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Da unicidade de pensamento…à imposição de uma determinada engenharia social

23-01-2014 11:53

Da unicidade de pensamento…

… à imposição de uma determinada engenharia social

Todos aceitam que a democracia é o governo do povo. Dividem-se as opiniões em determinar como o povo exercerá o poder de que é detentor: se através da participação direta em assembleias deliberativas e/ou executivas regulares (o que será relativamente fácil em universos territoriais e populacionais devidamente circunscritos); ou se pela participação através da deputação de representantes seus por via eleitoral.

No primeiro caso, perante a magnitude do universo popular é tentadora a criação da vanguarda ativa que acaba por tomar as rédeas do dinamismo da decisão postergando um cada vez maior número de unidades pensantes e operativas. Daí, para chegar ao pensamento único com pequenas variantes de pormenor basta um passo de caracol. Quanto ao segundo modo de exercício do poder democrático, é fácil o eleitor divorciar-se da coisa pública, se o levarem a ater-se unicamente ao momento do voto e ele renunciar a outras formas de intervenção, como a participação em reuniões, manifestações, ações populares, debates em rádio e televisão, colunas de jornais, convívios, petições – ou seja, o fomento e a utilização da consistente massa crítica – já que o ato eleitoral pode ser de efeito limitado em virtude da hegemonia dos aparelhismos partidários e da conveniente invocação do despesismo.

Seja como for, a democracia assenta sempre no seguimento da vontade expressa das maiorias. Porém, para que não impere a ditadura de uma caprichosa maioria de tentação tirânica, inventou-se a modalidade de alguma participação de forças não maioritárias desde que de expressão considerada significativa, sobretudo nos órgãos deliberativos ou de superior direção estratégica. É a metodologia da representação proporcional. E o sistema torna-se ainda mais salutar se apostar no respeito pelos legítimos interesses das minorias, maxime quando estes configuram direitos, liberdades e garantias fundamentais. É por isso que as contemporâneas constituições, ainda antes da definição da organização do poder político (eu preferiria dizer “dos poderes políticos”), consignam um complexo de princípios, como a universalidade, a igualdade, a proporcionalidade, a proteção da confiança, o acesso ao direito e a segurança jurídica; e os direitos, liberdades e garantias nos campos pessoal e familiar, social e cultural, económico e do emprego, da participação cívica e da intervenção política.

Consagrada que fica a complexidade de pluralismos, de que se torna evidente o pluralismo político, no entanto, muitas vezes, a coberto da igualdade de oportunidades de participação e intervenção, cometem-se dois tipos de erro: ou a oferta de espaço ou tempo de intervenção em temos de igualdade a forças cuja expressão social é deveras desigual, o que remete para uma certa injustiça; ou a oferta dessa oportunidade de acordo com a real expressão social, o que impede que alguns nunca tenham oportunidade de aparecer na pantalha da discussão pública ou que não atinjam a visibilidade que lhes permita sair da menoridade social e política. Por outro lado, os detentores do poder económico e financeiro, os seus fiéis servidores (lacaios), umas vezes bem pagos, outras nem tanto, ou os dotados de alta capacidade de penetração nos escaninhos dos poderes ou no mundo da intriga competem para impor os seus interesses supernos, com uma voracidade assustadora, se percetível, e tantas vezes em nome dos mais plausíveis ideais.

Entretanto, nos últimos tempos, como tem acontecido noutras ocasiões, mais do que o respeito pela vontade, interesses, direitos e legítimas aspirações de grupos minoritários, alguns pretendem impor à aceitação das maiorias os seus pontos de vista, as suas práticas, não só com foros de legitimidade como de exemplaridade. E quem não alinhar, ou com legitimidade ou por caturrice, é apontado como residindo ainda na Idade Média, nas malhas do obscurantismo obsoleto e na resistência ao progresso da civilização. É o que Duarte Branquinho na edição de O Diabo, de 21 de janeiro, denomina de uma tentativa de imposição de uma engenharia social.

E essa tentativa de imposição de engenharia social, para lá de servir os seus não ocultos fins e lançando mão de vários meios (utilização de crianças e invocação de seus superiores interesses, manifestações junto dos lugares de decisão, provocação social e política perante a visita e a presença de altas personalidades…), cai bem em tempo em que as decisões políticas se afiguram mais gravosas para a população, designadamente para os seus setores mais frágeis ou os espectros económico e financeiro parecem estar a colocar a governação em situação de impasse. Por outro lado, essa pretensão é complementar, se não sua irmã gémea, da política intoxicante da inevitabilidade do rumo certo em que estamos porque o outro governo (só os outros, nós não: nós só participámos por distração!) pôs o país na bancarrota e temos de pagar àqueles que nos emprestaram dinheiro (estávamos a viver acima das nossas possibilidades). Tal esquema de intoxicação é apoiado internacionalmente sob a égide dos mercados e suas agências de rating, como pelas instâncias políticas em que participamos. E, se a sinfonia internacional do esforço de sucesso que Portugal vem fazendo não culminar no êxito hipocritamente esperado, já está preparada a explicação: o FMI discerne que a economia portuguesa, para obter crescimento sustentável, precisa de reforçar a procura interna, quando o governo decreta um programa de mais cortes ao rendimento; a Comissão Europeia vem, com um atraso de três anos badalar que o programa de ajustamento veio muito tarde; e os iluminados de cá explicam que o economista mor não atuou a tempo porque andava mais empenhado na sua campanha presidencial… Laetentur caeli quia inter mortales magnus est numerus stultorum!

E com este desígnio, elaborado por agentes do neocapital – jovens quanto baste, alguns dos quais antes estavam do outro lado da negociação – e propalado na discrição ou na desvergonha um pouco por todo o reino da pobreza cada vez mais generalizada, em muitos casos a raiar a miséria, o Portugal empobrecido à velocidade de cruzeiro, à beira da fervilhação social, fez o milagre económico, está a sair da recessão e vai inaugurar o período pós-troika à irlandesa, com programa cautelar ou, talvez, à portuguesa. Tal vai resultar em cheio porque vamos ter três anos imediatamente consecutivos (uns em relação aos outros, acrescentaria Gaspar) com eleições.

Quem não se lembra daquilo que, no verão de 2004, os confrades de Santana Lopes diziam? A crise tinha chegado ao fim, já Durão Barroso (aquele que encontrara o país de tanga) o tinha profetizado!

E assim, de crise em crise, com luz intermitente ao fundo de cada túnel, se assaltaram os bolsos dos contribuintes da classe média e da classe média baixa – trabalhadores, pensionistas, pequenos aforradores. Não há dinheiro, mas aparecem automóveis novos para atribuir em sorteio a quem não se esqueceu de mandar pôr na fatura o seu número de contribuinte ou para encaixar nas grandes empresas financeiras, nacionais ou internacionais, ou nos vistosos quadros europeus (tudo custa dinheiro) os meninos à roda do tacho do poder, de nem sempre seguro “alto gabarito académico e empresarial”, que a nossa geração pagou porque eles souberam gritar e escrever: “não pagamos, não pagamos”!

No Público de ontem, Gonçalo Calado tenta dramaticamente, em Proposta de Errata ao Programa do Governo, uma redação do programa de governo gizado pela atual maioria em 2011, mas com as opções, objetivos e medidas com que está a ser levado à prática. Seria bom que os protagonistas da maioria atual, devidamente coligados, o apresentassem em 2015 antes das eleições. O povo teria então a oportunidade de os apear ou de os confirmar, sem que pudesse vir a queixar-se do logro a que o conduziram...

Saberá o velho país levantar-se em peso pela dignidade humana e pela reposição da convivência geracional? Onde estarão a Maria da Fonte, a Brites de Almeida? Estarão entretidas com as cotas femininas?

Ressurgiremos! – Eu creio!

Delito de opinião ou cerceamento da liberdade de ensinar?

22-01-2014 16:40

Delito de opinião ou cerceamento da liberdade de ensinar?

Acabei de ler há dias o livro O Antigo Regime e a Revolução, do professor Freitas do Amaral, que ele considera de memórias políticas, mas cuja narrativa, elaborada a partir do seu nascimento e antecedentes familiares, termina com uma pequena reflexão pessoal sobre os dias subsequentes ao 25 de Novembro. Como dá umas pinceladas sobre o regime salazarista-caetanista com base no conhecimento pessoal que teve dos seus dois altos governantes e na obra de Franco Nogueira sobre Salazar, em 6 volumes, achei curioso pegar num episódio que, segundo o memorialista, configura o chamado crime de opinião.

