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Para que serve o Panteão Nacional?

07-01-2014 20:19

Para que serve o Panteão Nacional?

O óbito de Eusébio e a simpatia desportiva e cívica que o evento concitou de todos os quadrantes desembocaram na ambição de promover a sua trasladação para o Panteão Nacional. E aqui duas situações se exibiram na ribalta: o poder político, ou pelo reconhecimento genuíno da singularidade do rei do futebol ou pela acomodatícia conveniência eleitoralista, acerta na importância da concessão desta honra, que resultará por iniciativa de uns e colagem, mais ou menos temporã, de outros; os especialistas nestas coisas dividiram-se, uns pelo sim outros pelo não e outros pela tolerância.

As diversas posições podem espelhar-se nas seguintes: Miguel Real, especialista em Cultura Portuguesa, opina que, “face à ausência de heróis, Amália e Eusébio surgem como os grandes heróis […]. É a maneira de o povo entrar no Panteão”; Maria Filomena Mónica, socióloga, baseada na convicção de que as escolhas anteriores resultaram de critérios ideológicos, entende que “ninguém devia estar no Panteão Nacional” e, “se alguém merecia estar no Panteão, era o Eça, que está numa quinta em Tormes”, ou a quinta de Vila Nova, da freguesia de Santa Cruz do Douro, no concelho de Baião; e João Serra, professor universitário, comenta sarcasticamente que “é um exagero esta histeria nacional, há um claríssimo aproveitamento da classe política e o povo deixa-se embalar”. Rui Rangel, juiz desembargador e antigo candidato à presidência do clube da Luz, frisando que “Portugal e a nação benfiquista estão mais pobres” e que “todos perderam um pouco, independentemente dos clubes”, fez um apelo às autoridades, para que o corpo do “Rei” do futebol nacional seja depositado no Panteão Nacional, à semelhança do que sucedeu com a fadista Amália Rodrigues. Por seu turno, a Presidente da Assembleia da República, muito embora admitindo o caráter temerário da sua opinião, lembrou que a operação envolvia “custos mesmo muito elevados, na ordem de centenas de milhares de euros” e, por consequência, defende “uma partilha de custos”, no sistema “de uma espécie de mecenato”.

Ora, independentemente da bondade inerente a cada uma das posições que possam ser assumidas na matéria, não deixa de ser chocante a explanada pela eminente figura do Estado Assunção Esteves. É de questionar, a pari, se um evento de importância nacional, como, por exemplo, a posse do Presidente da República, também deveria ser objeto da partilha de custos em termos mecenatais ou mesmo o funcionamento do Parlamento, correndo, caso contrário, a Casa da Democracia o risco de se ficar pelo “inconseguimento” das suas metas e realização de seu desígnio. O que importa, mesmo em tempo de crise pandémica, é saber o que é e para que serve o Panteão Nacional. É o que vamos tentar saber.

A designação e o estatuto de Panteão Nacional em Portugal é partilhada por dois monumentos: a Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa, a partir de 1916, por decreto, e mais tarde, em 2000, por lei; e o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, a partir de 2003, por lei.

A noção de "Panteão Nacional" é pela primeira vez enunciada em Portugal por decreto (sem número) de 26 de setembro de 1836, que refere que um dos edifícios nacionais deverá ser destinado para receber as cinzas dos grandes mortos depois do dia 24 de Agosto de 1820”, o ano da Revolução Liberal.

Não havendo até 1916 nenhum edifício destinado especificamente para o efeito e, tendo sido, na maioria das situações, usado o Mosteiro dos Jerónimos (tais são os casos de João de Deus e de Almeida Garrett), é publicado, a 29 de abril de 1916, o decreto que destina para o efeito o templo inacabado da Igreja de Santa Engrácia. Porém, as suas obras só seriam concluídas em 1966, sendo o Panteão Nacional oficialmente inaugurado em 1967. Dada a duração e arrastamento no tempo de tais obras, passou a ser designada como “obra de Santa Engrácia” qualquer empreendimento que parasse no tempo.

Mesmo no último ano do segundo milénio, é publicada a Lei n.º 50/2000, de 29 de novembro, que “define e regula as honras do Panteão Nacional”, a conceder somente depois do decurso do prazo de um ano sobre a morte dos cidadãos distinguidos, e o continua a circunscrever à igreja de Santa Engrácia. Reservando à Assembleia da República a atribuição das honras de panteão nacional como sua competência exclusiva, explicita a sua finalidade:

“homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade” (art.º 2.º/1).

E a lei n.º 35/2003, de 22 de agosto, distribui o estatuto de Panteão Nacional por dois templos, sendo a finalidade atribuída ao segundo muito restritiva, exclusivamente à laia de reconhecimento, como, a seguir de discrimina:

“O Panteão Nacional, criado pelo Decreto de 26 de setembro de 1836, fica instalado em Lisboa, na Igreja de Santa Engrácia, e em Coimbra, na Igreja de Santa Cruz, estando o uso desta última, sem prejuízo da prática do culto religioso, destinado em exclusivo à prestação de honras ao primeiro rei de Portugal e seus sucessores aí sepultados” (art.º único).

Questionadas as diversas vozes sobre a conveniência ou mesmo a obrigação cívica da trasladação dos restos mortais de Eusébio para Santa Engrácia, toda a gente clama, ou por alijamento de responsabilidades ou por atitude de zelo pela preservação dos poderes, que tal competência é exclusiva do Parlamento. Pois é, a lei assim o determina. Mas a iniciativa, a sugestão podem surgir dos interessados. Que eu saiba, a nossa Constituição ainda consagra o direito de petição, em determinadas condições (cf CRP, art.º 167.º).

Concluindo, assumam as responsabilidades, sejam consequentes. Se promoveram ou aceitaram – e bem – toda aquela empolgante plataforma de liturgia desportiva que o mundo pôde contemplar, levem o herói para o campo dos heróis da modernidade nacional!

