Sobre “o veredicto sem apelo de Bergoglio contra o padre pedófilo”

16-02-2014 15:57

Sobre “o veredicto sem apelo de Bergoglio contra o padre pedófilo”

O texto referenciado em epígrafe reporta uma decisão condenatória de um padre italiano acusado de pedofilia, ou pelo menos abuso de menor ("efebofilia"), com fundamento que, após as devidas investigações, terá vindo a comprovar-se. Garante mesmo que “não há descontos na era da transparência do papa Francisco”. A contrario, deixa na penumbra de alegado encobridor do caso (ou de o haver tratado com excessiva benignidade) o ordinário diocesano, que se terá sentido ultrapassado pelo enunciado decisório da Congregação da Doutrina da Fé (CDF), que – adiante-se – ao tratar destas causas atinentes a bispos ou a padres, ultrapassa a sua índole meramente executiva ou mesmo administrativa e se constitui em tribunal especial e tribunal supremo. Isto, pelo menos desde 18 de maio de 2001, com a carta de delictis gravioribus, da CDF.

As decisões condenatórias do Vaticano, à partida, não me merecem reparo. Todavia, e contradizendo-se a si mesmo o texto em causa, ao salientar, por um lado, a intangibilidade da era "Francisco" e, por outro, ao fazer remontar a onda de penalizações para tempos anteriores, inclusive enaltecendo as medidas “não garantistas” do consulado dicasterial de Ratzinger, não vejo por que motivo o Vaticano seja visto com tanta suspeita por eclesiásticos e entidades externas. Se a pena eclesiástica máxima tem sido aplicada ou, pelo menos perentoriamente prevista, só restará acrescentar outras, de que não vejo a Igreja poder dispor, a não ser que pretendamos instaurar e aceitar um clima de delação e voltar ao tempo da Inquisição: "encontrar os relapsos e, caso não se verguem, relaxá-los ao braço secular".

De resto, tranquiliza-me que fraseado como este “É como uma condenação à morte ou à prisão perpétua” não tenha provindo das instâncias dicasteriais romanas, mas de observadores, embora vaticanistas. Porém, não me deixa tranquilo o beneplácito pela hipotética opção pela via administrativa (a ser verdade), plasmada no comentário: "E é uma medida que, nesse caso, a Santa Sé tomou não através de um processo tradicional, com as testemunhas e a defesa. Mas até escolhendo a via administrativa, a mais rápida, dado o grau de certeza do Vaticano.". E, em face do que assegurei acima, a probidade vaticana, apesar de tudo quanto é acusada, não me permite concluir que tenha havido uma opção pela via administrativa. Além disso, não se torna pertinente sobrelevar a expressão “sem apelo” sobre o veredicto em referência, uma vez que se trata do tribunal supremo para aquela matéria, a não ser (possível em tese) o recurso para o plenário ou o apelo para o próprio papa, também detentor do poder judicial. Não sei mesmo (penso que não) se crimes deste género admitem as clássicas “atenuantes”; no entanto, estão sujeitos ao mecanismo da prescrição (de dez anos desde o momento em que a vítima perfaça os 22 anos, segundo a citada carta).

A via administrativa nunca é totalmente segura, nem o alegado "grau de certeza" a ratifica. A via judicial, que tem em conta as possibilidades de defesa e segue os elementos testemunhais, documentais e periciais de prova, revela-se muito menos falível e dá maior tranquilidade a quem teve a tarefa espinhosa de sentenciar. De modo algum, posso acreditar que o rigor que se preconiza (às vezes, com sabor taliónico) anule a caritas erga personam em nome de uma justiça meramente vindicativa. Se é verdade que a justiça se ministra em nome do “Direito”, não vale subordinar em absoluto à dignidade das vítimas a absoluta indignificação dos infratores. Mesmo que se tenha esgotado, em termos humanos, a sua recuperação, não nos é lícito atirá-los para o inferno.

Finalmente, não me aflige a expressão "redução ao estado laical". Sempre reduzi quilómetros a metros e vice-versa e ninguém me ensinou que o quilómetro era essencialmente superior ao metro (grau é grau; não é essência). A lógica do poder que possa contrapor leigo e clérigo não me parece relevante, dado que o poder hierárquico é somente uma vertente do poder, o qual reside essencialmente no “saber”. Contemporaneamente é de quem tenha possibilidade de mostrar saber ou conhecimento que as estruturas de poder têm medo (político, militar, financeiro, económico, empresarial, laboral...). Vejam-se os casos mediáticos da novel espionagem ou a relevância que os departamentos de informação e centros de criptografia tinham e continuam a ter nos Estados, nas polícias e nas forças armadas!