Refere o autor que o Professor Barbosa de Magalhães fora demitido da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa “apenas por afirmar nas aulas, com base numa interpretação pessoal imaginativa, que, apesar da Concordata, os casados catolicamente continuavam a poder pedir o divórcio nos tribunais comuns” (cf op cit pg 48). Ora, ninguém me viu nas ditas aulas, por uma boa dúzia de razões, a primeira das quais é a de ainda não ter nascido. Porém, a curiosidade, como se nada mais tivesse que fazer, levou-me à leitura da documentação atinente à matéria, pelo que me permito discorrer sem outras pretensões que não as da reflexão.

Assim, sem negar a razão do entendimento da decisão governativa de penalização pelo designado como “crime de opinião”, prefiro enquadrá-lo no âmbito da obstrução dos direitos, liberdades e garantias. Pode objetar-se que esta formulação é a da atual Constituição da República Portuguesa (CRP) elaborada e promulgada na sequência da revolução abrilina. Efetivamente este documento fundamental consagra indefetivelmente a liberdade de expressão, sem impedimento ou limitação de qualquer tipo ou forma de censura (art.º 37.º), e a liberdade de aprender e ensinar (art.º 43.º).

Mas também a Constituição de 1933, já na sua versão originária de 11 de abril, consagrava no quadro das “garantias fundamentais”, a “igualdade dos cidadãos perante a lei”, que envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou os serviços prestados…” (art.º 5.º); a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma (art.º 8.º, n.º 4.º); e a liberdade de ensino (art.º 8.º, n.º 5.º). Ninguém duvidará de que a liberdade de ensino compreende igualmente o direito de aprender e o direito de ensinar.

É certo que, no seu artigo 4.º, reconhece como limites, na ordem internacional, “os que derivem de convenções e tratados livremente celebrados”.

É este o caso da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de maio de1940, cujo artigo XXIV, até ao protocolo adicional de 15 de fevereiro de 1975, tinha seguinte redação:

“Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos”.

Assim sendo, poderia colocar-se a hipótese de, em determinado momento, os cônjuges unidos pelo matrimónio católico poderem vir a declarar em tribunal o seu abandono confessional da religião católica e, consequentemente, não aceitando as propriedades essenciais do ato de casamento a que estavam supostamente vinculados, solicitar o divórcio. Poderiam os tribunais do Estado deixar de apreciar judicialmente esse pedido? Era legítima a coarctação da liberdade de ensinar ao Professor de Direito? Ninguém solicitou à Assembleia Nacional (que era o órgão competente para tal segundo o artigo 122.º, § 1.º) a reflexão da constitucionalidade daquela disposição?

Se bem que o §2.º do n.º 20.º do artigo 8.º esclareça que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão, de ensino…”, nem por isso a regulamentação se pode sobrepor à substância da coisa, nem pode ser postergado o n.º 3.º do mesmo artigo, que inquestionavelmente consagra “a liberdade e a inviolabilidade de crenças e práticas religiosas, não podendo ninguém por causa delas ser perseguido, privado de um direito, ou isento de qualquer obrigação ou dever cívico”. Não é lícito ao Estado, por mais que isso custe às Igrejas, impedir qualquer manifestação da vontade dos crentes nem deixar de os atender em nome da lei.

E, quando o artigo 45.º estabelece que “é livre o culto público ou particular de todas as religiões, podendo elas organizar-se livremente, de harmonia com as normas da sua hierarquia e disciplina”, pressupõe-se legitimamente que, não podendo interferir no campo das crenças e práticas, não queira nem deva condicionar a adesão ou a permanência dos cidadãos numa determinada religião, até porque o artigo 46.º professa o regime de “separação em relação à Igreja Católica e a qualquer outra religião ou culto praticado dentro do território português”.

Pelo que, num regime político constitucional, devidamente escrutinado pelos poderes e pela opinião pública, em que a prática correspondesse (o que todos sabemos que não acontecia! E hoje?) ao estipulado pela lei fundamental e pelas leis ordinárias, no que estas não contrariassem aquela, o professor nunca seria excluído da docência ou, tendo-o sido, deveriam os tribunais assumir a ministração da justiça e não termos nós de nos ficar a lamentar pelo severo castigo de um delito de opinião.

Mais pedagógico, só a carecer de formação e consciencialização a cargo das comunidades, se revela o estipulado no mesmo artigo XXIV da Concordata pela redação que lhe deu o protocolo de 1975, transcrito ipsis verbis para o artigo 15.º da Concordata de 2004, alterando unicamente a expressão casamento católico para casamento canónico e distribuindo o artigo por dois números):

(1) «Celebrando o casamento católico (na versão atual, casamento canónico), os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem às normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais.

(2) «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio».

Eis a maneira diplomática de ambas as partes manterem as suas convicções e responsabilidades específicas: a Igreja Católica, com o dever de recordar a doutrina e de apostar na formação; e o Estado, com  a disposição de tratar os cidadãos em conformidade com as leis da República.

E hoje estarão os direitos, liberdades e garantias dos portugueses a ser escrupulosamente salvaguardados e respeitados nas leis ordinárias e na prática diária ou permanecem unicamente como letra morta, embora dourada, na Constituição?

Homologação do Programa de Português do Ensino Secundário

21-01-2014 19:05

Homologação do Programa de Português do Ensino Secundário

Foi hoje, 21 de janeiro, homologado o novo programa de Português para os três anos do ensino secundário, com as alterações a que o prestigiado grupo de trabalho encarregado de o elaborar entendeu dever proceder com base em ulterior reflexão e em algumas das sugestões e críticas produzidas em sede de discussão pública – diga-se de não longa duração. Por mim, sabendo que é difícil responder positivamente às diversas sugestões, tenho de reconhecer que vi algumas das minhas dúvidas dissipadas, embora naturalmente outras dicas tivessem naturalmente ficado pelo caminho.

Quando um projeto se expõe ao escrutínio do público, é óbvio que as posições serão diversificadas, umas concordantes, outras discordantes e outras mesmo agressivas; umas mais razoáveis, outras nem tanto. Todavia, na matéria em causa, fiquei espantado com o que vi escrito:

Para a Câmara Municipal [de Sintra], a história da construção do Palácio e Convento de Mafra, no século XVIII, que serve de pano de fundo ao romance de Saramago, "exerceu um papel fundamental na valorização turístico-cultural do concelho, contagiando positivamente a economia local", até pelo número de visitas de estudo recebidas no monumento nacional, em consequência de ser uma das obras de estudo obrigatório do secundário.

 – vd Notícias ao minuto [Em linha]: https://www.noticiasaominuto.com/pais/161871/governo-recua-e-memorial-do-convento-mantem-se-no-secundario?utm_source=rss-pais&utm_medium=rss&utm_campaign=rssfeed#.Ut6jIdKp2t8, acedido hoje.

Conquanto entenda que o estudo de uma obra literária e seu autor venham a beneficiar o turismo local e regional e a servir de incremento à mesma economia, não posso aceitar que estes fatores possam constituir condicionamento à séria proposta de conhecimento extensiva a todo o território nacional. Deve ser a ciência que deve andar à frente dos interesses, por mais legítimos que sejam, e não o contrário.

Ora, se o grupo, por trás das justificações, de todo plausíveis, apresentadas na edição de hoje do Público, deixa subjacentes as motivações da referida autarquia, no que não acredito, tenho de confessar a minha total discordância, até porque não aceito que o poder autárquico tenha uma palavra inquestionável na determinação de programas nacionais. Pode e deve promover com foros de total cidadania a inclusão de peças curriculares de ordem local, de leccionação obrigatória no seu quadro territorial. De resto, já algumas das nossas escolas estarão semissaturadas da hegemonia municipal, nem sempre de bom agouro.