O próprio poeta político, de Águeda, sugere a interpretação maximalista das finalidades “panteónicas” quando escreve na obra que dedicou a Eusébio: “buscava o golo mais que golo – só palavra” e “não era golo – era poema”.

É mais fácil ser Presidente da República…

07-01-2014 00:24

É mais fácil ser Presidente da República…

Sim, é mais fácil ser Presidente da República em Portugal do que ser capelão de Sua Santidade, única prerrogativa que doravante passa a dar possibilidade de um eclesiástico de mérito ser tratado por “Monsenhor”.

Segundo a agência Ecclesia, citando a Rádio Vaticano, o Papa Francisco aboliu, a partir de hoje, 6 de janeiro, a “concessão da honorificência pontifícia ‘Monsenhor’ para os sacerdotes diocesanos com menos de 65 anos”. Tal medida não é retroativa, ou seja, os já monsenhores com menos uns pozinhos de longevidade que os daquela idade, agora idade de honorificência pontifícia, que já ostentavam o título com a categoria que o suportava, não o vão perder com esta decisão. Quer dizer: o Papa quer “reformar o Estado”, isto é, a parte externa e meritocrática do governo da Igreja, mas não é desmancha-prazeres caprichoso, nem faz tábua rasa dos direitos adquiridos, como o nosso Governo da República, nem está a cortar nos vencimentos dos outros ou nas pensões (Ao que parece, estará a cortar nele próprio! – Quer dizer que não andou na escola dos nossos políticos, as Jotinhas).

Mais uma novidade: não aposta o Papa na convergência dos trabalhadores do setor público com os do setor privado, isto é, só os padres seculares, os das dioceses, podem aceder ao estatuto do monsenhorato; os religiosos, ou seja, os que fazem os três votos evangélicos e são obrigados à vida em comunidade, não terão acesso a esse estatuto. Depois, a única honorificência pontifícia que “poderá ser conferida aos padres seculares (os não religiosos) é a de ‘capelão de Sua Santidade’” e esses terão, como já foi dito, de ostentar a bela idade de, pelo menos, 65 anos.

Francisco ter-se-á inspirado nos cortes operados por Paulo VI, em 1968, na sequência quase imediata do Concílio Vaticano II (que ele supervisionou, na sua maior parte, e pôs em plena execução), passando os 14 “graus” do título de “monsenhor”, a ficar reduzidos a apenas três: protonotário apostólico, prelado de honra de Sua Santidade e capelão de sua santidade. Agora, passa-se de três para um. Porém, o mecanismo da concessão continua como dantes: a concessão é da competência de Sua Santidade, segundo indicação dos bispos, a sacerdotes cujo trabalho tenha sido particularmente importante para a Igreja, não necessariamente para a salus animarum.

Mas uma coisa é certa: são menos exigentes as condições para poder ocupar a Presidência da República em Portugal, a não ser em caso de muito forte revolução: nacionalidade portuguesa, 35 anos de idade e gozo dos direitos políticos, “a bem da República. São mais afuniladas as exigências para ser monsenhor: estado sacerdotal não religioso, 65 anos de idade e trabalho particularmente importante para a Igreja, ad maiorem gloriam Dei.

Parabéns aos que não são atingidos por este látego restritivo. Só lhes resta crescer e aparecer! E continuar a construção do Reino… sem aumento de vencimento. É a pandemia da crise!

 

 

Em memória de Eusébio

06-01-2014 19:47

Em memória de Eusébio

Este ponto de viragem, do Eusébio um como nós no mundo dos mortais para o Eusébio do reino da esperança, que aguardamos e que nos espera a todos, é marcado pela euforia da gente sincera que chora, reflete e se mostra como fã, admiradora, solidária e cultora da pessoa viva e vivificante.

A vida do símbolo do futebol, um dos pontos mais excelso da fina flor da alma da Pátria, fica para o porvir como o quadro humano de referência da confraternização – sublimidade no esforço, excelência na conquista e sagaz congraçação de vontades. É a memória coletiva a aprender do homem simples, do mito que não morre, porque não veio de cima, não teve de ser fabricado à pressa ou à pressão.

Foi dito Urbi et Orbi pelo Presidente do SLB que os mitos não devem morrer e por um dos também jogadores menos antigos que os mitos não morrem. Este não caiu do céu, não veio da realeza nem da nobreza; fez-se, por entre as angustas agruras da pobreza e do regime fechado que permitia o suspiro forte e fundo através de algumas modalidades de desporto, a partir da simplicidade de almas genuínas na conversação moçambicana; e invadiu a Lisboa fervilhante, onde aceitou o lugar de relevo que lhe entregou quem nele apostou com fé desportiva e, de meio campo, fazia hábil e seguramente a distribuição da esfera rolante ora saltitante, sempre que possível para aquele dos avançados que, a princípio, na simplicidade do acolhimento, e, mais tarde com toda a mestria que soube construir, rumo ao sucesso. E este sucesso concretiza-se no êxito desportivo de um clube e, consequentemente, leva à glorificação de uma pátria e constitui uma singular rampa de lançamento para a dignificação do orbe, mediante aquela atividade que tanto tem de jogos de fora do campo como é capaz de juntar as pessoas e os povos na relação da paz, tantas vezes bem sofrida, mas que, à sua maneira, testemunha a fraternidade e promove a universal confraternização.

Dizia-se que este mito foi perfilhado pelo povo que não subsiste sem mitos; e, quando os não tem, os constrói para garantia de futuro enraizado na memória e a viver do presente. Este é autenticamente do povo e fica do povo que o aceita, assume, vive e torna futuro.

Não é, por isso, de estranhar que de todas as camadas sociais, de todos os grupos desportivos, de todos os quadrantes políticos se tenha mobilizado em crescendo aquela massa enorme cujos grãos não perdem a individualidade, o sentir e o pensar e se tenha feito sentir ostensivamente, mas genuinamente, aquela liturgia desportiva em que nos foi dado participar. É uma liturgia grandiosa – feita de singulares sinais, símbolos, gestos e palavras – tão eloquente como a militar, que alguém, no terceiro quartel do século passado, dizia ser talvez mais atraente que a eclesiástica.

