Sobre os elogios ao Papa Francisco

30-01-2014 22:06

Sobre os elogios ao Papa Francisco

O Padre Frederico Lombardi, porta-voz do Vaticano, lamentou, a 29 de janeiro, que o artigo da revista Rolling Stone sobre a figura do Papa Francisco tenha, a pretexto do enaltecimento da obra deste pontífice, aliás bem-vindo, se tenha arrogado o direito de “descrever de maneira negativa o pontificado do papa Bento XVI”. E classifica essa postura como um erro de jornalismo bastante usual nos nossos dias.

Sempre me ensinaram e tenho havido o cuidado de levar à prática a máxima de que para dizer bem de uma pessoa, grupo ou instituição não necessitamos de denegrir a sua homóloga. Estamos num mundo em que a convivência democrática tem de ser extensível às pessoas, às ideias e aos estilos. A este respeito, afigura-se-me que a democracia está ainda muito imatura nos diversos recantos do orbe.

Quanto ao exercício do múnus petrino, nas últimas décadas, tenho de reconhecer que, graças a Deus, longe vão os tempos do nepotismo papal ou da supremacia política do Chefe da Igreja Católica e, como ensinava em tempos o então professor de História da Igreja, o Dr Jacinto Botelho, hoje bispo emérito de Lamego, os últimos papas têm sabido ler os sinais dos tempos e exercer o seu ministério segundo as condições do mundo atual. Erros de perspetiva e até de opções, falhas diplomáticas e insucesso no entrave aos conflitos entre povos ou na exigência de respeito pelos direitos humanos têm existido indubitavelmente. Porém, a Santa Sé, diretamente ou através dos seus representantes, quer permanentes quer temporários, tem trabalhado com inegável denodo para a minoração dos atropelos à dignidade das pessoas e dos povos, inclusive das minorias ou daqueles, cujo número é assustadoramente crescente, que, pela falta de vez e de voz, têm sido remetidos para a condição de menoridade humana, muitíssimos deles abaixo do limiar de pobreza. Quem dera que as diplomacias não eclesiásticas trabalhassem com o mesmo grau de afinco e com o mesmo suporte ético!

No atinente ao papa Francisco, não haja dúvidas de que inaugurou uma erra de mudança, que se esperava, para mais da parte de alguém que os cardeais foram buscar ao fim do mundo, segundo a sua própria expressão. E penso que não se trata somente de uma mudança de estilo: mobiliza mesmo os cordelinhos da real e profunda humanitas enquanto espelho da ternura divina e expressão da solicitude apostólica; sem descurar a amplidão e profundeza teológicas, parte a doutrina em pedacinhos tal como o pater o fazia em relação ao pão para os filhos, segundo o lema do Congresso Eucarístico Internacional de 1981, Cristo “o Pão Partido para um Mundo Novo”, ou, se quisermos, na sequência da frequente celebração da Eucaristia dantes denominada “Fração do Pão”. Pena é que alguns dos seus gestos, bem exaltados pela “amiga” Comunicação Social, mais não tenham servido que para repor um pouco de bom senso na gestão dos bens eclesiais em que os seus agentes muitas vezes se comportavam como donos e não como servidores (diáconoi), ou como fiscais da fé em vez de seus promotores.

Tenho, entretanto, receio de que, apesar de serem louváveis os elogios à revolução franciscana, obnubilem os materiais verbais e gestuais do magistério dos predecessores do papa argentino. Sem me arrogar à postura de franco admirador de Bento XVI, tenho o dever de fazer jus à sua palavra bem clara e ousada, aos gestos de atenção aos ínfimos pormenores de atuação das pessoas e a algumas das suas iniciativas (o ano paulino, o ano sacerdotal, o ano da fé…), bem como aos problemas que mal ou bem lhe caíram em cima da mesa da discussão e resolução (pedofilia, questões financeiras, levantamento da excomunhão ao bispo da Fraternidade São Pio X que negou o holocausto…). De igual modo me custa admitir que (e este é, por motivos biográficos, o meu papa de referência) se subestime o papel do Papa Paulo VI na condução da maior parte do concílio e aplicação de suas disposições, bem como seus gestos, palavra ousada e iniciativas carregadas de simbolismo.

Como dizia Jorge Coelho, não há memória, mas – acrescento eu – devia haver. E sobretudo é desagradável verificar que acomodaticiamente se atribuam a outrem a paternidade de palavra, gesto e iniciativa só por que foram replicados e desenvolvidos.

Não creio que Francisco tenha o objetivo de trilhar essa escusa estrada, até porque o relacionamento com o papa emérito se tem revelado cordial e fraterno e, no seu discurso, faz questão de se ater à sua herança teológica e pastoral, citando-o um sem número de vezes e atribuindo-lhe a coautoria da sua primeira encíclica. E, se é previsível uma reforma da Estrutura eclesiástica, plasmada num reforço da colegialidade e da descentralização e na diferença de abordagem das matérias mais quentes, focando os dados essenciais, não é crível que a revolução ponha em pantanas a doutrina que compagina o depositum fidei, não sei mesmo se as questões disciplinares de bandeira como a obrigatoriedade do celibato eclesiástico e a ordenação de mulheres.

Todavia, o jornalismo é o que é. Ainda há pouco as redes sociais transcreviam um testemunho da exímia vaticanista Aura Miguel em que a jornalista da Rádio Renascença, entre outras coisas, referia que Francisco tanto estava bem a conversar com um amigo como a ir levar ao vizinho Bento XVI uns croissants mornos como ele gosta. Esta ilação resulta de um episódio em que, dando-se pela sua ausência num determinado momento em hora de refeição, na Casa de Santa Marta, os homens da segurança o surpreenderam nos jardins do Vaticano a caminho do mosteiro Mater Ecclesiae com uma embalagem dos ditos croissants para o predecessor Ratzinger.

E eu fiquei-me na interrogação: Será que o emérito não passará de um simples vizinho, não será também um amigo e um amigo especial?

E, se Bento XVI era Bento XVI, antigo guardião da ensinável Teologia na Congregação da Doutrina da Fé, Francisco é Francisco, o promotor de um novo rosto da bem alicerçada teologicamente ação pastoral. Valeu?