De outro modo, também eu deveria exigir o estudo de alguns autores e suas obras, putativamente importantes para o interesse regional e local, mencionando meramente a título de exemplo: Aquilino Ribeiro, António e João Correia de Oliveira, António Silva Gaio, Abel Botelho, Fausto Guedes Teixeira e Luís Veiga Leitão, para a incremento do turismo e da economia nas aquilinianas terras do Douro Sul, do Alto Paiva e do Alto Vouga; Ferreira de Castro, Manuel Laranjeira e Henrique Veiga de Macedo, das Terras de Santa Maria; Vergílio Ferreira, José Marmelo e Silva, Tomás Ribeiro e Manuel António Pina, da envolvente da Serra da Estrela.

Quanto à obra de Saramago, sem deixar de sublinhar o interesse do seu modo de construção das personagens, do estabelecimento peculiar das linhas de narrativa e da utilização de um conceito alternativo de história presentes em Memorial do Convento, apraz-me referir que esta não será a sua única obra emblemática enquanto narrativa nem a de mais fácil acesso aos estudantes. Não sei mesmo se Levantado do Chão (valha-nos a própria opinião do autor!) ou O Ano da Morte de Ricardo Reis ou A História do Cerco de Lisboa não favoreceriam mais os objetivos deste nível de ensino.

Seja como for, os objetivos de educação e ensino, seus conteúdos, metodologia e avaliação devem ser definidos por quem está ligado à investigação e à docência, sem sujeição a grupos de pressão, venham eles donde vierem – da política, da economia, da finança ou da religião.

 

 

Paulo VI - apontamento

21-01-2014 16:35

Paulo VI - apontamento

Cada um tem as suas referências e, para mim, Paulo VI é uma grande, agora obnubilado: em certo ponto bem, porque suplantado; em certo ponto mal, porque esquecido. Também se registarão regressões pontuais e poucos progressos doutrinais e disciplinares.

Mas o homem da condução de três quartos do Vaticano II, seu executor e patrocinador de dezenas e dezenas de documentos de desenvolvimento conciliar não merece ser colocado na prateleira.

O papa confrangido política e eclesiasticamente, mas audaz no discurso e nos gestos e portador da esperança não deixou de ser eficaz.

O Papa Paulo VI

21-01-2014 15:40

O Papa Paulo VI

Parece-me necessário um apontamento sobre este pontífice italiano, o penúltimo até hoje, cujos gestos e ensinamentos ou ficaram pura e simplesmente esquecidos ou ficaram atribuídos aos sucessores, os quais tiveram o mérito de os assumir, aprofundar e multiplicar

O papa Paulo VI , cujo nome de nascimento é Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini veio à luz do dia em Concesio, na província lombarda de Brescia, a 26 de setembro de 1897, e faleceu em Castelgandolfo, a 6 de agosto de 1978. Foi o Sumo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana e Soberano do Estado do Vaticano de 21 de junho de 1963 até à sua morte, sucedendo a João XXIII, que convocou o Concílio Vaticano II, para fazer entrar no metafórico edifício eclesial uma lufada de ar fresco, provocando a reformulação atualizada da doutrina em diálogo com o mundo e, em especial, com os outros cristãos.

O novo Servo dos Servos de Deus decidiu continuar os trabalhos conciliares do predecessor e promoveu assinaláveis melhorias nas relações ecuménicas com os Ortodoxos, Anglicanos e Protestantes, o que resultou em diversos encontros e acordos históricos. E a sua voz ténue, mas clara, fez dele o obreiro do Reino de Cristo, a testemunha dramática dos sofrimentos humanos, o andarilho da paz, o paladino dos direitos humanos, o profeta da esperança e o arauto da alegria do Evangelho.

Giovanni, em 1916, para se tornar sacerdote, entrou no respectivo seminário , cuja frequência se alternou com períodos de permanência em casa por motivos de saúde, mas vindo a receber a sagrada ordenação em 1920. Logo a seguir, foi para as universidade Gregoriana e de Roma, passando a frequentar, em 1922, a Pontifícia Academia dos Nobres Eclesiásticos para estudar diplomacia. Foi, por conseguinte, enviado como adjunto para a Nunciatura Apostólica de Varsóvia, mas teve de regressar a Roma, no ano seguinte, porque as invernias polacas lhe prejudicavam a saúde. No entanto, o seu talento levou-o a uma carreira na Cúria Romana, pela administração do Vaticano, começando o trabalho, de imediato, na Secretaria de Estado, onde se manteve por 30 anos.

Entretanto, acumulava funções com a docência na Pontifícia Academia dos Nobres Eclesiásticos e com as de capelão da Federação dos Estudantes Universitários Católicos Italianos, de onde estabeleceu fortes relações com os fundadores do Partido da Democracia Cristã.

Em 1937, foi nomeado Substituto para Assuntos Correntes pelo cardeal Pacelli, Secretário de Estado da Santa Sé no papado de Pio XI, que se fez acompanhar dele ao Congresso Eucarístico Internacional de Budapeste. Quando o cardeal Eugénio Pacelli foi eleito papa Pio XII, Montini manteve-se no cargo com o novo Secretário de Estado, o cardeal Maglione. Em 1944, o Secretário de Estado faleceu e o cargo foi tomado em mãos pelo próprio papa, passando Montini a trabalhar diretamente sob orientação do Sumo Pontífice, tendo-lhe sido confiado o encargo das relações exteriores e o cuidado dos refugiados políticos.

O tempo total em que Montini serviu no Departamento de Estado decorreu de 1922 a 1954. Durante esse largo lapso de tempo, este serviçal e Domenico Tardini foram considerados os colaboradores mais próximos e influentes de Pio XII. Consta que o Pontífice os quisera fazer cardeais no consistório de 1952, mas terão solicitado dispensa da aceitação do cargo, pelo que passaram ambos a deter o título de pro-secretários de Estado. Foi Pio XII quem nomeou Montini, em 1954, para a Arquidiocese de Milão, cargo que fez dele automaticamente Secretário da Conferência dos Bispos Italianos, passando a ser considerado o arcebispo dos trabalhadores.

Para alguns estudiosos da Igreja, a nomeação milanesa de Montini sustentava a intenção de o afastar do centro de decisões, em Roma. Porém, a tese que tem prevalecido é de que o papa tinha intenção de lhe proporcionar maior experiência pastoral, retirando, assim, do seu espectro o rótulo de homem de Cúria. Apesar de não ser cardeal, recebeu vários votos no conclave de 1958, que acabou por eleger como sucessor de Pio XII Angelo Giuseppe Roncalli, com o nome de João XXIII. Talvez por isso o novo papa o tenha elevado à dignidade cardinalícia ainda no consistório de 1958, o que dele fez um dos mais prováveis sucessores.

Ao ser eleito papa a 21 de junho de 1963, em razão do óbito de Roncalli, escolheu o nome de Paulo, na convicção de que tinha a missão mundial renovada de propagar a mensagem de Cristo. Retomou o Concílio Vaticano II, que fora automaticamente fechado com a morte de João XXIII e atribuiu-lhe prioridade e direção. Concluído o trabalho conciliar, Paulo VI tomou conta da interpretação e implementação dos seus mandatos, frequentemente andando sobre uma sinuosa linha entre as expectativas conflituantes de vários grupos da Igreja Católica. A magnitude e a profundidade das reformas, que afetaram profundamente todas as áreas da vida da Igreja durante o seu pontificado, excederam em larga medida as políticas reformistas semelhantes de seus predecessores e sucessores.

Sendo o primeiro papa a utilizar o avião, Paulo fez viagens, entre outros locais, a Jerusalém, à Índia, à ONU, a Portugal (a 13 de Maio de 1967, ao Santuário de Fátima), à Turquia, à Colômbia, à Suíça, às Filipinas, onde se desenhou um atentado fracassado, e à Austrália – o que deu azo a que lhe chamassem Papa Peregrino. E, porque o seu tema preferido e recorrente era a paz, passou a ser conhecido como o Papa Peregrino da Paz.

Mas este papa andarilho foi exímio na devoção mariana, discursando repetidamente a congressistas marianos e em reuniões mariológicas, visitando santuários marianos e publicando, para lá de várias exortações apostólicas, três encíclicas referentes ao culto de Nossa Senhora. Este pedagogo Vigário de Cristo na Terra procurou o diálogo com o mundo, com outros cristãos, religiosos e irreligiosos, sem excluir ninguém. Viu-se como um humilde servo de uma humanidade sofredora e exigiu mudanças significativas dos ricos na América e na Europa em favor dos pobres do Terceiro Mundo.