É assim que ora se rende homenagem ao rei imorredouro do desporto de massas e se pede aos portugueses, “que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”, não renunciem à esperança de novos tempos, por mais que a mediocridade que nos vem tentando definir o destino no-la queira minorar ou mesmo arrebatar.

Sobre o glossário parlamentar…

05-01-2014 18:06

Sobre o glossário parlamentar…

A Assembleia da República dispõe no seu sítio eletrónico, à disposição de todos os cidadãos (só não aprende quem não quer), um glossário parlamentar, que apresenta duas vantagens: a fixação de termos que designam as instituições públicas essenciais, os órgãos e os cargos; e a informação sucinta sobre a definição e funções sumárias de cada um. Para satisfação da vantagem referida em segundo lugar, além da definição do verbete que configura cada entrada lexical, em muitos casos, há remissão para informação complementar mais esclarecedora. E, ainda, a propósito de um determinado verbete remete se remete complementarmente para outro ou outros que contenham matéria similar ou relacionável com a do verbete em causa.

Confesso não dever indicar qualquer deficiência ou lacuna aplicável a um trabalho desta índole e extensão, a não ser que pensássemos que o glossário fosse transformado em manual de argumentação ou vade mecum de linguística e boas maneiras, o que certamente cabe às escolas e/ou às plataformas formativas das estruturas partidárias, de que, aliás, devem viver as democracias. Se tais plataformas formativas existem com um mínimo de atividade, os grupos de cidadãos independentes é que poderiam eventualmente ficar em situação de perda formativa!

Todavia e apesar de reconhecer o esforço de escrita segundo as novas da nova ortografia, não posso deixar de fazer um pequeno comentário de ordem linguística sobre alguns termos que integram o texto informativo de cada verbete, que me parecem estar em alguma desconformidade com relação à nova e à velha ortografia.

Assim e a título de exemplo, não se percebe o motivo por que invariavelmente se escrevem com maiúscula, tanto no singular como no plural, palavras como, deputado, ministro, secretário, presidente, vice-presidente, vice-secretário, administração, mesa, plenário… São nomes comuns, pelo que deveriam grafar-se com minúscula, a não ser em início de frase ou quando, pelo contexto de uso, se devem ter como nomes próprios, caso em que deverão ser grafados com maiúscula inicial, como, por exemplo, quando se escreve “o Ministro da Educação”, “o Deputado Nuno Melo” ou se usa o vocativo “Senhor Deputado”, “Senhor Ministro”, “Senhor Presidente”…

Já será plenamente aceitável grafar com maiúscula inicial a designação de órgão por extenso ou por forma abreviada, como o Presidente da República ou o Presidente, Assembleia da República ou Assembleia, Governo, Tribunal Constitucional; a designação de titular de relevante cargo em concreto, como a Presidente da Assembleia da República ou a Presidente, Vice-Presidente da Assembleia da República ou o Vice-Presidente, Primeiro-Ministro ou Primeiro-ministro. Porém, não me parece designação de relevante cargo a simples denominação de deputado, ministro, secretário, vice-secretário, presidente, vice-presidente, a não ser quando utilizados em concreto referida a este ou àquele em concreto. E também me parece que mesa e plenário ou comissão, conferência de líderes não serão órgãos, mas apenas estruturas funcionais que concretizam a democrática e eficaz concretização do funcionamento parlamentar.

Quanto ao atinente às epígrafes, pode perfeitamente grafar-se, por exemplo, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, como “Comissão parlamentar de inquérito.

Finalmente, resta acrescentar que a dignificação ou a importância da designação não advêm da grafação com maiúscula, mas de outras variáveis, como a consagração constitucional, a formação, o desempenho e, sobretudo a atitude política de excelência.

 

Sobre Política…

04-01-2014 20:31

Sobre Política…

Ao recordar aquilo que sobre o tema afirmou o Papa Francisco a 7 de junho de 2013, na Aula Paulo VI, no Vaticano, em resposta a uma das questões levantadas no encontro com os representantes das escolas dos jesuítas da Itália e da Albânia, pus-me a refletir sobre a necessidade do envolvimento dos cristãos na vida política ativa. Ora, o papa, sem papas na língua, afirma com toda a clareza e força:

“Para o cristão é uma obrigação envolver-se na política. Nós, os cristãos, não podemos ‘jogar a fazer o Pilatos’, lavar as mãos. Não podemos! Devemos envolver-nos na política, pois a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. E os leigos cristãos devem trabalhar na política.”.  

E, respondendo a uma possível objeção, esclarece:  

“Dir-me-ás: ‘Não é fácil!’ Também não é fácil tornar-se padre. Não há coisas fáceis na vida. Não é fácil; a política está muito suja; e ponho-me a pergunta: Mas está suja, porquê? Não será porque os cristãos se envolveram na política sem espírito evangélico? Deixo-te esta pergunta: É fácil dizer que ‘a culpa é de fulano’, mas eu que faço? É um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever do cristão!”.

Porém, sabendo que o magistério da Igreja vem afirmando repetidamente que a missão da Igreja não é de ordem política, mas que a Igreja, enquanto “perita em humanidade”, não pode deixar de fornecer orientações e propostas que os cristãos deverão ter em conta na sua atividade social e na contribuição para o desenvolvimento da pólis, obviamente sem vincular os cristãos a um único projeto de condução política, dado que todos estes projetos são de si parcelares e decorrentes de uma ideologia, necessariamente limitada. Se a atividade política de cariz partidário não convém à ação dos pastores (bispos e sacerdotes), pelo que pode originar de divisão desnecessária nas comunidades que lideram – e João Paulo II quase intimou bispos e sacerdotes a abandonar a liderança política partidária e Bento XVI aceitou de bom grado a renuncia ao múnus episcopal de um dos bispos da América Latina, que se alcandorara a uma chefatura de estado – tal não significa que em caos de grave crise os pastores não devam produzir orientações claras e promover uma excecional participação dos cristãos na debelação e ultrapassagem da gravidade das situações (Isso o fizeram os bispos portugueses no auge do PREC, 1975, como refere Freitas do Amaral em O Antigo Regime e a Revolução, 1995, e eu bem recordo). Por outro lado, Paulo VI, na sua exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (1975), no seu n.º 70 ensina:

“O campo próprio da sua atividade evangelizadora é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos ‘mass media’ e, ainda, outras realidades abertas para a evangelização, como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento.”

