir a bibliografia, o uso da primeira pessoa do plural ou o quase impedimento de produção de opinião.

Por fim, dá-nos uma boa informação distribuída pelos seguintes itens: a existência da compreensão de que os académicos têm de ser peças de intervenção e de mudança numa sociedade “formatada para o consumo” e esquecida das implicações que o consumo pode ter (e aponta o sobre-endividamento e a despovoação, que leva à desertificação); a promoção de uma visão sistémica dos problemas, contra a cegueira em que as pessoas vivem, por exemplo, em relação ao processo que subjaz a qualquer objeto que surge no mercado; a oferta de “cursos que incidem sobre como comunicar ciência e como transmitir conhecimento científico”; e, apesar da crise, que tem feito diminuir as inscrições, já que muitos “não têm dinheiro para pagar as propinas”, haver muitos cursos frequentados, de que sobressaem a Comunicação Social, a História e a Geografia. E não deixa de anatematizar os “tudólogos”, “que falam sobre tudo” ou o discurso político que seja “mais do mesmo” – discursos que se tornam cansativos e “que fazem saltar à vista a mais-valia do discurso de um cientista social”.

Pergunto-me porque não escalpeliza também aqueles estudos encomendados pelo governo ou pelas autarquias e outras instituições públicas e privadas, pejados de análises e conclusões com anos e anos de atraso e, por vezes, elaborados ao sabor de quem os encomenda e paga. Mas saúdo a renovação incutida ou “incutienda” nos estudos sociais e humanos e a aproximação da Universidade ao mundo das pessoas.