Os seus críticos viam-no muitas vezes como um homem distante, indeciso e sem carisma, além de pouco propenso a tomar posições firmes com relação a questões delicadas, como o aborto. Frequentemente, carecia de desenvoltura ao expressar-se. No entanto, a par da encíclica Populorum Progressio e da carta apostólica Octogesima Adveniens, que se constituíram como alguns dos mais notáveis marcos da Doutrina Social da Igreja, promulgou a encíclica Humanae Vitae, sobre a regulação da natalidade, instrumento que veio a tornar-se um documento de referência da paternidade responsável e peça orientadora na abordagem das questões sobre aborto, esterilização sexual e regulação da natalidade e cuja doutrina, ali explicitada, serviu de base para vários documentos pontifícios posteriores ao tratarem dos temas da família, da ética conjugal e da bioética. 

Esta encíclica, publicada a 25 de julho de 1968, foi considerada pelos opositores de Paulo VI como um retrocesso em relação ao Concílio Vaticano II.  No entanto, vem na linha da joanina encíclica Mater et Magistra, que de entre outros pontos, inclusive os de doutrina social, afirma que a vida humana é sagrada, desde o seu alvorecer compromete diretamente a ação criadora de Deus”. E, por outro lado, segue a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do próprio Concílio Vaticano II, que deixou expresso no capítulo que trata da família (ns. 47 a 52) que se devia, na regulação da natalidade, recorrer à castidade conjugal, para conciliar o amor conjugal com a transmissão responsável da vida.

Reitera a encíclica a visão tradicional da Igreja sobre métodos anticoncecionais e aborto  – ou seja, uma oposição veemente a toda forma de contraceção por métodos não naturais. Este posicionamento seria depois retomado e reforçado por João Paulo II na exortação Familiaris Consortio e na encíclica Evangelium Vitae. A encíclica paulina serviu também de documento-base para dois outros documentos do Magistério da Igreja: as instruções Donum Vitae e Dignitatis Personae, ambos sobre moral sexual e ética reprodutiva. O conteúdo desta encíclica, nesta parte, está atualmente incorporado no Catecismo da Igreja Católica, de  que os seus §§ 2370 e 2399 preconizam a “continência periódica, os métodos de regulação da natalidade baseados na auto-observação e no recurso aos períodos infecundos”, métodos que, estando “de acordo com os critérios objetivos da moralidade, respeitam “o corpo dos esposos, animam a ternura entre eles e favorecem a educação de uma liberdade autêntica”.

O pontificado de Montini decorreu durante grandes e profundas mudanças revolucionárias no mundo, revoltas estudantis, a Guerra do Vietname e outros transtornos. Paulo VI conduziu a Igreja numa época de transição entre as eras pré e pós-Vaticano II. À época, assistiu-se à revisão mais profunda da liturgia católica dos últimos séculos, a mudanças no sacerdócio e na vida religiosa, e a um mundo em mudança de valores com as taxas crescentes de divórcio, uniões de facto, liberdade sexual e legalização do aborto e generalização das técnicas anticoncecionais. Na memória do seu pontificado sobressai a reforma litúrgica (missa, oficio divino, liturgia dos sacramentos, paraliturgias e reformulação do calendário litúrgico – santoral e temporal), a promoção do apreço pela Bíblia e o diálogo ecuménico.

Alguns dos seus ensinamentos, na linha da tradição da Igreja, e outras questões que abordou foram controversos na Europa Ocidental e na América do Norte. No entanto, o Pontífice foi elogiado em grande parte das Europas Oriental e Meridional, além da América Latina, pela coragem com que abordou as questões sociais, equacionou a luta pela paz e conseguiu ler e ouvir a reflexão de pensadores não eclesiásticos, alguns dos quais não crentes.

Paulo VI procurava entender todos os assuntos que lhe caíam na mesa da discussão ou na agenda da reflexão/ação, mas também defender o património do fidei depositum, uma vez que este lhe foi confiado. E manifestou-se incansável nas iniciativas que desencadeou, sendo de destacar, entre outras: os dias mundiais da Paz, do Migrante, do Enfermo, das Vocações, das Comunicações Sociais, das Missões; o Ano da Fé, no XIX Centenário do Martírio dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo; os discursos na ONU e na OIT; o Ano Santo de 1975; o Sínodo dos Bispos; o Credo do Povo de Deus; o Congresso GEN da Geração Nova; e os inúmeros escritos na esfera do Magistério Eclesiástico.

Paulo VI faleceu, como se disse, em 6 de agosto de 1978, na Festa da Transfiguração. O processo diocesano para a beatificação de Paulo VI iniciou-se em 11 de maio de 1993. Em 20 de dezembro de 2012, o Papa Bento XVI, ao receber em audiência o cardeal prefeito Angelo Amato, autorizou a Congregação Para as Causas dos Santos a promulgar o decreto relativo ao reconhecimento das "virtudes heroicas" do "Servo de Deus" Paulo VI.

O seu “testamento espiritual" terá sido lido por mais de uma vez por João Paulo II nos "exercícios espirituais" que fazia, e deles tirou ideias, propósitos e pontos de reflexão para a sua vida e pontificado, como ele mesmo afirma no "testamento espiritual" por si redigido e que foi postumamente tornado público.

Convidados a pensar o papel do Papa

20-01-2014 14:27

Convidados a pensar o papel do Papa

Decorreu, na cidade francesa de Estrasburgo, entre os passados dias 28 de dezembro e 1 de janeiro, o 36.º Encontro Europeu de Jovens promovido pela Comunidade Ecuménica de Taizé, que congregou cerca de 30 mil jovens de diversos países do velho continente.

Na mensagem que o papa Francisco enviou a 19 de dezembro à comunidade, recorda “com alegria” a passagem de encontro similar, em finais de 2012, pela Praça de São Pedro, com a participação de milhares de jovens e de Bento XVI, e, “em particular, da bela oração” que os congregou. Mas Francisco vai mais longe ao assegurar que “o Papa conta convosco para que, através da vossa fé e do vosso testemunho, o espírito de paz e de reconciliação do Evangelho irradie entre os vossos contemporâneos”.

Para além da mensagem papal, outras vieram a manifestar a unanimidade de sentimento em apoio da iniciativa, de que se destacam as do Patriarca Ecuménico Bartolomeu, do Patriarca de Moscovo, do Arcebispo de Cantuária, do Secretário-geral da Aliança Mundial das Igrejas Reformadas, do Secretário-geral do Conselho Ecuménico das Igrejas, do Secretário-geral da Federação Mundial Luterana, do Secretário-geral das Nações Unidas e do Presidente do Conselho Europeu.

A propósito das quatro propostas para 2014 – juntar-se à comunidade local que reza, alargar a amizade para lá das fronteiras, partilhar e rezar regularmente com outras pessoas e tornar mais visível a comunhão de todos os que acreditam em Cristo – publicadas no site da Comunidade Ecuménica de Taizé no dia 26 de dezembro, o irmão Alois, prior da comunidade e principal responsável pelo encontro, esclarecia: “Por toda a terra os que amam Cristo formam uma grande comunidade de amizade. A isso chama-se comunhão. Têm assim um contributo a dar para curar as feridas da humanidade: sem quererem impor-se, podem contribuir para uma mundialização da solidariedade, que não exclui nenhum povo nem nenhuma pessoa”.

No espírito das quatro propostas enunciadas, durante as manhãs do encontro, os jovens reuniram-se em “mais de 200 paróquias de acolhimento”, na França e na Alemanha, para momentos de oração e partilha. Para as tardes de 29 e 30 de dezembro, o programa propunha vinte temas para reflexão como: crise, desemprego, precariedade… necessidade de inventar um novo modelo económico; justiça e direitos do homem; reflexões pessoais sobre o desafio de ser cristão; diálogo ecuménico para coexistirmos tranquilamente ou para nos deixarmos transformar pelo encontro com outros; Europa, terra de migrações: como podemos viver melhor juntos. As orações comunitárias, à tarde e à noite, ocorreram simultaneamente em três pavilhões do Wacken, o parque de exposições de Estrasburgo, na catedral católica e na igreja protestante de São Paulo.

Para o prior de Taizé, apesar da paz “sem precedentes” na História da Europa, permanece o “muro das consciências”. Entretanto, “os jovens que vieram a Estrasburgo gostariam de uma Europa aberta e solidária: solidária entre todos os países europeus e solidária com os povos mais pobres dos outros continentes”. E acrescenta que os jovens “aspiram a uma outra organização económica”, propondo que “à mundialização da economia esteja associada uma mundialização da solidariedade”.