E isto porque – refere-o o n.º 33 – porque a libertação evangélica

“não pode ser limitada à simples e restrita dimensão económica, política, social e cultural; mas deve ter em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o absoluto, mesmo o absoluto de Deus; ela anda portanto coligada com uma determinada conceção do homem, uma antropologia que ela jamais pode sacrificar às exigências de uma estratégia qualquer, ou de uma ‘práxis’ ou, ainda, de uma eficácia a curto prazo”.

Posto isto, tornou-se conveniente uma espreitadela pelos conceitos que a história do pensamento vem oferecendo sobre política.

Na filosofia aristotélica, a mais inspiradora da doutrina em regime de permanência, a política é a ciência que tem por objeto a felicidade humana, dividindo-se em: ética, que almeja a felicidade individual do homem na pólis; e política propriamente dita, que visa a felicidade coletiva da pólis. O objetivo de Aristóteles foi investigar as formas de governo e as instituições capazes de assegurar uma vida feliz ao cidadão pelo que, na sua ótica, a política se situa no âmbito das ciências práticas, isto é, das ciências que cujo objeto é o conhecimento como meio para ação. Não há política sem ação! E ação política sem uma base de conhecimento sólida será tudo menos política.

Para Platão, a política consiste na governação dos cidadãos segundo a justa medida de modo que alcancem a felicidade. Face às situações que encontrou de corrupção e de injustiça na administração da cidade, inclusive a condenação à morte de Sócrates, o sucessor do mestre, não se circunscreve à pesquisa de remédios paliativos, mas pretende solucionar o problema na sua origem, propondo aos futuros governantes como meio mais justo o caminho da filosofia, imune à corrupção e que lhes permite conhecer o bem supremo e agir em conformidade com ele.

Já Sócrates acreditava que as ideias pertenciam a um mundo que somente os sábios conseguiam entender, fazendo com que o filósofo se tornasse o perfeito governante para um Estado, do que resultara a sua oposição à democracia aristocrática que, à época, era praticada em Atenas. 

Tomás de Aquino, por sua vez, articula a fina flor do pensamento medieval com o da herança neotestamentária e retoma o essencial da ética aristotélica, acentuando-lhe a dimensão realista e exigindo-lhe maior firmeza de princípios e uma maior fineza na aplicação. Ao enfatizar o que denomina de justiça legal e a que nós poderíamos chamar justiça política, evidencia como seu fim supremo o bem comum, que é diviníssimo, e para o qual deve ser orientado o conjunto das atividades do cidadão. Assim se encaminha a atividade dos cidadãos para a prática da justiça, a principal das virtudes cardeais, acima da qual só se evidenciam as virtudes teologais. Entre as formas de justiça emerge a justiça política que se assemelha tanto à providência divina que o seu objeto é qualificado de "o mais divino". Seguindo e aprofundando Aristóteles, Aquino aborda a justiça como virtude e como valor social, pois é princípio de retidão para os indivíduos, para as relações e para as instituições da sociedade.

Infelizmente não é este o ambiente conceptual e prático que hoje orna a prática política e a doutrina que lhe subjaz, bem ao contrário daquela que é ensinada e propalada pelos atuais corifeus da condução dos povos.

Maquiavel, em rutura com a conceção tradicional, que serviria aos cidadãos, mas deixava de fora os servos e os escravos (os não cidadãos) abriu para um conceito que proliferou em inúmeros sequazes: partindo da ideia de que o ser humano é massa corrupta que se compraz em ser enganada desde que se sinta em segurança, a política é entendida como a arte de seduzir e manipular, satisfazendo assim os objetivos do príncipe e correspondendo aos desejos imediatos dos governados.

Não é, pois, por acaso, que, após o desgaste das ideias belas em si da revolução francesa – sintetizadas na trilogia cristã da liberdade, igualdade e fraternidade – e do holocausto resultante do totalitarismo nazi-fascista ou do asfixiante e também totalitário modelo bolchevista, a doutrina social da Igreja inicie com Leão XIII um caminho claro de doutrina social que marca orientações em regime evolutivo, é claro, pressupondo e proporcionando críticas contundentes à selvajaria da ambição desenfreada do ter sobre o ser contra tudo e contra todos.

Concluindo, é necessário reler as transcritas palavras de Paulo VI e as de Francisco e atentar bem nas seguintes deste último na já referida ocasião:

[Um rabino] “explicava aos judeus daquele tempo a história da Torre de Babel. Construir a Torre de Babel não era fácil: tinham-se de fazer os tijolos. E como se fazem os tijolos? Tinha-se de procurar o barro e a palha, misturá-los e levá-los ao forno: era um trabalhão. Com este trabalho todo, um tijolo tornava-se um verdadeiro tesouro! Depois havia que levar os tijolos lá para cima, para a construção da Torre de Babel. Se um tijolo caía, era uma tragédia; castigavam o trabalhador que o deixara cair... era uma tragédia! Mas, se por ventura caía um homem, não acontecia nada! Esta é a crise que estamos a viver hoje: esta é a crise da pessoa. Hoje a pessoa não conta; contam os euros, conta o dinheiro. Ora Jesus, Deus deu o mundo, deu toda a criação, não ao dinheiro, mas à pessoa, ao homem e à mulher, para que a fizessem progredir. É uma crise da pessoa... está em crise, porque hoje a pessoa – atenção, isto é verdade – é escrava! E nós temos de nos libertar destas estruturas económicas e sociais que nos escravizam. Esta é a vossa tarefa.”.