No atinente ao aspeto ecuménico e na sequência do celebrado encontro de jovens, o irmão Alois, sucessor do irmão Roger Schutz, que fundou a comunidade em 1940 e foi assassinado durante a oração da tarde numa cerimónia ecuménica em 16 de agosto de 2005, num artigo preparado para a Semana de Oração Pela Unidade dos Cristãos, desafiou todos os cristãos a considerar que o bispo de Roma pode “apoiar a comunhão entre todos”. Inspirado na verificação de que o Papa Francisco “indica” a direção certa “ao apresentar como prioridade para todos o anúncio da misericórdia de Deus” questiona: “Não poderiam todos os cristãos considerar que o bispo de Roma é chamado a apoiar a comunhão entre todos, uma comunhão em Cristo, onde podem permanecer algumas expressões teológicas que comportam diferenças”?

Para tanto, é preciso atender ao apelo/compromisso assim expresso pelo religioso ecuménico:

“Não falhemos neste momento providencial. Estou consciente de estar a tocar um assunto muito quente e de o fazer de forma talvez deficiente. Contudo, para avançar, parece-me inevitável que procuremos modos de entrar neste caminho de uma diversidade reconciliada”, entendendo que as diversas confissões cristãs devem encontrar formas de se colocarem todas “sob o mesmo teto” sem ficarem à espera de “que todas as formulações teológicas estejam completamente harmonizadas”.

Opina o prior de Taizé que “haverá sempre diferenças”, que devem ser avaliadas em “conversas francas”, na certeza de que “muitas vezes podem também conduzir a um enriquecimento”. E, ao referir a experiência de ecumenismo vivida em Taizé, onde os jovens de diferentes confissões cristãs se sentem “profundamente unidos”, sem com isso rebaixarem a sua fé a um mínimo denominador comum, nem procederem a um nivelamento dos seus valores”, lança o repto:

“Se é possível em Taizé, por que não será isso possível noutros lugares?

O repto responde vivencialmente à demanda dos últimos pontífices romanos, como, a seguir, se explana.

João XXIII, desejando que o envolvimento da Igreja Católica no movimento ecuménico contemporâneo fosse um dos principais objetivos do Vaticano II, criou a 5 de junho de 1960 um Secretariado para a promoção da unidade dos cristãos como uma das comissões preparatórias para o concílio. Tal organismo convidou as diversas confissões a enviar representantes seus às sessões conciliares como observadores, apresentou à aula conciliar os projetos de documentos sobre o ecumenismo, a liberdade religiosa e a relação com as outras religiões, e colaborou com a comissão doutrinal na elaboração do projeto de constituição dogmática sobre a divina revelação.

Paulo VI, que se desligou de adereços pontifícios emblemáticos como a tiara, o anel precioso e a sede gestatória, publicou a célebre encíclica Ecclesiam Suam sobre o diálogo e iniciou um programa de viagens apostólicas fora de Itália, em que se tornaram usuais os encontros ecuménicos, confirmou o mesmo secretariado como órgão permanente da Santa Sé.

A seguir a João Paulo I, que mal teve tempo de esboçar um sorriso de simpatia ecuménica, surge o indizível João Paulo II, que transformou o secretariado em Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em março de 1989. Mas o papa polaco, que multiplicou as viagens pastorais quase por todo o mundo, empenha-se esmeradamente pela problemática do ecumenismo.

A ela corresponde o ato de publicação da encíclica Ut unum sint, em 1995, dedicada ao «empenho ecuménico» dos católicos nas suas relações com os outros cristãos que se acham em comunhão verdadeira, mas imperfeita, com a Igreja católica. No seu n. 95, o papa fazia-se eco «da solicitação que me é dirigida – dizia – para encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova». Mais do que a doutrina da encíclica, deve registar-se a atitude que redundou na tomada de uma decisão verdadeiramente histórica, ao convidar «todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas para que procuremos, naturalmente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de fé e de amor reconhecido por uns e por outros».

Bento XVI, que já tinha deixado cair o título de “Patriarca do Ocidente”, com o seu gesto de renúncia ao exercício do múnus petrino, no reconhecimento das limitações pessoais e para dar lugar a outrem, pareceu também apontar para redefinição da prática do exercício da função pontifical de, numa atitude de amor (cf Jo 21,15) e solicitude, “confirmar os irmãos na fé” (Lc 22,32) ou de pô-los a conviver sob o mesmo teto, não obstante as diferenças, que sempre as “tereis convosco”.

Será que Francisco, o despojado de todos os empecilhos bispo de Roma, que apela a que não “haja medo da ternura de Deus”, que propõe o pastoreio “com o odor das ovelhas” e insiste na atitude inclusiva da promoção da fé, em vez da sua fiscalização, vai liderar a chegada a bom porto da nau ecuménica em diálogo efetivo e afetivo com os outros líderes? Conseguirá ele promover a crença dos católicos, mormente os hierarcas, na colegialidade e na descentralização, de modo que se garanta a augustiniana unidade no essencial e liberdade no acessório ou seja, a valorização das diferenças porventura incómodas, mas enriquecedoras?

A igreja “panteónica”, que foi depósito de armamento e fábrica de sapatos

19-01-2014 23:16

A igreja “panteónica”, que foi depósito de armamento e fábrica de sapatos

A expressão popular “obras de Santa Engrácia”, associada à igreja de Santa Engrácia, ainda se usa para caraterizar qualquer obra ou empreendimento que não tenha fim à vista, mas o Panteão Nacional, sedeado naquele templo, é visitado sobretudo por estrangeiros. Mas, afinal como é que esta casa mal-amada adquiriu este estatuto?

A sua história é atribulada e remonta a uma igreja primitiva ferozmente destruída por uma tempestade, sendo mais tarde emoldurada por uma lenda em torno de um amor proibido e até uma frustrada maldição.

A predita igreja primitiva, da qual nada resta hoje, foi erguida em 1568 por vontade da infanta D. Maria (1521-1577), filha de D. Manuel I, para receber o relicário da vigem mártir Engrácia de Saragoça, por ocasião da criação da antiga freguesia de Santa Engrácia, atualmente um bairro da freguesia de São Vicente de Fora. Praticamente desfeita durante a aludida tempestade, em 1681, sucede-lhe o atual edifício – para muitos a primeira joia do barroco português de influência italiana, com projeto do mestre João Antunes, coroado por um zimbório gigante e o com um interior pavimentado com vários tipos de mármore colorido – cuja primeira pedra foi lançada logo no ano de 1682, mas que só viria a ser concluído, por ordem expressa do Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, António de Oliveira Salazar, em 1966, passados que foram 284 anos.

Agora, segundo a descrição do SIPA (Serviço de Informação para o Património Arquitetónico), apresentas as caraterísticas da arquitetura religiosa, maneirista e barroca. A planta é em cruz grega, com três capelas absidadas, espaço central quadrangular e quatro torres nos ângulos.

O exterior é marcado pela ondulação dos alçados com curvas e contracurvas e alternância triangular / circular de frontões que representam uma inovadora e criativa utilização das formas clássicas a acentuar o dinamismo exterior da massa arquitetónica.

Os elementos arquitetónicos presentes no edifício testemunham o barroco italianizante, decorrendo o cariz barroco do portal essencialmente dos elementos esculturais que o ornamentam.

Decoram o edifício colunas das ordens dórica, jónica e compósita. O entablamento é neoclássico. São ainda de destacar os seguintes motivos artísticos: revestimento de altar, capelas, chão, paredes e revestimento do zimbório de decoração barroca em estrutura maneirista nos embutidos de mármore policromo; amplidão de espaço arquitetónico valorizado por efeitos contrastantes de claro / escuro barroco; e a grande harmonia entre a policromia do mármore e a cor alva da parede.