Não podemos, entretanto, esquecer que o silêncio e a omissão também podem ser atos políticos.

A “guerra civil” da minha cidade

04-01-2014 16:34

A “guerra civil” da minha cidade

Andei na “guerra civil” da minha cidade, no milénio anterior.

Era uma guerra delicada e respeitadora. Todos os beligerantes se davam bem e eram amigos, como se fossem irmãos. Raramente assumia feições de guerra intestina, como lhe chamavam os romanos: só quando o almoço era de feijoada à Viriato. A guerra dava-se no 14 de Infantaria, que passara por várias localidades, e todos se tratavam por “Viriatos”, em homenagem ao grande pastor-general lusitano com o nome de VIRIATO. Só que nós, naquele tempo, já não fazíamos a guerra nem à pedrada nem à paulada. Isso ficará para o próximo milénio. “Cuja fome ninguém virá que dome” era o nosso lema. Como alternativa, tínhamos outro: “Juro e jurarei – ao rancho e ao pré não faltarei”.

A guerra civil iniciava-se na segunda-feira, às nove e vinte, depois de todos regressarem do fim de semana e de os mártires de serviço sofrerem com a alvorada e tomarem o merecido pequeno-almoço. Aos outros dias, a guerra abria às oito e meia. Meio-dia em ponto, a guerra ia almoçar para, à uma e meia da tarde, retomar o seu estilo. A guerra fechava às cinco da tarde, exceto às sextas-feiras, em que, por ser o dia da mãe, encerrava às quatro, mas nunca sem que o Ex. mo Comandante tivesse passado a revista e tivesse dado a respetiva autorização de fim de semana a quem tivesse requisitado o passaporte.

Sempre que o Ex. mo comandante (ou outro GRANDE) entrasse, toda a guerra se punha em sentido. Era ele que provava, em todos os dias de guerra, o rancho – o qual estava sempre muito bom, no momento da prova. Ao jantar, como a guerra era nula ou muito reduzida, quem passava o certificado de qualidade do rancho era o oficial de dia, que também era oficial de noite. Informações posteriores rezam que se voltou ao antigo regime e também durante o dia útil há oficial de dia que faz a prova do almoço.

Aos sábados, domingos e feriados, bem como de noite não funcionava a guerra – creio que por preguiça ou por avaria. Em todo ocaso, não fosse o inimigo tecê-las, ficavam de serviço os mártires voluntários à força. E, para conforto em tempo de solidão, tinham a presença do padre capelão, do médico e do segundo comandante. Esta guerra minúscula, no entanto, era comandada pelo oficial de dia, assessorado pelo sargento de dia e pelo cabo de dia, que funcionavam preferencialmente de noite. Havia também o oficial de prevenção (não viesse o diabo a urdi-las caprichosamente) e o comandante de piquete, para acudir às emergências e calamidades. Os guerreiros que não participassem nesta guerrilha, tinham duas opções: a instrução noturna, a cargo deles próprios; e a vida artística ou clandestina. Dizem que os serviços forneciam materiais típicos em caixas de fósforos, informação que me não era dado confirmar nem desmentir.

A guerra civil era muito culta: além do trabalho que dava de Biblioteca e de Museu, proporcionava inúmeras visitas de estudo. Eram visitadas as cidades, vilas e aldeias quando falecia algum militar; organizavam-se excursões a algumas serras de Portugal; ia-se a Fátima e a Lourdes; faziam-se raids a Almeida e ao Buçaco; organizavam-se estágios em Coimbra (ao pé de Sua Excelência, o General Comandante de Região Militar, mais tarde extinta) e em Tomar (na Casa de Reclusão); o piquete incorporava-se na procissão do Enterro do Senhor; e todos os dias se ouvia a fanfarra regimental.

Excecionalmente, era guerra a valer, de noite e mesmo fora de quartéis, com direito a ração de combate. Tal acontecia quando inesperadamente o Ex. mo Comandante, depois de ter combinado com os membros do Estado Maior da Unidade, mandava acionar o alarme, para aferir da capacidade da prontidão de guerra na resposta à chamada para outras guerras, as não civis. Funcionava também a guerra de noite (e de dia), quando a Santa Luzia deixava ou quando a população de Penaverde, no concelho de Aguiar da Beira, se decidia a gostar da guerra. Claro, se eventualmente a guerra se sentisse atacada, se pudesse, reagia; se não pudesse, paciência. Fugir, sem autorização do comando, é que não podia ser. Seria um crime essencialmente militar, punível pelo código de justiça militar, como tantos outros. Além disso, os fugitivos seriam apelidados de cagões, cobardes, traidores, filhos espúrios ou homúnculos sem pátria.

De véspera, em todas as guerras, se combinava quem era o inimigo no dia seguinte e quando se trocava de estatuto ou de campo. Não se podia lançar um dilagrama, rebentar um morteiro, fazer troar um canhão ou disparar um tiro, sem autorização do Ex. mo Comandante, que às vezes, se fazia bem esquisito, sobretudo se o ensaio não tivesse sido feito com tempo e cuidado. Não se podia pôr em risco nenhum dos filhos da guerra nem gastar mal o dinheiro dos contribuintes! Ninguém podia passar fome. Estávamos ali para defender a pátria e não para definhar por ela. Os filhos da pátria tinham que andar bem nutridos. Mulheres ali não as havia (ao menos dentro do quartel não havia as tentações que hoje possa haver, dada a sua presença, que podem não conduzir a pecado, entenda-se): estávamos para combater e não para outras coisas...

A guerra tinha atividades especiais, como a apresentação de novos filhos da guerra, o juramento de bandeira dos mesmos, o dia da guerra, as datas em que se recordavam os soldados mortos em combate (generais e brigadeiros, era raro, que eu visse!), a passagem à peluda dos cansados de serem chamados filhos da guerra e a visita de algum grandalhão. Nesses momentos, a guerra caprichava em alinhamento, pompa, discursos, banda de música, bandeiras e armas. Enfastiantes eram as três semanas de duro ensaio, para que tudo saísse nos trinques. A guerra não podia ficar mal vista perante os pais e mães dos filhos da guerra nem perante as diversas autoridades civis, religiosas e militares. Vinha general, bispo, governador civil, jornalistas... Alguns pais ficavam embevecidos, quando o seu filho era o único que, no meio de tantos, marchava com o passo certo.

Mas a guerra usava o telefone, o rádio, os papéis e livros, a bússola, o sol, a orientação das igrejas paroquiais. Pena é que ainda não havia o telemóvel nem o computador estava divulgado, quanto mais os i-pod, i-pad ou i-ped ou tablet. Os carros da guerra andavam sempre com o conta-quilómetros avariado. Os que nunca tinham avaria eram os carros do comando – parecia mal! Usava-se a energia elétrica e rezava-se para que ela não faltasse, não sucedesse que não se soubesse do gerador ou que ele não funcionasse na altura própria.

Armas nunca faltavam. Cada um tinha a sua e não a podia abandonar, se não era duramente punido. Faltavam muitas vezes as munições, mas ninguém levava a mal. Aliás, só se muniam as praças com autorização do comandante de companhia, não fosse algum desmandar-se desnecessariamente. E também havia ao serviço da guerra quem só usasse armas de museu ou armas agrícolas e de cozinha: o padre e os básicos.

A guerra era completa: não falhava o tacho; era proibida a greve e o eventual levantamento de rancho prejudicava a imagem da Unidade; dispunha-se de educação cívica e moral militar; tínhamos enfermaria (com médico, enfermeiros, maqueiros e socorristas), capela (com padre e sacristão – o pessoal ia à missa, confessava-se e comungava); estava a guerra dotada de museu e biblioteca; havia oficinas auto, carpintaria, serralharia, porcaria, vacaria, abastecimento de combustíveis – gastava-se uma fortuna; havia ginásio e campos de jogos, paiol, centro cripto. Nada faltava à guerra.

Quando alguém se portava mal – o que era raro – o Ex. mo Comandante, com base nos processos amigáveis da secção de justiça e disciplina, dava umas “porradas”, quando os capitães não tinham já dado as respetivas “pissadas”. Peço imensa desculpa, mas a guerra civil tinha destes palavrões para significar punições disciplinares ou meras repreensões, respetivamente.

A guerra era muito organizada: tinha pelotas, companhias (cada uma vivia na sua casa, onde havia de tudo, exceto comida), batalhões, secções, secretaria, gabinetes. Até havia uma secção de instrução, para que deixasse de haver analfabetos; uma secção de operações, para que não houvesse preguiçosos; uma secção de logística, para que nada andasse ao deus-dará; e uma secção de informação, para que cada um soubesse em que lei vivia. A guerra só recebia ordens de cima. Ainda não estavam em vigor as leis das ogivas e dos mísseis. Além das armas convencionais, também se usavam as armas biológicas, como colheres, garfos, facas, copos, autoclismos, dentífricos, toalhas, medicamentos. Destes, alguns eram químicos. Por isso, também pudemos falar de guerra química. Já me esquecia de que a secretaria regimental também tinha em armazém muito papel químico. Guerra nuclear havia, quando as ordens vinham do núcleo duro, isto é, o estado maior da Unidade; atómica era quando o inimigo ficava reduzido a pó, ou seja, verdadeiramente atomizado. Todos andavam ao toque de corneta, mas, nas festas da guerra, aparecia um cabo a tocar uma gaitinha metálica, com um som muito agudo, à qual chamavam requinta. O comando geral da guerra estava entregue a um a primeiro comandante coma patente de coronel, assessorado por um tenente-coronel como segundo comandante. A minha guerra desfrutava ainda de um terceiro comandante, que era o cabo que mandava fazer alicerces, armar os aços e misturar a areia com o cimento e com a água. Quando ele se enganava ou não sabia, vinha de Coimbra o capitão engenheiro, que também acertava pouco.

Na guerra, a antiguidade era um posto. Por isso, os “ferrugens”, aqueles que faziam sentido com as pernas abertas, praxavam os “maçaricos” e faziam-nos arranhar, muito sofrendo quem era maçarico.

A guerra era inviolável. Para que o fosse efetivamente, o quartel era guardado permanentemente por um indivíduo que já soubesse o que andava fazer e que triava todas as entradas. A todos fazia vénias, mas perante uns punha a arma ao ombro e a outros apresentava-a – de modo que a guerra civil da minha cidade, além de eficaz, passava sempre por muito simpática e cordata – para gáudio da população da cidade, que dela soberbamente se orgulhava.

Texto do início do 3.º milénio “recalibrado”, à Marques Guedes não necessariamente aumentado, em 2014.01.04

A posição de “bom aluno”

03-01-2014 23:54

A posição de “bom aluno”

 

O país aproxima-se cada vez mais do momento em que a troika se vai embora e teoricamente os mercados nos abrem as portas do financiamento com ou sem aval das autoridades da zona Euro. Longe vá o agouro de segundo resgate!

Ir-se embora a troika, vai: devem estar fartos de fazer aqueles exercícios de avaliação “positiva” em que nada ou quase nada do previsto se cumpre; e nós saturados com as contradições entre as declarações políticas dos responsáveis do FMI e as operações técnicas dos seus altos funcionários, que baixaram a Lisboa, secundadas por aquelas afirmações Urbi et Orbi sobre o que Portugal deve ou não deve fazer. No entanto, continua a pairar a incerteza sobre a possibilidade de a governação lusa ser ou não capaz de levar o país a bom termo sem contrapartidas pesadas. Gaspar, depois de fazer bem o exercício de ministro do FMI, da EU e do BCE, reconheceu que se enganou, disse as razões, foi-se embora e indicou sucessora agradável à direção alemã.