Reza a lenda que o cristão-novo Simão Solis, tendo sido visto a rondar a igreja, em várias ocasiões, com as patas do cavalo em que seguia embrulhadas em panos para que não fizessem barulho, e também na noite de 15 de janeiro de 1630 – data do 'Desacato de Santa Engrácia', referido nos registo da paróquia, de que resultou a danificação do relicário do altar-mor – fora pelos vizinhos das redondezas acusado ao Santo Ofício de assaltar o templo e de o profanar, roubando as sagradas hóstias guardadas no predito relicário. Não obstante ter jurado até à morte que era inocente, foi queimado vivo, em 31 de janeiro de 1631, no Campo de Santa Clara, pelo que, ao passar pela mesma igreja antes da execução, terá lançada a maldição à obra em processo de construção, bradando: “É tão certo morrer inocente como as obras nunca mais acabarem!” É que a verdadeira razão – descoberta mais tarde – por que o presumível assaltante nunca haverá querido dizer o que fazia junto a Santa Engrácia na tenebrosa noite era a espera que fazia de que Violante, filha de um fidalgo e noviça no Convento de Santa Clara, viesse ao seu encontro para que fugissem juntos, uma vez que o seu relacionamento era proibido pelo pai da moça.

Ainda incompleto, o templo passa a ter o estatuto de monumento nacional em 1910 e depois a função de Panteão Nacional por força da Lei n.º 520, de 29 de abril de 1916. É aberto ao público com aquele estatuto no ano seguinte ao da conclusão das obras, conseguida em 1966, passados que foram 50 anos sobre aquela decisão legislativa.

Entre a destruição da igreja primitiva e a inauguração em missa solene com o cardeal patriarca D. Manuel Gonçalves Cerejeira, foram muitas as tentativas para concluir as obras, algumas falhadas por falta de verbas. No entanto, nesse período não se pensava noutra função que não a cultual. E, avesso a essa mesma função, o edifício ainda longe de ver ultimada a sua edificação, serviu de depósito de armamento e de fábrica de sapatos do exército durante os conturbados anos de viragem do século XIX para o século XX (de liberalismo decadente e republicanismo iconoclasta).

Nem mesmo os liberais, sob cuja égide e à luz da Revolução Francesa (Será devido ao ideário da revolução que se pode filiar a ideia de panteão no republicanismo?) é criado o Panteão Nacional (Decreto de Passos Manuel, de 26 de Setembro de 1836), lhe destinam um local. O regime da monarquia Constitucional queria guardar em regime de precioso relicário “‘as cinzas dos grandes homens’ que se tinham sacrificado na revolução de 1820”, bem como promover a “reparação do esquecimento a que, há séculos, estava votado o maior de todos os portugueses, Camões. É Almeida Garrett (1799-1854) quem, depois de o celebrar com um poema romântico com título homónimo, o quer ver sepultado no Mosteiro dos Jerónimos, monumento nacional comparável ao panteão inglês da Abadia de Westminster, onde hoje estão sepultados escritores e homens de ciência como Shakespeare, Spenser, Tennyson, Dickens, Darwin e Newton.

Segundo o historiador Fernando Catroga, “os primeiros ‘panteonizáveis’ neste quadro que se segue ao enaltecimento da figura de Luís de Camões, são inseparáveis de uma visão que acredita no progresso e rejeita o culto do passado”. Por isso, enalteciam-se “os que melhor exprimiam um pulsar coletivo, não tanto os políticos e os militares, mas, sobretudo, os intelectuais e, entre estes, os poetas”, ou seja, os “oriundos da ‘República das Letras’, onde o escritor emergia, cada vez mais como um clérigo laico”. Depois de Camões, chegou a vez de se honrarem, nos Jerónimos, imóvel que muitos portugueses veem ainda como o verdadeiro panteão e talvez ainda o seja de facto, os escritores Alexandre Herculano, João de Deus e o próprio Garrett.

Por seu turno, Isabel Melo, a diretora do panteão de Santa Engrácia, reconhece que, se ele está hoje um pouco mais presente no imaginário nacional, “deve-o a Amália Rodrigues, a fadista que morreu em 1999 e que para lá foi trasladada em 2001, numa cerimónia a que assistiram milhares de pessoas”. Tinha sido publicada no ano anterior a Lei n.º 50/2000, de 29 de novembro, que, de forma sustentável, “define e regula as honras de Panteão Nacional”.

De acordo com as declarações da mesma personalidade, uma mais-valia enditará o imaginário nacional com a panteonização da escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, dado que esta escritora “é muito acarinhada pela sua obra poética, mas também pela ligação ao combate ao Estado Novo e pelos seus contos eternos para crianças”, a que se seguirá – tudo o indica – o consagrado Eusébio.

As personalizadas honorificadas com as honras de panteão, por decisão política, são recordadas com dois tipos de memória: o cenotáfio, para aquelas cuja trasladação poderia casar incómodo significativo para a opinião pública; e a guarda dos restos mortais, para aquelas que estavam sepultados provisoriamente no Mosteiro dos Jerónimos e para aquelas cuja trasladação tiver sido decretada após a inauguração do Panteão Nacional.

É de referir que das dez figuras que têm os restos mortais na Igreja de Santa Engrácia, só Amália e Sidónio Pais, o Presidente da República assassinado em 1918, recebem flores.

Entretanto, a lei n.º 35/2003, de 22 de agosto, distribui o estatuto de Panteão Nacional por dois monumentos religiosos – Santa Engrácia, em Lisboa, e Santa Cruz, em Coimbra – sendo a finalidade atribuída ao segundo muito restritiva, exclusivamente à laia de reconhecimento. Terá sido para sido para concretizar em parte a ideia expressa por Maria João Neto, segundo a qual “diz-nos o senso comum que onde há o túmulo de um rei há um panteão, e isso pesa”? Terá sido, antes, para honrar Afonso Henriques, o conquistador, e Sancho I, o povoador? Mas, nesse caso, o país estaria semeado de panteões. Pois, que dizer de Alcobaça, onde estão sepultados Afonso II, Afonso III e Pedro I; de Odivelas, onde tem morada perpétua Dinis, o culto lavrador; da Sé Patriarcal, onde repousa Afonso IV; o convento do Carmo, onde sepultaram Fernando I, trasladado de Santarém; a Batalha, com João I, Duarte, Afonso V e João II; a Basílica da Estrela, onde estão retidas as cinzas de Maria I; ou os Jerónimos onde, com a exceção daquela, foram sepultados todos os reis da Casa de Bragança, incluindo Pedro IV até à sua trasladação para o monumento do Ipiranga, no Brasil, e cujo coração se encontra na igreja da Lapa, no Porto, e ainda Manuel I, João III e o desejado Sebastião, cadáver real ou factício? Ou será ainda porque também lá colocaram o primeiro Presidente da República Manuel de Arriaga?

Já não bastava esta igreja ter sofrido tantas vicissitudes climatéricas, ocupacionais e políticas (terá sido temporariamente postergada pela nova República por ter servido de bandeira à ditadura nacional, atomizadora de velhos mitos e fautora de outros), como ser pretexto para discussão político-financeira sobre quem pode ou não habitá-la ad perpetuam rei memoriam. Coloquem lá em túmulo ou em cenotáfio  todos aqueles e aquelas que não caibam no Portugal profundo e deixem que o panteão do povo - este retângulo à beira mar estendido - seja tão vivo no futuro como no passado, para o que é preciso inverter as tendências asfixiantes do presente.

Uma edificante lição de democracia

18-01-2014 18:25

Uma edificante lição de democracia

As diversas Igrejas cristãs iniciam hoje, 18 de janeiro, com términus a 25 do corrente mês, a denominada Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos, para o que o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos assumiu e divulgou um conjunto de materiais preparados em conjunto por aquele departamento da Cúria Romana e pela Comissão “Fé e Constituição”, do Conselho Mundial de Igrejas. Porém, o trabalho inicial foi levado a cabo por um grupo de representantes de várias partes do Canadá, reunido a convite do Centro Canadense para o Ecumenismo e do Centro para o Ecumenismo “La Prairie”.

O material, cujo tema gira em torno da questão Paulina “Estará Cristo dividido” (1 Cor 1,13), foi elaborado para o predito evento, é utilizável também em todo este ano civil e é suscetível de adaptação, preferivelmente mediante uma colaboração ecuménica, conforme as circunstâncias temporais, locais e humanas da celebração e/ou reflexão a promover. Os grandes promotores, que desejam que a preocupação orante e reflexiva pela unidade se tornem prática diária em todo o ano para que se alcance a unidade querida por Cristo, reconhecem a existência, em muitos lugares, de estruturas capazes de proceder à conveniente adaptação e acham razoável que a necessidade sentida de adaptação dos materiais oferecidos urja a utilidade da criação de tais estruturas ecuménicas onde elas ainda não existam. Por outro lado, fornecem indicações sobre a utilização dos textos durante a semana de oração, nestes termos: as igrejas e comunidades cristãs que celebram juntas num só ato a semana de unidade dispõem de um modelo de celebração ecuménica; aquelas que celebram conjuntamente atos ecuménicos em cada um dos dias (ou em alguns deles) dispõem de textos próprios para cada dia, para oração e reflexão, ao nível de sugestão e proposta; as que celebram a semana da unidade por si, sem visível ligação celebrativa a outras confissões, podem incorporar os textos sugeridos nas suas celebrações e reflexões; quem desejar proceder a estudos bíblicos sobre o tema da semana de oração encontrará nos materiais apresentados o apoio que lhe aprouver, podendo cada sessão de reflexão terminar com um momento final de oração de intercessão; e os orantes em privado podem dispor dos textos sugeridos para se sentirem em comunhão com todos aqueles que em todo o mundo rezam por uma unidade maior e mais visível da Igreja de Cristo.

Os conteúdos constantes do documento são: a transcrição de um texto bíblico (1 Coríntios 1, 1-17); uma introdução ao tema, em que a reflexão articula o teor do excerto da carta de São Paulo referenciada com o panorama canadense; um guião-tipo de celebração ecuménica, com uma introdução reflexiva e metodológica, o desenvolvimento da celebração (com leituras bíblicas, cânticos, alocuções e oração); um conjunto de reflexões bíblicas e orações para cada um dos dias do oitavário, com um subtema diário, citações bíblicas adrede selecionadas; três pontos para reflexão e oração de síntese própria do dia; uma resenha sobre o panorama ecuménico no Canadá; uma súmula dos temas do ano de 1968 a 2014, elaborados conjuntamente pela Comissão “Fé e Constituição” e pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, da Igreja Católica; e, finalmente, o elenco das datas mais significativas das ações desenvolvidas no âmbito da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos, que remonta ao ano de 1740, ano da criação do movimento pentecostal escocês, com ligações à América do Norte, a convidar à oração com e por todas as Igrejas.

Ora, por entre este arrazoado, onde se descortina a edificante lição de democracia?

Primeiro que tudo, na capacidade da criação conjunta, para lá das diferenças – territoriais, linguísticas, culturais e, sobretudo, religiosas – de materiais, com base numa ideia profundamente assumida de que “é muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa”; a informação clara de quem iniciou o trabalho de produção dos materiais; a largueza da indicação de que, ao invés da reivindicação de quaisquer direitos autorais, os materiais podem ser adaptados conforme a oportunidade celebrativa e/ou reflexiva; a memoração dos diversos temas anuais desde que se evidenciou a iniciativa da sua elaboração conjunta, em pé de igualdade; o registo dos principais dados históricos do movimento ecuménico; e a vez e a voz dadas a uma considerável região de promoção ecuménica.

Apesar de os considerandos ora expostos já constituírem um valioso exemplo de atitude democrática, ao nível da participação, reconhecimento, respeito e informação, detenhamo-nos um pouco na reflexão concretizada pelas entidades canadenses referenciadas.

Reconhecendo que vivem num país marcado pela diversidade linguística, étnica, cultural e climática, de que resultam divisões sociais e políticas, também encarnam a diversidade das suas expressões da fé cristã. Porém, ao mesmo tempo, desejam permanecer fiéis ao desejo de Cristo de unidade de todos os seus discípulos, convictos de que, à maneira dos Coríntios, podem receber e valorizar os dons dos outros e, em meio de suas divisões, trabalhar para a efetiva unidade. Tentam, neste sentido, olhar para a natureza espetacular e diversificada do seu país – montanhas, bosques, lagos e rios – e para a sua considerável extensão, do Atlântico ao Pacífico e dos Estados Unidos ao polo Norte, fértil em termos agrícolas e rica em recurso naturais. Por outro lado, entendem que a carta paulina a apelar à unidade dos Coríntios em Cristo, o único móbil da fé cristã, apesar das divisões cavadas pela História dos homens, também se dirige aos hoje dos canadenses e de todos os cristãos. E aí eles se interrogam em que medida, para lá das atividades em comum, souberam respeitar, receber e valorizar os dons fornecidos por outras vivências do cristianismo, assente em outras culturas e origens étnicas e civilizacionais. E ainda questionam o que cada comunidade cristã pode fazer em prol de maior respeito, aprendizagem e caminho para a unidade essencial, sem anular a diferença enriquecedora de realizações no acessório.

Será, pois, o cruzamento destes dados vivenciais e problematizantes que preparam o perfil do novo homem democrático, que saberá servir com vista ao bem comum, no respeito pelas vontades legítimas e na consideração das diferenças, que tanto dividem como enriquecem, consoante o modo como forem encaradas, assumidas e sublimadas.

Agorafobia democrática

17-01-2014 19:08

Agorafobia democrática

Na celebração do 33.º aniversário da revolução abrilina, em florescente consulado de José Sócrates, ainda não diplomado na invenção de outras narrativas, o então promissor deputado Paulo Rangel, no discurso que proferiu em nome da bancada socialdemocrata, caraterizava a situação política do momento como de claustrofobia democrática e constitucional, “do ponto de vista dos valores processuais da liberdade de opinião e da liberdade de expressão”. E, falando do alegado ambiente de condicionamento da liberdade, perguntava: “Como garantir e realizar essa democracia de valores, essa república da tolerância e do pluralismo, se nunca como hoje se sentiu uma tão grande apetência do poder executivo para conhecer, seduzir e influenciar a agenda mediática”?

Nestes dias, ao refletir no que hoje se passa, pergunto-me como caraterizar o panorama democrático atual. É que os sintomas não são lá muito saudáveis e criam alguma preocupação. Invocando o estado de necessidade e, concomitantemente, tendo colocado o país na condição de “estado exíguo”, as ideias de que o governo quer que vivamos passam pela inevitabilidade que não permite qualquer alternativa menos gravosa e tão eficaz ante o complexo de soluções que os heroicos timoneiros de tão envelhecida nau elaboram e apresentam. Porque vivêramos acima das nossas possibilidades, colocámo-nos na dependência generosa e exigente dos nossos credores internacionais. E todo o processo legislativo e o consequente resultado são forçados a ostentar no cariz e nos efeitos a marca troikenha. Discussão livre das ideias, dos projetos, das propostas e das petições, isso não: pode enervar os mercados, levar os credores a questionarem a nossa capacidade de cumprimento das metas orçamentais e de pagamento da dívida soberana ou a baralhar o nosso tecnocrático caderno de encargos. Mais: as iniciativas, as soluções, as propostas ou têm dificuldade em cair na mesa da discussão ou sofrem uma discussão castrada. Isto, porque uns nada querem e outros não têm autoridade para propor seja o que for; ou porque uns assinaram um memorandum que pretendem rasgar e outros dele fizeram o seu programa de governação, além do qual pretenderam passar, hipoteticamente para assegurar um êxito indiscutível e mesmo plausível. E o programa ultrapassou confortavelmente as barreiras de hipotética rejeição inicial, das moções de censura adrede apresentadas e da moção de confiança com que o governo reptou o parlamento na hora certa.

E é assim que, ao arrepio de uma séria e ampla discussão política, embora capciosamente levada à ribalta pura e simplesmente para receber um democrático ámen, se apregoa vacuamente um consenso patriótico, se enceta e põe em marcha uma atabalhoada reforma do Estado que redunda em cortes e mais cortes em investimento, rendimentos, serviços e pessoas, se propaga a reformatação do ideário e se instala o ambiente da aceitação acrítica, mas de má vontade – só porque tem de ser. E semeou-se a cizânia da inveja económica e social e do esquema do descarte.

Ora o medo de levar as próprias ideias ao pelourinho da discussão, a repulsa pelas ideias de outrem, que podem pôr em crise as nossas e destabilizar interesses e a ideia fixa da necessidade de manutenção do poder não configuram, em meu entender, a síndrome da claustrofobia, já que, à partida, não se partiu de situações restritivas nem se viveu em estado de constrição. Isso que agora se vive há mais de dois anos e meio é, de certeza, resultado ou consequência de iniciais ações restritivas e subsequente estado constritivo. Quanto ao fenómeno, no entanto, eu prefiro denominá-lo de “agorafobia” (desconforto na praça pública, de agorá e fóbos, no grego) “democrática” (dado que, por mais limitados que nos encontremos na fruição da democracia, ainda não nos afastámos umbilical e irreversivelmente do modo democrático).