O governo, que chegou a querer ir além do estabelecido pelo programa de ajustamento e se autoafirmou como bom aluno da Europa, já veio dizer que o programa fora mal desenhado porque em junho de 2011 os políticos não implicados no governo não conheciam o real estado do défice e da dívida, quando as contas foram reveladas meses antes e o ao tempo negociador por parte do PSD saiu das operações negociais tão eufórico como o ainda primeiro-ministro de então: não era necessário o aumento de impostos, nem esmifrar os subsídios de férias e de natal nem mexer nas pensões. Mais tarde, o programa, apesar de reclassificado como mal calibrado, continuava a levar-nos ao termo do período de ajustamento com sucesso.

Ontem, dia 2 de janeiro, o governo da nação, numa operação cosmética a que chamou de “recalibragem” das medidas rejeitadas pelo tribunal Constitucional, procedeu à “calibragem” do programa, não na fonte ou a médio prazo, mas a curto prazo e seletivamente no universo dos portugueses, desde há muito selecionados – idosos e funcionários públicos. Já agora o ato de recalibrar um produto não o melhora: não é pelo facto de, por exemplo, as avelãs passarem duas vezes na calibradora que aumentam de volume ou de peso!

Se bem me lembro – que me não leve a mal o distinto Vitorino Nemésio – o então “certíssimo” e o hoje apagado primeiro-ministro de 1985 a 1995, no pleno exercício das funções presidenciais fazia questão de estatuir Portugal como o bom aluno da União Europeia a que aderira em 12 de junho de 1985, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 1986.

Penso que a adesão de Portugal à Europa não foi nem devia ser apresentada como um ato de matrícula numa escola, em que uns têm a missão de ensinar (professores ou docentes) e outros a necessidade de aprender. Tal confissão de aprendizagem devia ter sido repudiada por uma oposição política que fosse consciente. Não estávamos em maré de dar cartas ou de receber cartas. Era uma atitude de mutualidade em que as relações deveriam ser recíprocas, em pé de igualdade de estados-membros. E a situação degradou-se a ponto de uns terem conseguido o estatuto de superior que dá ordens e os restantes ou obedecem ou são chamados à pedra. No caso de Portugal, fomos obedecendo e sendo chamados à pedra, porque abusámos real ou aparentemente de recursos e de projetos nem sempre sérios; no caso de outros, uns tiveram o castigo que Portugal teve e uns tantos não tiveram qualquer sanção. A nós, adicionalmente, após o tirocínio da navegação pelo reino do betão, coube-nos o rebuçado de termos um português como presidente da Comissão Europeia durante dez anos, com as enormes vantagens (!) que o país sente do Minho aos Açores, quiçá sem passar pelo resto do continente. E de um patamar de relações de igual para igual, na lógica do mutualismo, em que se dispõe de tempo suficiente para conciliação e equilíbrio de contas, a Europa passou a ter, ao arrepio dos tratados, países credores (vg Alemanha, Holanda e Finlândia...) e países devedores (Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha/banca, Chipre e, em certa medida, Itália, França...). Será esta a união europeia ou a da exploração dos países mais débeis pelos mais ricos, já esquecidos dos benefícios que lhes foram historicamente concedidos com a máxima liberalidade?  

De resto, quem é professor, sobretudo de classes mais avançadas, bem sabe que bom aluno não é aquele que “psitaquicamente” decora tudo quanto o mestre expôs, mas sobretudo aquele que, atento ao professor e às suas indicações, progride em regime de autonomia cada vez mais conseguida, e apresenta informação, de quando em quando, problemas e soluções, por vezes, inéditas, embora sujeitas à discussão da classe, com quem estabelece relações de diálogo ativo e cooperação eficaz.

Recalibragem

03-01-2014 19:44

Recalibragem

O Tribunal Constitucional, na sequência do pedido de fiscalização preventiva oportunamente apresentado pelo Presidente da República (CRP, art.º 278.º/1), concluiu, por unanimidade, pela inconstitucionalidade do decreto n.º 187/XII, da Assembleia da República, que supostamente seria transformado em lei da convergência das pensões do setor público com as do privado. Mais tecnicamente o seu objeto vinha descrito na portada do diploma parlamentar como segue:

“Estabelece mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, e à alteração do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e revogando normas que estabelecem acréscimos de tempo de serviço para efeitos de aposentação no âmbito da Caixa Geral de Aposentações”.

O mesmo órgão de soberania, de jurisdição constitucional, longe de considerar como inconstitucional qualquer forma de redução de pensões em pagamento, chega ao ponto de declarar, pela voz do seu presidente, que tal redução poderia ser aceitável como conforme com a Constituição, desde que inserta num contexto de reforma da Segurança Social e de implicação universal.

A isto, as vozes da maioria parlamentar asseguram que respeitarão escrupulosamente as decisões do Tribunal Constitucional. Era o que faltava virem a terreiro declarar a desobediência institucional, quando, segundo a mesma Constituição, as decisões os tribunais prevalecem sobre as de quaisquer outros órgãos de soberania (CRP, art.º 205.º/2)!

O Primeiro-ministro vem, por seu turno, declarar que o governo vai estudar o acórdão com muita atenção e agir em conformidade para encontrar uma solução adequada.

Ora, o Conselho de Ministros veio ontem, dia 2 de janeiro, oferecer aos pensionistas uma boa prenda de ano novo, a recalibragem do sistema de segurança social, consubstanciada em duas coisas: alargamento da base da contribuição extraordinária de solidariedade (CES); e o aumento de comparticipação dos atuais beneficiários para a ADSE. O JN, de hoje, reconhecendo que o governo foi omisso nos termos concretos das anunciadas medidas, citando fontes próximas do governo, aponta como estando na mesa da discussão a incidência da CES a partir da pensão bruta de mil euros e o desconto de 3% para a ADSE por parte dos atuais subscritores/beneficiários. Note-se, a este respeito, que os atuais funcionários do Estado já pagam muito para a sua segurança social (11% para a CGA e atualmente 2,5% para a ADSE).

Alegadamente, o governo quer que a ADSE se torne sustentável por si própria. Como, se os funcionários do Estado que entraram ao serviço a partir de 1 de janeiro de 2006 já não são seus subscritores, aliás como em relação à Caixa Geral de Aposentações? Recalibrar é obrigar um organismo em vias de extinção a autossustentar-se? Será possível o governo não encontrar alternativas para um corte de cerca de 400 milhões de euros somente através da insistência nas medidas anuladas por quem de direito, ora recalibradas? Quererá o governo reencaminhar da ADSE para um presumível seguro de saúde funcionários em fim de carreira ou já aposentados, no pressuposto que as seguradoras estarão de braços abertos a acolher novas inscrições com um horizonte contributivo curto e a troco de um prémio regular adequado à bolsa dos funcionários públicos (recheada de capital humano em vez de dinheiro) e dos pensionistas da CGA (a maior parte com cortes já avultados)? Ou desejam os governantes congestionar ainda mais o sistema nacional de saúde?

Perante a imposição da surpresa o governo não sabe fazer outra coisa, a não ser baralhar e dar na mesma, isto é, atingir sempre os mesmos como alvos a eliminar ou a minorar – funcionários públicos e pensionistas – uns porque, segundo algumas vozes, parece que trabalham de menos e ganham de mais, outros porque constituem um crónico estorvo social. E é este um governo humanista! Ora se o não fosse…

Enfim, se o governo não consegue governar de outra guisa, ao menos que não tente embalar-nos até 2015, (“o ano imediatamente consecutivo ao de 2014”, disse Gaspar) com novas entradas lexicais, como: reforma do Estado, TSU, CES, convergência e, agora, recalibragem!

Não deve nem pode ser cega a justiça

02-01-2014 17:03

Não deve nem pode ser cega a justiça.docx (21002)

Inanidade de uma comunicação

02-01-2014 15:32

Inanidade de uma comunicação

Fonte oficial do Palácio de Belém esclareceu que o Presidente da República não remeteu para o TC (Tribunal Constitucional) o diploma que aprova o Orçamento do Estado para 2014, promulgado, referendado e publicado a 30 de dezembro e posto em vigor desde ontem, 1 de janeiro, pelo facto de os pareceres não apontarem para a inconstitucionalidade de qualquer de suas normas.

Tal informação tem de ser considerada inútil e inane, pois, se é certo que a CRP (Constituição da República Portuguesa), estabelece que o PR pode submeter à apreciação preventiva do TC qualquer diploma que lhe suscite dúvidas fundadas de constitucionalidade e se o órgão de soberania Presidente da República é unipessoal, também é certo que a CRP não lhe veda a possibilidade de consultar quem quer que seja, até porque a orgânica da Presidência da República dispõe de uma não diminuta plêiade de conselheiros e assessores distribuídos pela Casa Civil e pela Casa Militar. Dizem mesmo as más-línguas que os serviços ficam bastante mais caros que os da casa real espanhola. Por outro lado, as condições básicas para um cidadão se alcandorar à Presidência da República são minimalistas: ser cidadão português, estar no efetivo gozo dos direitos cívicos e políticos e ter atingido a idade de 35 anos, não se lhe exigindo, assim, qualquer competência específica em algum ramo do saber.

Por isso, ninguém estranha que Sua Excelência se muna prudentemente de todos os pareceres que lhe permitam tomar uma decisão plausível ou, pelo menos aceitável, por mais solitária que seja a sua natureza. Donde a inanidade da supramencionada comunicação, aliás análoga a esclarecimentos bem despropositados e aparentemente emotivos do Presidente, a não ser que se trate de mais uma forma de pressão ténue sobre uma possível decisão do TC em caso de pedido de fiscalização sucessiva por parte de quem tenha poderes constitucionais para tanto. Ou será que, das outras vezes, os sinais de inconstitucionalidade eram tão inequívocos que os juízes constitucionais só julgaram da não inconstitucionalidade das normas cuja fiscalização lhes foi solicitada para contrariarem os conselheiros do Presidente? Creio não dever acreditar nesse tipo de caprichos da autoridade de justiça constitucional!

Quanto às minhas dúvidas da constitucionalidade do orçamento, seja-me permitido produzir também uma reflexão inane. Pouco me importa que alguém, mesmo que seja S. Ex.cia Rev.ma o senhor patriarca de Lisboa, acredite que não será necessária qualquer fiscalização da constitucionalidade da lei do orçamento, embora reconheça a importância e justeza do movimento gerado em torno de tal matéria. Depois, estranha-se que a hierarquia da Igreja, mesmo que se trate somente da posição do bispo de Lisboa, apareça aos olhos dos desfavorecidos como bastante asténica! Quem já leu o diploma orçamental certamente que não vai pedir àqueles que não têm dúvidas sobre a constitucionalidade das normas que devolvam aos prejudicados a diferença entre o rendimento percebido durante o ano de 2013 e o percebendo em 2014, seja ele proveniente de vencimento de funcionário público seja resultante da pensão de reforma, aposentação ou sobrevivência (sobretudo no caso de quem aufere um rendimento magro e único). Também não se lhes exige a devolução da diferença entre o montante do anterior imposto único de circulação e o atual, bem como a diferença de taxa moderadora ou de descontos para a ADSE. Nem se lhes aconselha a travagem da alta de preços ora inaugurada sem termo à vista, bem como a paragem do anunciado desmantelamento estruturas e de serviços ou da sua entrega a privados, sem as necessárias cautelas.

Depois, com que legitimidade nos vêm prometer o reforço da economia, com as visíveis restrições ao consumo, ou a saída da crise e a libertação das malhas protetorais europeias?

E se o TC, segundo os críticos, deve julgar a bondade constitucional das leis de acordo com o contexto em que o país vive, peçam-lhe que a julgue também tendo em conta o desaparecimento de dinheiros públicos face à má vigilância das entidades controladoras e a ineficácia da justiça ou a prescrição de dívidas fiscais, a corrupção ou a fuga aos impostos, a perceção de rendimentos obscenamente chorudos e a candidatura indevida a alguns benefícios sociais que fazem falta a outrem…

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Pode consultar também em: https://ideiaspoligraficas.blogspot.pt/

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