Mas cuidado! A agorafobia, neste contexto, é bem mais perigosa que a claustrofobia, pois, enquanto esta tem uma origem circunscrita e produz efeitos em menos e menores setores sociais, aquela, com origem mais heterogénea, mas mais sólida e vincada, atinge, pelos meios utilizados, uma infinidade de setores, podendo tornar-se pandémica. Então, não é verdade que se instalou um pouco por toda a parte o pavor da precariedade, a dúvida sobre a perda de emprego e o pânico da não reversão do desemprego? Não é verdade que a massa crítica se eclipsou na administração pública e nas empresas do Estado? Não é verdade que o povo, nomeadamente as camadas mais jovens, se alheou deveras do pensamento e da atividade política? Não cresceu assustadoramente, até por provocação de ponderados governantes, a emigração de quadros? Não sentem os reformados, aposentados e sobreviventes – que não dispõem de qualquer poder reivindicativo – o assalto asfixiante e contumaz às suas pensões? Não se generalizou, não obstante a explícita declaração da sua legitimidade, a antipatia pelo real exercício do direito à greve, por razões de incómodo psicossocial e de sofrida injustiça em relação aos títulos pré-pagos?

Recentemente, registam-se duas objeções baseadas nos inibidores custos excessivos. A Presidente da Assembleia da República, embora não se opusesse à decisão paramentar das honras panteónicas ao piedoso Pantera Negra, invocava os custos da trasladação (não sei se raciocina assim agora que se levantou a hipótese quase certa da prestação de idênticas honorificências a Sophia de Mello Breyner Andresen). E um dos contidos grupos “para lamentares” apresentou o mesmo raciocínio lógico do despesismo em tempo de crise severa a propósito da decisão de referendar a coadoção por parte de casais de pessoas do mesmo sexo e, já agora, também a adoção pelos mesmos em relação a criança ainda não adotada por nenhum dos dois elementos do casal.

A este respeito, sem negar ou validar a legitimidade constitucional de referendo ou até o seu interesse ético, só me pergunto porque é que, primeiro, se promove um processo legislativo que culminou na aprovação parlamentar e. só depois. se lançou a ideia do referendo. Do mesmo modo, é de questionar, porque é que em matérias de alguma fraturação social (e não de viabilidade governativa), em virtude das questões de consciência filosófica ou moral, se impõe a disciplina de voto, até para a abstenção, tendo os senhores deputados unicamente as liberdades de abandono da aula da discussão democrática e/ou da declaração de voto, para não incorrerem em penalização disciplinar por infração à disciplina partidária. Dá-me a impressão de que os grupos parlamentares devem olhar mais a sério para a Constituição, para as liberdades, garantias e direitos do cidadão (os deputados não deixam de ser cidadãos e de poder mobilizar a sua consciência) e para os programas com que se apresentaram ao eleitorado.

Tudo isto não compagina a verdadeira agorafobia em periclitante democracia?

Que remédio? Talvez, a par do cavaquista sobressalto democrático e do soarista sobressalto cívico, não quadrasse mal o sobressalto pela lucidez e pela coragem. E como prevenção? Conhecimento da lei em que se vive, constante massa crítica, muito e consciente trabalho, empreendedorismo sustentável, justa remuneração, produção de ideias e saberes e enfrentamento seguro dos inimigos e óbices da discussão pública.

E os órgãos de soberania que assumam cada um a seu tempo as suas responsabilidades!

O "sermão" do Senhor Joaquim

16-01-2014 23:43

O "sermão" do Senhor Joaquim

 (Era o Sr. Joaquim um empregado do Seminário Maior, muito engraçado, mas com falha mental acentuada e notória. Nos tempos livres convivia com os alunos e divertia-os com as suas histórias interessantes, pelos comentários que nelas intercalava. O presente discurso, de 1971, foi proferido, de cima de uma pedra a servir de púlpito, num momento em que os seminaristas esperavam o autocarro que a Associação do Coração de Jesus (ou Centro do Apostolado da Oração) da freguesia da Sé da cidade episcopal fretara para os transportar a uma cerimónia na Sé Catedral respetiva. Ele revela a coincidência que alguns estabeleceram, quem sabe se com razão, entre a adúltera e Maria Madalena; e na sua “amência” denota uma perspicácia que escapa frequentemente aos ditos inteligentes da ordem social.

Eu transcrevo “ipsis verbis”, naquela linguagem beiraduriense, de acordo com os registos patentes num velho caderno já coçado do tempo. Limito-me a colocar a pontuação que julgo pertinente e a aspar as palavras de significado dúbio a nível regional.)

Eis o texto:

Caríssimos irmãos, piedosos cristãos!

O Evangelho tem coisas maravilhosas. E então o de São João é de se lhe tirar o chapéu, que é o que eu faço sempre, porque eu não sou como os outros, os que não têm religião ou que não lhe ligam.

Vou falar-vos da adúltera Madalena. Como sabeis, o adultério vai contra todas as leis divinas e humanas, é um pecado muito grande, tão grande que nem cabe na terra nem no céu nem no próprio inferno. Eu, meus irmãos, garanto-vos que, para bem da minha alma, antes queria mil vezes ter relações com quinze raparigas solteiras uma vez em cada mês, que uma só vez em dez anos com uma mulher casada.

Mas vamos ao ponto do nosso sermão:

Um dia, uma vez, estava Nosso Senhor a ensinar no templo de Jerusalém. As pessoas estavam “apalermadas” a ouvi-lo. Ele falava muito bem, muito melhor que os senhores padres de agora: alguns até nem sabem o que estão a dizer. E pregava de graça, ninguém tinha que lhe pagar.

Ele estava a ensinar. De repente, ouviu-se um barulho muito grande. O caso não era para tanto. Os sacerdotes traziam de rastos uma mulher apanhada em fragrante adultério. O que é que os padres andariam a fazer para a apanharem em fragrante! E o outro, o homem? Que eu saiba a mulher, para fazer adultério, não estava sozinha, tinha que estar com um homem! Já sei. Deixaram-no fugir por camaradagem: “Raspa-te, antes que seja tarde”!

Pois aqueles homens, que mal “ofegavam” por causa da pressa, por apanharem Jesus ainda a falar (para lhe pregarem uma valente partida) e do cansaço, porque a mulher era pesada e resistia, berraram:

– Divino Mestre, nós apanhámos esta mulher em fragrante adultério. Segundo a Lei de Moisés, ela deve morrer. Temos que lhe “arrumar” com pedras. Tu que dizes?! Se ela não fosse apanhada, não tinha mal, mas foi apanhada...

Nosso Senhor olhou bem para ela e para eles. E disse:

– Aquele que estiver sem pecado, “arrume-lhe” a primeira pedra!

E agachou-se e pôs-se a escrever com o dedo na areia. O que ele escrevia não sei. Eu não vi. E, se visse, não me valia de nada: eu não sei ler, sou “alfabético”.

Depois, ele estava a escrever na areia dentro do templo. Aquilo era como a cabeça de muitos homens de agora: cheia de areia.

Os homens olhavam, espreitavam e iam saindo um de cada vez, quem sabe se a pensar nas malandrices que tinham feito e que o Mestre estava a escrever no chão... e depois, apagou tudo. Por isso, mais ninguém ficou a saber o que lá estava a escrever.

Jesus ergueu-se e viu que Madalena estava sozinha. Virou-se para ela e perguntou:

– Então, Madalena, ninguém te “arrumou”?

– Não, Senhor! – Respondeu Madalena – Ninguém me “arrumou”!

Então Jesus acabou:

– Pois não, Madalena, ninguém te “arrumou”: o único que te podia “arrumar” era eu. Mas, já que ninguém te “arrumou”, eu também não te “arrumo”. Madalena, vai em paz. Vai à tua vida e não tornes a pecar! Ganha juízo.

E ela foi-se embora e Nosso Senhor não lhe “arrumou”. Não lhe “arrumou” pedras, é claro!...

 

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